por Lima Neto
Faça um teste. Se você tiver nascido próximo da minha geração (recém-chegado à casa dos quarenta), pode perguntar para qualquer contemporâneo que se interessa por HQs: “Qual o melhor desenhista de quadrinhos do Brasil?”, e, é certo que 90% das respostas que ouvirá será “Laerte!”.
A pergunta é clara. Não estamos falando aqui das habilidades de quadrinista, narrador, poeta ou cartunista. Falamos de desenho, linha no papel, interpretação gráfica do mundo, etc. Nesse quesito, até o mais resiliente antipatizante da artista paulistana dará o braço a torcer. Laerte, que é a primeira a discordar de todas as palavras elogiosas deste artigo, possui um controle impressionante da anatomia humana – que se distorce e se constrói da maneira que for preciso para a trama. Este controle anatômico fica mais evidente com o uso dos cenários e detalhes sempre claros e sintéticos. O uso das manchas de preto para criar ambientação e planos de fundo, tudo isso amarrado com uma expressividade de traço que é sua marca registrada. Para muitos artistas de quadrinhos próximos da minha geração, que cresceram lendo as publicações da Circo, o desenho de Laerte é, sem dúvida, um modelo a ser estudado.
Linha, traço: um elemento fundamental da expressão visual. A linha também é o símbolo poderoso que atribuímos à razão, ao pensamento racional. É o fio dourado e brilhante de Ariadne que ilumina a saída do labirinto mitológico. Não sou um leitor aprofundado de Nietzsche, mas me recordo que foi o filósofo alemão que sugeriu ser mais prático que a filha de Minos se enforcasse com sua linha. Que a razão humana é inútil quando se trata da subjetividade humana, ao ponto de categorizar seu uso como uma violência. O que isto tudo tem a ver com Laerte? Quem é leitor assíduo da autora, sabe que tem muito a ver.

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Toninho Mendes |
A HQ Modelo vivo aparentemente sofre de uma indecisão no que compete ao público a que é direcionada. Lógico que os seguidores da autora comprarão o livro sem pensar duas vezes. Mas quando se vê as linhas azuladas, trêmulas e esmaecidas construindo a imagem de uma mulher nua agachada e apoiada em um redemoinho de linhas, seu braço deitado sobre um vermelho sanguíneo e mamilos e pêlos pubianos rabiscados com um traço digno de porta de banheiro, pensamos se tratar de uma coletânea de desenhos rápidos e despreocupados típicos da prática de desenhar poses rápidas. Mas ao abrir a revista, vemos páginas e páginas de quadrinhos impressas em contrastantes papéis coloridos. A primeira impressão é a de que o miolo e capa são de produtos totalmente distintos. Daí lemos as orelhas e vemos que de fato o gibi é uma coletânea de material raro da autora. Após uma introdução e uma breve mostra da produção que dá título à HQ (acompanhada de tiras já publicadas que também tratam dessa personagem que é a modelo vivo), temos uma sequência de contos em quadrinhos que mostram uma Laerte no primor da forma e com muito quadrinho pra mostrar.

Posteriormente temos a história "Minotauro", publicada em Geraldão #15, datada de 1989. Na HQ, o traço de Laerte, ao mesmo tempo poderoso e delicado, dá vida ao clímax do mito cretense. Sem dar nome aos personagens, a HQ explora uma das ramificações que a ação de Teseu, ao eliminar o Réprobo de Creta, vai acarretar. Publicada no número 19 da revista Chiclete com Banana, a HQ "Aquele Cara" vai dar continuidade o imaginário dos seres antropomórficos que povoa a mente da autora. Um continho sobre trocadilhos visuais, identidade e acaguetes em um mundo de homens-dedo. Os seres antropomórficos de Laerte continuam na história seguinte, "Moto", publicada em belíssimas duas cores na revista Piratas do Tietê #11, de 1991. Quando um cidadão é quase atropelado por um misterioso motociclista em uma noite de lua cheia, algo incrível, repulsivo e inevitável pode acontecer.
A história "O Míssil", publicada na Geraldão #6, de 1988, reinterpreta o mito arturiano de Excalibur para a geração oitentista que tentava dormir com o terror dos mísseis nucleares pairando sobre suas cabeças. O resultado é desconcertante. Em "Penas", publicada na Chiclete com Banana #16, de 1988, a recorrente fantasia de voo da autora vira tema de um conto de conspiração e poder. Portando apenas “História” como título, chegamos à historieta inédita que estreia neste volume. Novamente voltamos ao tema das cabeças e corpos, desta vez levada a um extremismo gráfico que escapa qualquer simbolismo. A história foi produzida no ano 2000.
O livrinho conclui com a HQ "Capítulo Final", publicada na revista Geraldão #9, de 1988. Uma ode, com ares de Laertevisão, aos quadrinhos clássicos que construíram a infância da autora e de muitos outros leitores. A história é um germe do tipo de nostalgia revisionista que a autora vai praticar em trabalhos como o já citado Laertevisão e Muchacha, mas que vai aparecer pincelado em muitos outros trabalhos da autora. Entre cada uma dessas histórias, estão fac símiles dos desenhos de figura humana que dão título ao livro.
Modelo Vivoé um livro esquisito, editorialmente falando. Como o casal preso na ilha que ilustra o conto inédito que citamos, o livro parece ter partes totalmente distintas costuradas sem muita preocupação em esconder as emendas. Em nenhum momento os nus desenhados com natural despojo complementam ou sequer dialogam com as páginas de quadrinhos. As histórias publicadas fariam muito mais sentido se impressas em formato e padrão semelhantes ao álbum Histórias Repentinas, publicado pela Devir. Com toda certeza, o tamanho maior valorizaria o traço de páginas que originalmente saíram no chamado formato magazine. Então, por que publicar um livro tão estranho? Difícil encontrar uma razão, e com certeza esta razão não eliminaria o desconforto causado pelo livro que, sem dúvida, poderia ter um projeto gráfico que valorizasse seu conteúdo. Mas o ambiente gráfico é justamente a tela da artista Laerte, e as escolhas neste sentido não são sem intenção. Comecemos então por Creta.

Como o Minotauro, a edição de Modelo Vivoé quimérica, um corpo formado pelo resgate de um trabalho marcado pela excelência do traço amarrado a uma cabeça experimental, enevoada e semi-disforme. Muitas vezes, no passado recente, Laerte afirma descontentamento com seu trabalho prévio. A criação comprometida com um ritmo de produção específico - seja tira diária ou revista mensal – deixou um amargor estético na autora de modo tal que a solução foi retornar ao passado, empreender um retorno a um momento em que seu traço ainda não estava subordinado às necessidades do mercado. Aquela linha elegante e precisa, contadora de histórias, que durante anos garantiu o sustento expressivo e material da autora, havia se tornado uma convenção quase linguística. Basta atentar para alguns dos rabiscos livres que constroem os corpos nus para perceber que, em alguns momentos, mesmo o traço mais liberto e fluido acaba retornando a gestos codificados. Aquele nariz que marcou determinado personagem, aquela mão que é típica de determinado cartum... é esse automatismo pragmático que se torna alvo do desagrado de Laerte. Como se a autora nutrisse uma vontade legítima de orientar seu traço para o mesmo horizonte que seu lirismo poético: experimental, não-sígnico, não-linear.
Não é um acidente que a história "Minotauro" esteja republicada neste volume. O pequeno conto é uma imagem perfeita de uma desejada inversão. Do herói iluminado que se torna prisioneiro bestial na escuridão do labirinto (ou, como desejado, da mente racional que se liberta para uma existência instintiva). Muito dessa reflexão não passa de elucubração, mas é inegável o papel que o mito cretense assume no imaginário da autora. Essa inversão expressa também um outro incômodo já levantado por Laerte: a supervalorização de seu trabalho. Em muitas entrevistas Laerte abertamente discorda da “canonização” que seu nome costuma receber nos meios artísticos. Sua série de tiras “Santo Recalcitrante” trata abertamente dessa sensação de não partilhar da mesma opinião daqueles que a chamam de “gênio” ou, pior ainda, “herói”. Como se tal reconhecimento sempre possuísse um caráter póstumo indesejado.
