por Ciro I. Marcondes

Sempre fui leitor Disney (é verdade que é difícil indicar algum tipo de HQ que eu não leia) desde a infância, e, por mais que estivesse distante desse universo há alguns bons anos (ou décadas), sentia falta dessa parcela tão importante da cultura de HQs aqui no blog. Disney acabou sendo bastante defenestrado por suas associações com o macartismo, além da presença daquele livro eficiente, mas academicamente chucro e datado (“Para ler o Pato Donald”), que cuidou de limar lentamente outros tipos de leitura inteligente de seus quadrinhos. Minha lembrança dos quadrinhos Disney sempre foi de narrativas versáteis, atuais, cheias de ricos universos de personagens, com arquétipos fortes (carregando, lá, seus preconceitos, mas, felizmente, naquela época ninguém se importava), variabilidade temática, instigações cientificas, sociológicas, uma fartura de benesses.
Minha pequena “pilha de lixo” vai do número 1031 até o número 1445, lembrando que, em primeiro lugar, esta série começa no número 449 (primeira estranheza) e que, em segundo, ela consta apenas de números ímpares, já que os números pares eram dedicados ao Pato Donald na Abril dos anos 60-70 (estranheza editorial número 2). É claro que, como estamos falando de Zé Carioca, estamos falando de um tipo especial de cultura Disney, ou seja, uma desenvolvida no Brasil e para o Brasil, e vou privilegiar aqui a análise deste aspecto das histórias. A imensa maioria delas é já da fase de editoração 100% nacional, provavelmente desenhadas pelo lendário Renato Canini, responsável pelo abrasileiramento absoluto do Zé nos anos 70, mas não há créditos.
As histórias do Zé nesta época são intensamente vivazes, muito coloridas, com familiar cenário brasileiro, e geralmente lidando com problemas mais afeitos ao leitor brasileiro: um tipo especial de assaltos e violência, por exemplo, ou a cultura do samba e outros tipos de cultura de matriz negra, geralmente excluídas do compêndio cultural da Disney, ou um certo temperamento mais despojado, elétrico e malandro de todos os personagens, contaminados por um senso de ética carioca que, sejamos francos, ainda faz bastante sentido. Portanto, selecionei quatro histórias que funcionam como um anedotário daquilo que encontrei em Zé Carioca ao chafurdar neste “lixo extraordinário”.
1: A cultura do western e a cultura da violência

Esta pequena história, cuja moral se centrará num engano (Zé será confundido com um bandido e verá que vida “cheia de perigos” do faroeste não é tão legal quando vivenciada no “mundo real”), me faz pensar em dois aspectos dignos de nota: em primeiro lugar, a solidez da cultura do western no Brasil já nos anos 70, quando o gênero, em sua matriz americana, resfolegava. Filmes extremamente críticos à cultura do faroeste, como Os profissionais (66), Meu ódio será sua herança (69) e Pequeno grande homem (70), já delineavam o declínio do gênero, que nas décadas seguintes apenas perderia cada vez mais sua espantosa popularidade adquirida nos anos 30, 40 e 50.
Como o entusiasmo do Zé com o filme de “Texas Bill” parece fresco como o de um menino vendo hoje “Os vingadores”, isso é amostra o suficiente da perenidade da cultura dos westerns no Brasil, com vários cinemas especializados, durante os anos 70, além da popularidade dos chamados “Western Spaghetti” (feitos por italianos), que vão se disseminar a partir especialmente desta década. O nome do filme de “Texas Bill”, “O Cruzeiro furado”, de fato parece parodiar os títulos dos filmes de Sérgio Leone. A história, simpática, ainda flerta com o gangsterismo e o noir, fazendo singela homenagem ao cinema, alinhavando a relação que o cinema de violência no Brasil tem com estas culturas estrangeiras. Se alguém se lembrou, na outra ponta da corda, um filme como Cidade de Deus, eu não acho que seja por acaso.
2: O Rio continua lindo

Tentando trabalhar (mas não conseguindo – como é a tônica da maioria das histórias do Zé Carioca) honestamente, Zé, aturdido com os baixos preços dos concorrentes (uns gatunos malhados), resolve implementar todo tipo de reforma no negócio para conseguir tirar um trocado: muda o stand de localidade (juntamente com seu amigo urubu, Nestor), abaixa os preços, mas nada muda. Resolvendo então pagar para ver qual o segredo dos gatos, eles descobrem que os concorrentes executavam um crime consideravelmente hediondo: levavam os turistas para cima de um morro e os assaltavam. Me pergunto se colocavam eles dentro de pneus enfileirados e tacavam fogo também, para depois jogar as carcaças na floresta da Tijuca.
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Dadinho é o caralho! |
Esta história me trouxe à tona dois imaginários sobre o Rio: primeiro, o turismo, que agora bomba tanto com as Olimpíadas, sempre primitivo, batendo na mesma tecla tropical, mostrando que, num estereótipo grosseiro em um gibi para as massas, ou numa campanha governamental “séria”, o Rio de Janeiro continua sob o signo de umas duas ou três características supostamente imutáveis. Em segundo lugar, o aparecimento, bastante agressivo, de uma terceira característica implicada no mundo caótico dos cariocas: a violência associada a uma inteligência intrusa e perversa, ou a selvageria do gangsterismo à brasileira. De alguma forma enraizado num paradoxo de eterno paraíso perdido, o Rio só tem salvação mesmo, nas páginas do gibi, na figura do malandro romântico que é Zé Carioca, trazendo sempre algo de “bom selvagem”, procurando sempre mostrar ao leitor cínico que naquele algures caótico que se valoriza o descaso e a trapaça, convive também a cultura do “viva e deixe viver” tropical, deitada na rede, jogando futebol.
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Malandraij |
3: Tô me guardando pra quando...

Zé Paulista, pontual e ansioso, pergunta-se onde estará Zé Carioca, que prometera buscá-lo na rodoviária. Ao mesmo tempo, num suspeito estereótipo de erudição paulista, pergunta-se como comprará ingressos para o Teatro Municipal. A verdade é que Zé Carioca estava na praia e vai buscar o primo apressado e “culto” com duas horas de atraso. O grande charme desta história é exatamente a caricatura um tanto ridícula, mas ao mesmo tempo insistentemente pregnante, que se pode observar da cultura de São Paulo a partir do primo de Zé. Este enfoque na dedicação, mas ao mesmo tempo na ingenuidade, acabam por definir o destino do personagem na história. Se o trabalho sem malandragem (exatamente o oposto do Zé Carioca) aparece como fator definidor do paulista na história, é justamente o apego ingênuo ao trabalho que o transforma no melhor tocador de tamborim de Vila Xurupita. Como bom paulista obcecado e dedicado, ele recebe a missão de tocar o instrumento, no bloco de rua da moçada, das mãos do próprio Zé. Levando a experiência como uma missão de vida ou morte e treinando dia e noite, ele acaba surpreendendo os jurados e vencendo o carnaval de Vila Xurupita. Diante deste panorama paradoxal, qual é exatamente, portanto, a visão construída sobre os paulistas nesta história? A do “mané” que não sabe tocar e perde o tempo treinando pateticamente, ou a do bastião da força de trabalho, eficiente até mesmo na cultura alheia? Esta singela historinha tem o poder de invocar as duas perspectivas.
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Locomotiva do Brazeel |
4: Brasil grande

Esta história vale-se de um sincretismo bastante bizarro, que associa o coronelismo arcaico brasileiro a uma certa aristocracia europeia, fazendo a casa do coronel parecer um castelo, e fazendo seus herdeiros parecerem, de algum jeito estranho, vassalos de uma casta nobre e digna. A história, portanto, desenvolve-se em exótica mistura do clima de uma fazenda no interior do Brasil, com direito a sotaque característico e comidas típicas, com romance de fantasmas europeu à Horace Walpole. No final das contas, Zé Carioca, que não participara da reunião por esperteza, salva a família do golpe planejado pelos primos tortos que não estavam sendo contemplados pela herança do coronel.
Este coronel, que usa chapéu, bengala, monóculo e bigodinho, propõe-se na história a ser um signo exótico, de um antigo conformismo paternalista com culturas brasileiras arcaicas, ainda num manso traquejo de favores entre uma cultura herdeira do escravismo (ou de um militarismo torpe e corrupto) e uma certa dignidade empostada perdida na contemporaneidade. Que as regiões mais famosas do Brasil estejam presentes para abaixarem a cabeça diante de tal autoridade não surpreende e, mesmo sendo tiro pela culatra, a história do Zé Carioca acaba desvelando um sentido meio macabro da própria subserviência brasileira. Uma história de terror e fantasmas, sem dúvida.