Diversidade de temas e de autores. Esta é a grande aposta da Draco para sacudir o já dinâmico mercado do quadrinho nacional. E é em publicações da editora em gêneros como terror, humor e ficção científica, dentre outros, que a nova geração de quadrinistas brasileiros tem recebido a chance de dar vazão às suas criações. Neste novo post da Raio, resenhamos quatro obras recém lançadas pela editora, todas pertencentes – por coincidência – ao gênero terror. É clichê dizer que publicações que contêm muitos autores – como foi o caso dos gibis analisados – costumam pecar pela irregularidade. Será que também foi o caso dessa vez? Antes disso, confira uma rápida entrevista que fizemos com o editor/escritor/proprietário/faz tudo da Draco, o irrequieto Raphael Fernandes. (MMA)
por Marcos Maciel de Almeida, Lima Neto e Ciro I. Marcondes
Entrevista com Raphael Fernandes (vulgo editor/escritor/proprietário/faz tudo da Draco):

A Editora Draco é especializada em quadrinhos e literatura de gênero, ou seja, nossas publicações são focadas em terror, fantasia, ficção científica, policial, humor, etc. Recentemente, passamos a publicar também obras de referência de não-ficção e quadrinhos jornalísticos. Nosso principal objetivo é trabalhar apenas com obras originais, portanto, não temos interesse em publicar projetos de outros países que não tenham surgido na nossa redação. Aqui você vai encontrar obras feitas especialmente para você e sempre buscando fazer títulos que agradem aos leitores que gostem de cultura pop.
Raio Laser: Grande parte do acervo da Draco é formada por coletâneas. Qual seria o objetivo da opção por este formato? Permitir a participação de número maior de autores? Qual o método utilizado para seleção dos novos talentos? Qual tem sido a receptividade do público para este material? (Foi mal. A pergunta ficou longa pra cacete).
As coletâneas são a forma que encontramos para ter publicações, durante todo o ano, dos principais autores da casa e, ao mesmo tempo, encontrar e revelar novos talentos. Nós conseguimos manter todo nosso time produzindo e melhorando cada vez mais, ao mesmo tempo que o leitor tem sempre novidades para ler. Seria a nossa versão dos comics mensais e das publicações semanais japonesas. Queremos que o público acompanhe nossos talentos e nossas ideias durante o ano todo.

O público gosta bastante das coletâneas, pois sempre haverá uma ou mais histórias que agradem ao seu gosto. Buscamos sempre compor as coletâneas com um grande leque de estilos e formas de contar histórias. Sempre tivemos uma boa receptividade do público e isso incentiva a produzirmos cada vez mais.
Raio Laser: É quase consenso que o momento atual do quadrinho brasileiro é ímpar. Como você vê o futuro desta cena e qual o papel que a Draco desempenhará nele? Acredita que o modelo atual, com inúmeras editoras pequenas trabalhando em parceria com gigantes do mercado do varejo virtual, seja sustentável?

A Draco tem como objetivo principal ser uma editora referência na publicação de histórias originais com autores locais. Cada vez mais estamos desenvolvendo um jeito Draco de contar histórias em quadrinhos e acredito que a resposta de público e crítica seja resultado dessa persistência, dedicação e carinho. Nós realmente acreditamos que podemos fazer um trabalho que vai agradar cada vez mais o público leitor que gosta de séries de TV, cinema, literatura fantástica, música e tal.
Sendo bem sincero, as editores pequenas não têm muita opção quando se trata de distribuir seu material. Afinal, para entrar em uma grande livraria é preciso ter toda uma estrutura. Porém, nós temos trabalhado em quase todas as frentes: estamos nas principais redes de livrarias do país, nas comic shops, fazemos feiras de quadrinhos e literatura por todo Brasil, venda direta em nosso site e, claro, também estamos em todos os grandes varejistas online (sim, até nas Casas Bahia e no Wallmart). E, para não dizer que não estamos nas bancas, nós estamos nas principais bancas de São Paulo através da distribuição feita pelo Worney.
Temos que estar onde o público frequenta e buscar cada vez mais profissionalizar a estrutura como um todo. É uma tarefa árdua, exige muita paciência e muito investimento, mas que aos poucos tem mostrado resultados gritantes. Nós começamos bem modestos e hoje já temos um legado que podemos nos orgulhar de ter realizado.
Resenhas padrão Raio

Essa luxuosa publicação, em papel couché, alta gramatura e cores vermelhas salpicando perturbador preto e branco, tem como proposta se inserir nessa sutil ambiguidade: literalmente ou figurativamente, a sedução propiciada pelo mal existe e afeta diretamente as ações humanas degeneradas. A coletânea, editada por Raphael Fernandes, traz oito histórias altamente perturbadoras carregadas de gore em situações perversas, moralmente repulsivas. São contos a respeito de pactos com os chamados 72 demônios da Goetia, baseados em um grimório com instruções para praticar a arte do Rei Salomão (um tipo de demonologia).
Esta edição é uma das apostas mais sofisticadas da editora, e a tradição brazuca de horror metafísico com presenças de criaturas sobrenaturais repugnantes (de Shima e Colin a Mozart Couto) está devidamente representada neste bem curado compêndio profano. Os rituais de invocação são tão minuciosamente detalhados que rola até um frio na espinha ao tentar imaginar como os autores chegaram a essas informações.
Dentre as coisas sortidas que encontramos por aqui há, por exemplo, a história de abertura, onde um jovem é condenado a olhar para a própria morte em loop, reiteradamente, pela eternidade. O texto bruto e perturbador é de Raphael Fernandes, e a arte de Daniel Canedo, pintada no que parece ser um guache macabro, lembra o grande Jon J. Muth. Os artistas da edição, aliás, expressivos, em geral conseguem obedecer à ordem de equilibrar preto e branco, grafismos perturbadores e o uso pontual da cor vermelha. Uma das melhores histórias é “O Mestre da Arte” (de Caio H. Amaro), ilustrada de maneira prosaica (lembra Fábio Moon) pela brasiliense Flávia Lima. Aqui, um conjurador experiente elabora tramoias arriscadas com demônios cada vez mais poderosos para conseguir salvar a vida do namorado. É surpreendente e desolador.

Demônios da Goetiaé um lançamento significativo nas HQs nacionais, ainda que habite as margens, no quadrinho de gênero. A natureza do mal é examinada com propriedade e diversidade de abordagens. Os artistas variam, mas em geral estão em coesão com o conteúdo das histórias. E as histórias, estas inspiram pesadelos. E isso é o maior mérito que uma obra de horror pode almejar. (CIM)


É promissor perceber que Devoradosé uma aventura num universo já pré-estabelecido, com dinâmicas e personagens próprios. Fiquei curioso para ler novas histórias de Duran Draconian. Espero que esse lançamento seja apenas a ponta de lança de uma série de novos títulos passados naquela realidade. Fica a expectativa de que esta estreia tenha sido apenas um tira-gosto antes da chegada de um prato de macarronada preparado pela trindade Cardoso, Lemos e Gotland. (MMA)

Em princípio seria uma ótima pedida para mim, fã do gênero, mas lendo estes contos e quadrinhos percebi que esta abordagem de fato não envelheceu tão bem. A nobreza aristocrática deste tipo de vampiros, somada ao apelo brutal da morte e do sangue, acabaram se tornando um tanto quanto cafonas. A Teia Escarlate conta justamente a trajetória de uma imortal romana, filha de uma deusa, que vai consignando seus desejos malévolos em épocas distintas, acompanhada por coadjuvantes que interferem em sua vontade primordial. Confesso que Fernandes está menos inspirado aqui do que em Demônios da Goetia. As artes de InLoco e Canedo (também melhor em Demônios...) não chegam a incomodar, mas para mim não se tornaram exatamente ativos para o gibi. E os contos de Kasse, com o perdão da crítica, me pareceram um tanto grosseiros, com imagens literárias que misturam kitsch e gore, além de serem narrados numa prosa simplista demais. O apelo nostálgico é legal, mas Anne Rice só tem uma mesmo. (CIM)

Quando me caiu nas mãos o volume de Despacho, da editora Draco, imaginei que eu reencontraria algo do medo e da profanação que marcou esse meu primeiro contato com o ritual. Sabia que o que estava sendo apresentado era mais variado que isso, que buscava resgatar um terror brasileiro marcado por causos e maldições e que teve nos anos 70 seu momento mais criativo. O título até me pareceu ofensivo, já que não estávamos mais em 1988 e a cultura afro-brasileira não sofre mais do mesmo obscurantismo de 30 anos atrás (embora continue padecendo de outras formas de exclusão), mas imaginei que esse anacronismo pudesse ser uma abordagem irônica que se abrisse a uma atualização desse discurso.
Apesar da bela arte de capa, o que encontrei no miolo da revista foi decepcionante. Um amontoado de “sacadas” mal aproveitadas narradas com uma arte confusa e embrulhadas em um senso comum preguiçoso que se esconde sob rótulo de trash. O medo e a profanação estão lá, mas devido a problemas editoriais, esse medo não se sustenta e o terror resultante emerge da percepção do potencial desperdiçado. Já a profanação que aparece nas páginas esbarra num discurso obscurantista digno da doutrina de minha antiga escola.
Por estes problemas de edição, fica difícil se entreter com a interessante premissa de O Diabo Que Te Carregue, uma das duas profanações do Sítio do Pica Pau Amarelo que fazem parte da antologia. O trabalho de Victor Freundt, que escreve e desenha a história, esbarra em uma confusão visual que atola toda a leitura, que é deixada ainda mais lamacenta graças ao texto carregado de um sotaque “caipira” de difícil leitura. A experiência lembra uma viagem de 5 quilômetros em uma estrada de terra para a fazenda que leva 5 horas de duração. A outra referência aos personagens de Monteiro Lobato busca uma roupagem moderna, mas também padece de uma arte confusa assinada pelo organizador do volume, Samuel Sajo, e roteiro de Airton Marinho. Em Brutalizados no Sítio, um grupo de “aberrações” sequestra e estupra um “pai de família” numa história que causa náuseas mais pela utilização infeliz de clichês sobre a transsexualidade do que por sua ousadia estética. Da mesma forma, em Segredos, com roteiro de Sajo e arte de Rafael “Abel” Vasconcelos, encontramos um confuso sincretismo entre igreja católica e cultos africanos que termina por atrelar uma imagem de desequilíbrio e psicopatia às religiões afro-brasileiras. De forma mais clara essa balança vai pender para o lado judaico-cristão em Dízimo de Sangue, história do personagem O Pastor de Raphael Fernandes e Juliano Kaapora, um Constantine cristão que combate as forças demoníacas... não preciso descrever mais que isso.
O restante da HQ esbarra em narrativas mal contadas, didatismos ofensivos, descaracterizações, cortes abruptos e diagramações confusas. No geral, este despacho não vinga e o que resta é um sentimento de frustração. A HQ desperdiça bons ingredientes: com destaque para a arte bela e carregada de Victor Freundt, mas que carece de um editor para desatar o nó da diagramação; o estilo fumetti promissor mas ainda burocrático de Abel; e a inegável potência da arte de Sajo que mostra um grande potencial expressivo, mas é completamente perdido na impressão tosca e diagramação confusa.
No mais, Despachoé apenas mais um olhar confuso e imaturo sobre um assunto tão rico quanto a cultura nacional e suas vertentes afro-descendentes e perpetua uma perspectiva tendenciosa de uma classe de pessoas que enxerga rituais de outras religiões como uma brincadeira diletante, não muito distante dos meninos que “chutavam macumba” no intervalo da aula. (LN)