por Ciro I. Marcondes*
O que pode haver em comum entre o kammerspiel (gênero de filmes alemães dos anos 1920, voltado à classe operária), Reinhart Koselleck (historiador da segunda guerra mundial) e Hermann Rorschach (psiquiatra suíço que desenvolveu o famoso teste... e que batizou também um personagem de quadrinhos)? Em princípio, nada – ou tudo. E este é o mote desenvolvido por José Carlos Fernandes na história em quadrinhos portuguesa A pior banda do mundo: os elementos que compõem as fiações do nada. Todos estes nomes são realojados, em algum momento, em personagens obscuros, excêntricos, desvalidos, que habitam uma espécie de cidade de sonhos, onde o descartável e o inútil encontram sua ontologia, onde uma paranormalidade de boteco vai obcecar pessoas acanhadas, onde os ofícios mais inadequados e obsoletos continuam a existir de maneira cíclica, eterna, interminável. Um mundo dentro do nosso próprio mundo, escondido em suas entrelinhas, abafado nas funções ordinativas da nossa realidade.


A origem desta mistura entre modéstia, poesia, erudição e um senso de humor muito específico é difícil de determinar. Poderíamos pensar em coisas semelhantes ao vermos os filmes de Wes Anderson, Aki Kaurismäki ou Hong Sang-Soo. Ou lendo as HQs de Lourenço Mutarelli e os contos de Murilo Rubião. Há um DNA que mistura surrealismo, existencialismo e humor que pontualmente aparece em expressões culturais aqui e ali. Porém, é certamente no imaginário de Jorge Luis Borges que encontramos um parentesco mais afinado, unindo certa curiosidade filosófica debochada ao fascínio por mundos adimensionais que ocorrem dentro das mais diminutas manifestações da nossa percepção. Assim, a obsessão do músico Sikorsky – daPior banda… – em escrever a peça musical perfeita para o mais banal cotidiano ecoa na obsessão de Pierre Menard – de Ficções, de Borges – em reescrever, palavra por palavra, o Quixote de Cervantes. Da mesma forma, o peso e a densidade das palavras buscada pelos irmãos Nazca lembra a metafísica que tange a biblioteca de Babel em Borges.

* Publicado originalmente no jornal de quadrinhos Suplemento.