É com grande satisfação que anunciamos Márcio Júnior como colaborador de Raio Laser! Militante de longa data do rock e dos quadrinhos, o goiano Márcio Mário da Paixão Júnior (1972) é produtor cultural, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, sócio fundador da Monstro Discos, MMarte Produções e Escola Goiana de Desenho Animado, criador do Goiânia Noise Festival a da TRASH – Mostra Goiana de Filmes Independentes, além de vocalista da banda Mechanics. Dirigiu o curta O ogro e produziu Faroeste: um autêntico western– ambas animações premiadas. Em 2015, sua dissertação de mestrado foi lançada como livro: Comiczzt! – Rock e quadrinhos: possibilidades de interface. (PB)
por Márcio Jr.
Tédio. De um modo geral, este é o termo que define o atual panorama dos quadrinhos de super-herói que entopem as bancas de revista de norte a sul do Brasil. Golpes de marketing, megassagas que vão do nada ao lugar nenhum, personagens históricos completamente descaracterizados, desenhistas gerados em laboratórios de pasteurização, e malditas cores de photoshop que causam à nossa visão um efeito mais deletério do que aquele que o cigarro produz nos pulmões, são a tônica deste mercado - absolutamente servil ao primo rico chamado cinema. Na lógica verticalizada da indústria do entretenimento, os gibis de super-herói não têm mais fim em si mesmos. Sua função é ser o embrião de um blockbuster prenhe de licenciamentos. Ou seja, as bancas estão abarrotadas de quadrinhos que estão a anos-luz daquilo que chamamos de arte. Pior, as bancas estão abarrotadas de quadrinhos que sequer cumprem com decência sua função de divertir - esta, a verdadeira prerrogativa de um bom gibi de super-herói. No meio dessa pasmaceira nerd, o lançamento do encadernado Homem-Máquina (de Tom DeFalco, Herb Trimpe e Barry Windsor-Smith) pela Panini, reunindo a mini-série de 1984, é motivo de uma alegria inesperada, mas absolutamente bem-vinda.
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Homem-Máquina, ainda na fase de Kirby |
O tal Homem-Máquina é um herói de quinto escalão no cartel da Marvel Comics. Após uma temporada na rival DC (onde criou conceitos que ainda hoje estão entre os mais inventivos do mainstream norte-americano, tais como o Quarto Mundo, O.M.A.C. e Demon), o lendário Jack Kirby retorna ao time de Stan Lee, na segunda metade dos anos 70, com uma exigência irrevogável: escrever, desenhar e editar os próprios quadrinhos. Traduzindo em miúdos, o que Kirby queria era liberdade, autonomia e, por tabela, a possibilidade de provar de uma vez por todas que os méritos pelo sucesso da casa do Quarteto Fantástico eram seus e não do falastrão Lee.
A coisa não transcorreu exatamente como o planejado, mas, como de praxe, Kirby inundou a Marvel com inúmeros projetos vindos de sua imaginação sem limites. Um dos mais excêntricos foi a espetacular adaptação em quadrinhos do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (o Kirby do cinema). Publicada originalmente em 1976 como uma treasury edition (edições especiais em formato gigante), 2001 logo ganhou título próprio, que não durou muito tempo. À medida em que desenvolvia conceitos sob sua ótica ímpar, os leitores foram raleando, o que fez com que Kirby desse um rumo mais convencional à série, focando-a em um super-herói, um androide cheio dos parangolés tecnológicos, mas recheado com sentimentos humanos: o Homem-Máquina. A estratégia proporcionou uma considerável sobrevida ao projeto, com o personagem pilotando agora um gibi solo. Após 19 edições (das quais Kirby foi responsável apenas pelas nove primeiras), o título foi cancelado e o herói relegado a coadjuvante eventual em gibis mais populares. Até ser resgatado, em outubro de 1984, na mini-série em 04 edições compilada agora pela Panini (e publicada em formatinho ainda nos anos 80, pela Abril).
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O exuberante 2001 de Kirby |
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Conan do então "Barry Smith" |
O que faz de Homem-Máquina uma pérola, não é apenas a retomada da cria de Kirby, mas o retorno de um gênio que por mais de uma década esteve afastado dos quadrinhos: o britânico Barry Windsor-Smith. Ao lado do roteirista Roy Thomas, Barry Smith havia causado frisson na primeira fase de Conan, o Bárbaro, no início dos anos 1970. O título destoava de tudo que era então publicado nos Estados Unidos, graças à forte pegada literária de Thomas e, principalmente, ao originalíssimo estilo do desenhista, calcado num repertório gráfico advindo da art noveau. A sofisticação do trabalho de Smith era tamanha que tornou-se impossível lidar com os prazos apertados dos gibis mensais. Conan foi então para as mãos do grande John Buscema, ao passo que Barry (agora Windsor-Smith) passou a dedicar-se a uma nova empreitada, a Gorblimey Press, especializada na publicação de portfólios e fine art. O período foi marcado por uma extraordinária pesquisa gráfica do artista rumo a um classicismo rafaelita, bem como pelo estúdio que dividiu com outros três gigantes das artes gráficas e dos quadrinhos: Jeffrey Jones, Mike W. Kaluta e Bernie Wrightson.
Ao tentar retornar aos quadrinhos, Barry Smith percebeu um terrível efeito colateral do período em que se dedicou exclusivamente ao aprimoramento de seu desenho: ele havia perdido o domínio da narrativa quadrinística. Eis então que o amigo (e veterano dos quadrinhos) Herb Trimpe lhe ofereceu os esboços feitos para a mini-série Homem-Máquina para que pudesse finalizar. Nascia então uma pequena obra-prima dos quadrinhos de super-herói dos anos 80.

Herb Trimpe, falecido em 13 de abril último, foi um profícuo desenhista da segunda geração da Marvel, na virada dos anos 60 para os 70. Fortemente influenciado por Jack Kirby, fez história como um dos principais artistas do Incrível Hulk. É dele, inclusive, a capa da antológica edição da Rolling Stone Magazine que dissecava a editora e seu impacto na cultura jovem do período. Mais ainda, foi de seu lápis que surgiu a primeira aparição de Wolverine, a partir do design criado por John Romita. Se em meados da década de 1980 o próprio Kirby não estava entre os artistas mais populares (eram tempos de Frank Miller e John Byrne), o que dizer de Trimpe? De todo modo, foi a partir dos esboços do quadrinista que se deu o retorno de Barry Windsor-Smith aos quadrinhos. Em magnífica forma.

A edição da Panini custa R$ 26,90. Vale cada centavo. A capa (dura e belíssima) é uma demonstração de como se utilizar impressão metalizada e aplicações em verniz a serviço do design da edição - e não como uma isca pega-nerd. Outro acerto digno de nota é a tradução de Érico Assis e Rodrigo Guerrino, onde fica evidente o esforço em preservar/traduzir a linguagem do futuro imaginada por DeFalco em 1984. No caso de uma série não tão popular quanto esta, a ausência de textos explicativos e extras se fez sentir. E definitivamente foi um pecado imperdoável reproduzirem as quatro capas originais (sensacional sequência em que uma parafernália tecnológica progressivamente constitui a cabeça do Homem-Máquina) em uma única página. Resta então a questão da cor...
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A capa original da primeira edição |
As cores sempre foram um ponto fundamental no trabalho de Windsor-Smith. O artista nunca se furtou a emitir as mais pesadas críticas ao péssimo uso de cores feito pela indústria dos quadrinhos e seu modelo de produção fordiano - que pode botar a perder todo o trabalho realizado nas etapas de desenho e tinta. A partir de seu retorno em Homem-Máquina, Barry Smith jamais deixou de ter controle sobre a arte-final e colorização de seu trabalho. Suas cores possuem função narrativa e são elaboradas levando-se em conta o tipo de impressão a ser utilizada. Homem-Máquinaé um gibi de uma época em que as edições especiais praticamente não existiam no mercado norte-americano. É anterior, por exemplo, ao Cavaleiro das Trevas e Watchmen. Um gibi típico do período, impresso em papel jornal e com limitada paleta de cores. Foi dentro deste limites que Barry criou sua inovadora colorização. Uma vez que a edição da Panini utiliza papel couché brilhante, a proposta do artista não foi integralmente respeitada. Ainda assim é possível se deleitar com a abordagem cromática do inglês.
