por Ciro I. Marcondes
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Um Chninkel |
Às vezes no deparamos com uma obra-prima assim de supetão, sem qualquer previsão, buscando apenas uma leitura descompromissada. Não que eu não esperasse nada ao abrir O grande poder de Chninkel (Le grand pouvoir de Chninkel), obra em quadrinhos que impressiona já numa breve folheada, graças ao vigor e à robustez dos desenhos barbáricos do grande ilustrador polonês Grzegorz Rosinski. Conhecendo também o trabalho do clássico roteirista belga Jean Van Hamme – que, entre outras coisas, trouxe ao mundo a série de fantasia Thorgal, a detetivesca XIII e as aventuras do bilhardário Largo Winch –, era de se esperar algo refinado, num primeiro escalão de BDs estilo Métal Hurlant, cheio de aventuras prodigiosas e cenários hiperimaginativos. Porém, vale frisar, eu não esperava uma obra-prima.
Mas o que qualifica esta BD como obra-prima? Chninkel foi publicado em 1986 na revista belga (A Suivre), editorada pela Casterman, e, em alguns aspectos, é a típica HQ francobelga dos anos 1980: passa-se em um mundo de fantasia cheio de raças exóticas, guerras intermináveis e déspotas execráveis; além disso, é imersa em um quase interminável ciclo de aventuras e peripécias, num modelo epopeico, que carregam o leitor rumo a uma clássica jornada heroica; por fim, doses generosas de violência e erotismo confirmam a tendência desta HQ em capturar os aspectos mais gerais que definiram esta época como uma das mais vertiginosas da BD.
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A exuberante arte de Rosinski |
Para além dos clichês já representados no próprio background da história, Chninkel se destaca por ser um tipo de parábola religiosa que é, ao mesmo tempo, uma paródia e uma crítica ao universo do evangelismo. Sua história é a de Daar, um mundo em constante guerra, dominado por três imortais e seus povos, que subjugam e escravizam tantos outros: Zembria, a ciclope, que rege um grupo de ferozes amazonas; Barr-Find, o mão-negra, líder de um grupo barbárico de humanos; e Jargoth, o perfumado, que lidera uma raça de elfos que voam em orquídeas carnívoras. No meio de eterna guerra entre os três imortais, uma raça de escravos chamada Chninkel (uma espécie de ratinho antropomorfo) luta por sua própria sobrevivência. As sete páginas iniciais, que mostram o contexto e os atos sanguinolentos de batalha, são particularmente primorosas – apocalípticas, exuberantes, desoladoras.
Um dos chninkels, J’On, sobrevive a uma batalha avassaladora, e, ao ver-se só em meio a uma multidão de cadáveres, presencia a aparição de um monólito negro (tal qual em 2001) que se apresenta como o Grande U’N, mestre criador de mundos. A figura divinal explica-lhe então a sua insatisfação com o mundo em guerra e confere uma missão ao pobre Chninkel: no curso de cinco cruzamentos de sóis (o “ano” no mundo de Daar) ele deve conseguir acabar com todas as guerras em seu mundo. J’On, percebendo sua pequenez diante de tamanha responsabilidade, questiona o criador de mundos sobre porquê ele ser o escolhido, no que a figura divinal responde: “Eu sou encarregado por uma infinidade de outros mundos e de milhares de milhares de seres que criei. Você pensa que eu tenho tempo de procurar qualquer outro neste mundo aqui? Será, portanto, você, J’On, o escolhido”.
Enquanto U’N parece uma figura divinal tirânica, amarga e opressora tal qual Jeová no Velho Testamento, J’On vai se transformando, pouco a pouco, de uma figura à Moisés (afinal, ele tem de livrar seu povo da escravidão e ouve diretamente um chamado de seu Deus) em uma à Jesus Cristo. Logo percebemos que O grande poder de Chninkel tem uma clara intenção de produzir uma reflexão sobre a ética da Bíblia como um todo. Se, em algum momento, pensamos que há nesta HQ certo proselitismo cristão, percebemos, ao final da leitura, que seu verdadeiro sentido reside em ironizar o monoteísmo como um todo, colocando todas as complexas linhas narrativas e desdobramentos da trama à mercê de um ato egoico, paranoico e vingativo concentrado nas mãos de uma imagem onipotente.
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"Doses generosas de violência... e erotismo" |
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Excelente design de criaturas |
J’On, assim, vai viver uma série de peripécias que deflagram sentido claramente mitológico, concentradas em cenas e atos que se configuram como parábolas, e onde rapidamente percebemos figuras e atos presentes nas próprias fileiras dos evangelhos, como Maria Madalena, Judas, os evangelistas, a travessia do deserto, etc. Estas peripécias são narradas com tal desenvoltura, envolvendo-nos em meio a raças particulares, cenários exóticos e coadjuvantes carismáticos, que a linhagem bíblica que parece a todo tempo nortear a história não impede que nos surpreendamos a cada instante. Cada solução pensada por Van Hamme para as armadilhas que a jornada reserva são carregadas de soluções criativas, saídas inesperadas, pequenos milagres que, no contexto da história, não parecem forçados. Cada sincronismo presente na narrativa lembra mais, efetivamente, um evento mitológico do que um deux ex machina, ainda que este recurso seja utilizado no final, mas mergulhado em franca ironia.
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Excelente design de máquinas |
A arte de Rosinski ajuda tudo a se tornar mais épico, com o amplo uso de splash-pages, megarrequadros e lettering expressivo. Além disso há um aproveitamento do preto-e-branco robusto e sensual, com detalhamento minucioso nas expressões dos personagens e excelente design de criaturas, máquinas e cenários. Seus quadros contêm intensa movimentação, praticamente sem linhas de ação, fazendo-nos supor este movimento, tal qual um Delacroix, a partir de uma cinética inerente à expressão do desenho. Em cada mínimo detalhe, um primor. Chninkel por vezes é tão intenso em seus movimentos que parece que estamos vendo uma animação, ao invés de lendo uma HQ.
Parábola sobre o poder


A despeito do final sinistro e assombroso, mais afeito a um niilismo hipercínico, parodiando o apocalipse bíblico, todo o caráter épico de O grande poder de Chninkel, associado às suas várias matrizes de interpretação e à sua arte de primeira grandeza, nos levam a pensá-lo como uma das obras definitivas da BD. Obviamente é difícil pensar em uma obra de ficção nas histórias em quadrinhos atuais que levante tantas questões, e ao mesmo tempo com tanta estranheza e tanto impacto estético. Certamente traduzi-lo para o português deveria ser uma prioridade e uma urgência.