Comecei a ler as aventuras de Vanth Dreadstar na finada revista Epic Marvel, publicada pela Abril em 1985. Gostava bastante do mix do gibi, que tinha ainda "Legião Alien" e "Irmandade do Aço", mas quem realmente mexia com meu coraçãozinho era Vanth e companhia. Era uma história com um senso de direção impressionante, como se tudo já estivesse (e estava) milimetricamente mapeado. Os personagens eram bem construídos e os desenhos eram fantásticos. Havia drama e ação na medida certa, tanto na escala de grandiosidade – como uma boa saga cósmica pede –, quanto na avaliação do elemento humano em situações-limite.

Hoje é fácil associar o nome de Starlin às sagas cósmicas, mas foi somente com Dreadstar que a estrela do autor atingiu seu zênite. Embora tivesse gozado de relativa liberdade criativa quando estava por trás do Capitão Marvel e de Warlock, foi somente em Dreadstar que ele pôde realmente fazer o que lhe desse na telha, afinal os personagens eram inteiramente seus. Nas palavras do autor: “Mais de vinte anos atrás, quando estava terminando minha fase em Warlock, comecei a brincar com a ideia de fazer um tipo de conto de fadas com um final apocalíptico. O problema era que não havia lugar para publicá-lo sem ceder todos os direitos. Isso teria sido algo decepcionante. Você pode imaginar o Dreadstar aparecendo nas realidades do Homem-Aranha ou do Superman? Não funcionaria.” Tal dificuldade desapareceu com o lançamento da revista - dedicada a antologias fantásticas - Epic Illustrated, que saiu em 1979 pela Marvel.

Antes de mais nada, é preciso dizer que Starlin decidiu que chegaria chutando bundas na estreia de Dreadstar. A partir da quarta história, por exemplo, o autor passa a fazer arte pintada (e colorida!). Avesso a zonas de conforto, Starlin resolveu arriscar e se deu muito bem. A Odisseia da Metamorfoseé pura lisergia. Se seu traço habitual já era dado a nos brindar com cenas de loucura e alucinação, a inserção de cores aumentou ainda mais a viagem psicodélica dos leitores. Lembra que eu disse que Starlin tinha liberdade criativa? Bem, não vou dar spoilers, mas o final da minissérie é de cair o queixo e nos deixa pensando: ele teve realmente coragem de fazer isso?
Sabendo que tinha um diamante nas mãos, Starlin logo percebeu que Vanth Dreadstar não poderia ficar na geladeira por muito tempo e que logo voltaria. Eis que, em 1982, é lançada a graphic novel batizada apenas de Dreadstar, que seria sucedida por uma série bimestral homônima dentro do selo Epic Comics – linha de quadrinhos autorais, direcionadas a um público mais maduro – da Marvel. Neste renascer de Dreadstar, temos o despertar, um milhão de anos depois, de Vanth em um nova galáxia, também fragilizada por um conflito secular entre forças opostas: a Monarquia e a Instrumentalidade.
Contando com a fé cega de seus seguidores e com a utilização da religião como forma de opressão das massas, a Instrumentalidade domina, com mão de ferro, metade da Galáxia Empírica. Seu líder, não por acaso chamado de Lorde Papal, é considerado o representante sagrado dos Doze Deuses, criaturas extradimensionais divinas que se julgam no direito de reger os caminhos de incontáveis seres e planetas. Conforme descrito por Starlin, “a Instrumentalidade é uma poderosa ordem político-místico-religiosa que governa sua metade da galáxia com ameaças de danação, decretos divinos, inquisições indiscriminadas e guerreiros sagrados”. Seus grandes rivais, a Monarquia, são a força que domina o restante da galáxia, contando com grande poderio militar financiado por uma dinastia milenar. Starlin continua: “A Monarquia advém de uma dinastia de doze séculos. Fundada e mantida pela família real dos Dyologos e seus exércitos”.
Bem, Dreadstar cairá de paraquedas no meio desse conflito, que já dura duzentos anos e foi originado por um motivo do qual poucos lembram ou se importam. Na verdade, o que está por trás dos combates é o fato de que é melhor para as potências continuarem lutando, já que a economia de guerra tornou-se bastante lucrativa e o processo de paz poderia acarretar perdas financeiras importantes para ambos governos. Trocando em miúdos, Starlin faz um paralelo com o período de Guerra Fria que era assustadoramente real.
Alistado nas fileiras da Monarquia para direcionar a máquina de guerra a seu favor, Vanth vai subindo de patente e pula fora do exército real no momento em que está pronto para se tornar a terceira força do conflito galáctico. Para tanto, reúne uma equipe formidável e bastante coesa. O núcleo duro de aliados de Vanth conta com o feiticeiro Sygyzy Darklock, o versátil homem gato Oedi, a telepata Willow e o contrabandista Skeevo. Incomparável, aqui, foi a habilidade de Starlin em criar personagens complexos e bastante reais, e com origens bastante interessantes. Sygyzy, por exemplo, ganhou um gibi inteiro para chamar de seu. Não coincidentemente chamada de “O Preço”, a edição especial narra o terrível sacrifício do ex-bispo da Instrumentalidade para lutar em prol do futuro da galáxia.
Visualmente bem sacados e com uma interação bem azeitada, feita para Chris Claremont nenhum botar defeito, os parceiros de Vanth ajudam seu líder a virar o jogo no – até então – conflito bilateral. As constantes intervenções e vitórias de Vanth, entretanto, chamam a atenção do nefasto Lorde Papal que, sendo bem sincero, é um Thanos repaginado. Se o arquirrival de Warlock tinha fixação pela morte, o nêmesis de Dreadstar só anseia poder. Starlin, então, constrói uma trama que atualiza sua crítica a sistemas totalitários e regimes autocráticos, sejam laicos ou religiosos. A loucura e megalomania de Magus – versão futurista e maligna de Adam Warlock – está claramente refletida na insaciável sede de controle de Papal. Também não é mera coincidência a semelhança física entre Starlin e Dreadstar. O alterego do autor é seu avatar na luta contra todas as formas de tirania.
O problema é que as frequentes vitórias de Vanth deixam seu rival cada vez mais transtornado. Resultado: cenário perfeito para que Starlin lance mão de temas recorrentes em sua obra: morte, fúria, e delírio. Em dado momento - até hoje chocante – a escalada vertiginosa do ódio de Papal faz com que ele chegue ao cúmulo de destruir – com armas atômicas – uma metrópole inteira, numa tentativa de eliminar Vanth e Sygyzy. Abaixo vemos exemplos da técnica, tipicamente starliniana, de repetir diagramações e mostrar as similaridades e contrastes entre os protagonistas. No primeiro temos o desabafo de Vanth após o ataque nuclear exagerado e sanguinário de Papal. No segundo temos a reação do chefe da Instrumentalidade ao sobreviver à traição de um oficial que tinha filhos na cidade-palco da devastação nuclear.
Livre da interferência do Comics Code, sem a obrigação de veicular anúncios na revista e com sucesso de crítica, parecia que Starlin finalmente se aquietaria e ficaria com o burro na sombra na Marvel, certo? Ledo engano! O incansável criador aproveitou que os personagens eram seus e picou a mula para a First Comics depois da edição 26 da série regular. Malandro que é, Starlin pulou fora bem no auge da trama, no momento exato em que ia revelar quem era o traidor da equipe. O título ainda teria mais 38 edições pela First, mas sejamos francos, o filé mignon só vai até o número 30, quando ele conclui a saga principal. Nem mesmo Peter David e Angel Medina, que assumiriam a revista após a saída de Starlin, foram capazes de fazer a estrela de Vanth voltar a brilhar. Em 1994, Dreadstar ganharia uma nova minissérie em seis partes, pelo selo Bravura, da Malibu Comics. A revista tinha o slogan: “Dreadstar está de volta, e ela está furiosa!”. Sim, é isso mesmo que você leu. Bem, na verdade não era o Dreadstar original, mas sim sua filha, numa história ruim de chorar.
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Lorde Papal: minha religião é o poder |
Leitura obrigatória para fãs de ficção científica e de bons quadrinhos, Dreadstar teve uma trajetória errática de publicações. A posse dos direitos nem sempre pode ser considerada uma benção, especialmente quando isso faz com que os personagens pulem de editora em editora. Dreadstar é um exemplo pródigo disso. No quesito troca de editoras o guerreiro das estrelas está mais para mochileiro das galáxias, em razão de sua peregrinação por “trocentas” casas publicadoras. Para quem se interessar, montei aqui a ordem de leitura da série, tanto no Brasil quanto no exterior:
Lista 1. Publicações de Dreadstar nos EUA:
1)Epic Illustrated # 1-9 (Marvel, 1979). Aqui está a Metamorphosis Odyssey, posteriormente relançada em encadernados por editoras como SLG Publishing e Dynamite.
2)Dreadstar Annual: The Price (Marvel, 1983)
3)Dreadstar Graphic Novel (Marvel, 1982)
4)Epic Illustrated # 15 (Marvel, 1982)
5)Dreadstar # 1-26 (Marvel/Epic, 1982). Posteriomente relançada em encadernados por editoras como DF Edition (1 ao 12), SLG (1 ao 6) e Dynamite ( 1 ao 12) .
6)Dreadstar # 27-64 (First Comics, 1986). Inédito no Brasil.
7)Dreadstar # 1-6 (Malibu Comics, 1994). Inédito no Brasil.
Lista 2. Publicações de Dreadstar no Brasil:
1)Dreadstar: Odisseia da Metamorfose (Devir, 2011)
2)Dreadstar: O Preço (Globo, 1992)
3)Graphic Globo # 1: Dreadstar (Globo, 1988)
4)Epic Marvel # 1-6 (Abril, 1985)
5)Dreadstar, O Guerreiro das Estrelas # 1-10 (Globo, 1990)
OBS 1: O gibi Dreadstar: O Princípio (Mythos, 2017) coleciona os itens 1, 2, 3, e 4 da lista 1.
OBS 2: O gibi Dreadstar (Mythos, 2016) coleciona as primeiras 12 edições da série de Dreadstar lançada pela Marvel/Epic nos EUA em 1982.
É isso, garotada. Quem quiser mergulhar de cabeça numa saga cósmica de responsa já sabe onde procurar. Abraço!
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Sygyzy Darklock |