Quantcast
Channel: Raio Laser
Viewing all 170 articles
Browse latest View live

HQ em um quadro: Jodorowsky for kids, por Arno e Jodorowsky

$
0
0

Holibanum, Alef-Thau, Diamante, Malkuth e Hogl... caem (Jodorowsky, Arno, 1989): Certamente não é recomendável escrever sobre uma obra da qual constam oito volumes e que atravessou duas décadas tendo-se lido apenas um deles, mas, apesar de em alguma instância isso aqui consistir nisso mesmo, tentarei fazer o possível para que este possa ser um texto honesto. Afinal, é função da seção "HQ em um quadro" capturar algo de essencial nos quadrinhos a partir de uma única imagem, e resolvi tornar esta pequena reflexão desafiadora justamente por esta dificuldade. De qualquer forma, confesso que comprei essa HQ pelo preço 1 (um) Euro, numa promoção da incrível Elektra Cómics em Madrid, e não sabia que era o miolo de uma série grande. A ideia aqui é atingir o âmago desta história de maneira volátil, rápida, e se possível, certeira.

O que vemos aqui são cinco personagens da série "As aventuras de Alef-Thau"... caindo. Esta cena está no Volume 5 da saga: El Emperador Cojo (em espanhol); L'Empereur Boîteux, no original. O contexto da imagem merece uma linha: o grupo cai porque foge, através de um rio, de uma infestação de "vírus hipertrofiados" que consome tudo que a circunda. No final das contas, eles caem num local seco, porque a presença da imortal Diamante faz desaparecer tudo que tenta matá-la, incluindo o rio e os vírus. A paisagem é de um colorido vívido e claro, e as formações rochosas são lindas, angulosas e fluidas, algo como a Chapada dos Veadeiros aqui no DF. A geologia e a botânica do mundo mágico é um dos atrativos desta HQ. Parece uma maluquice? Pois bem-vindo ao mundo de Alejandro Jodorowsky, o inimitável criador desta história. Selecionei este quadro com os cinco aventureiros porque ele parece expressar, de maneira metonímica, os componentes básicos deste universo: senso de aventura, o sentimento do companheirismo, o risco constante, o mundo fantástico, a chance ao improvável.

O que chama a atenção nesta série é o fato de o grande Jodoroswky, autor de filmes incríveis, como A Montanha Sagrada (chancelado por John Lennon) e El Topo, e da enormemente cultuada série Incal, com Moebius, ter escolhido trabalhar, paralelamente à sua obra-prima, nos anos 80 e 90, com uma série de fantasia quase infanto-juvenil, elaborada no traço límpido (quase linha-clara) do desenhista Arno. "As aventuras de Alef-Thau" pode não conter as reviravoltas catastróficas, os desdobramentos metafísicos, a inflexão religiosa e as culturas intensamente alienígenas do Incal, mas certamente guardam seu valor. Para situar o leitor: "Alef-Thau" se passa um mundo ilusório (?) de fantasia que é na realidade um jogo (literalmente) entre os chamados imortais. O personagem principal e título da saga, uma figura élfica, começa como um aleijado sem braços, nem pernas e nem perspectivas, que vai ascendendo espiritualmente enquanto seu corpo se recompõe, membro a membro.


Se a história parece insólita, tenho certeza de que não soará tão estranha àqueles já familiares ao universo do Jodorowsky. Cineasta, quadrinista, mago, ator, mímico, dramaturgo, tarólogo. A tudo compete este homem. Suas obras são mergulhadas numa busca por transcendência, onde figuras que se tornaram signo de alteridade, como bruxos, aleijados, anões e assassinos, buscam sua própria forma de redenção mística. Cabalismo, sociedades secretas, hermetismo e bruxaria não são elementos estranhos à ordem cósmica estabelecida por Jodorowsky, e eles podem aparecer tanto no passado distante ou inexistente (caso da fantasia de Alef-Thau) quanto no futuro cyberpunk pós-apocalíptico (caso de Incal). Seu interesse pela moralidade e pelo limiar da sexualidade rendeu também outras obras clássicas, como Os Bórgias (com Manara) e La folle du sacré-couer (também com Moebius). Mas o que parece ser mais primordial na obra deste grande mestre é sem dúvida o aproveitamento de uma estética surrealista como foco de resistência: a uma tradição narrativa ordinativa, bestializante e ilusória; a uma ordem lógica racionalista do pensamento, francamente aprisionadora; a uma série de barreiras psicológicas e espirituais que impedem o desabrochar de um inconsciente livre, totalizante, produtor de um verdadeiro self.

Alef-Thau traz estes elementos de maneira leve, aventureira e contagiante, como se fosse O Senhor dos Anéis que tivesse tomado, digamos, um quarto de ácido. A série é ajudada pelo desenho luminoso e super colorido de Arno, grande ilustrador que, por sinal, faleceu em 1996 e veio a aparecer como personagem na continuidade da série (coisas de Jodô). Mesmo assim, Alef-Thau não é desprovida de enredamentos instigantes, lisérgicos, non-sense ou, em última instância, completamente incompreensíveis, tais como, apenas na edição que eu li: 1) uma personagem, Malkuth, que se suicida transformando-se em energia vital para vir a ser... a nova perna de Alef-Thau. 2) uma cidade habitada apenas por pessoas feias, defeituosas ou velhas, que foram expulsas do celestial Reino do Centro Maestro, lugar encantado que aceita apenas pessoas "perfeitas", pois que seu ideal máximo é a beleza. 3) uma personagem-imortal (Diamante) que morre e renasce como um bebê que simplesmente...cresce muito mais rápido que todo mundo e logo é uma adolescente madura que pode procriar com... Alef Thau. A lista poderia prosseguir em torno de viagens astrais e monstros gigantes. Não o faremos, mas resta pensar, em primeiro lugar, na fertilidade de produção de uma mente febril e absolutamente desvinculada de qualquer premissa clássica que é a de Jodoroswky. E, em segundo e último lugar, em quão longe podem ir as HQs e a ficção em geral para adolescentes, e em quão rasos estes produtos realmente são em suas versões mais populares (literatura de vampiros, filmes de super-herói, séries de zumbis... melhor parar por aqui) . (CIM)    

   

A influência dos gibis na minha paixão pelos livros e outras histórias

$
0
0



Volta e meia, nós da Raio Laser pedimos para amigos nossos escreverem sobre suas experiências como leitores de quadrinhos. A maioria não topa o desafio. A justificativa para a negativa seria um pretenso pequeno conhecimento sobre o universo das HQs. Insistimos dizendo que nesses casos não procuramos textos de especialistas, também nos interessa saber o que pensa o leitor comum, aquela pessoa que já leu quadrinhos mas não tem uma relação tão próxima, intenção ou aprofundada sobre o assunto. Queremos conhecer as memórias afetivas, as impressões instantâneas, os causos pitorescos. O primeiro amigo a topar a empreitada foi nômade bon vivant Leonardo Messias. O segundo é o jornalista brasiliense (anapolino de nascimento) Lúcio FlávioSilva. Apreciador do bom rock e do bom cinema, Lúcio edita um blog muito bacana no qual fala de suas paixões e expurga alguns demônios. Tudo de maneira bastante despojada e pessoal, por vezes bastante intimista, sempre com contornos interessantes e dicas valiosas. No texto a seguir, Lúcio Flávio comenta como os gibis lidos na infância serviram para ele de ponta para a literatura e ainda revela como esse contato germinou uma eterna simpatia pelos quadrinhos. (PB)

por Lúcio Flávio Silva

Houve um tempo, em algum lugar da minha infância, que os sábados não eram apenas dias santos, mas um estado de espírito mágico materializado em nossas visitas à banca de revista mais próxima de casa naqueles passeios matinais com papai. O coroa, sempre protegido do sol com sua boina estilo Pablo Neruda, trazia debaixo do braço a feira do dia e o jornal da semana, enquanto que eu e meu irmão gêmeo nos deliciávamos com os gibis de nossa predileção que ele comprava. E assim, mês a mês, nossa coleção ia aumentando consideravelmente. 

Bem, digam o que quiserem sobre os malefícios da leitura de quadrinhos, da má influência de Walt Disney sobre várias gerações, de milhares de bobagens do tipo. Mas o fato é que, bem antes de Monteiro Lobato e coisas do gênero, aprendi a gostar de ler mesmo foi com Pato Donald e o Mickey Mouse, Tio Patinhas e os seus sobrinhos, com a turma da Luluzinha e claro, com o Maurício de Sousa e seus personagens marcantes.



E, mesmo que não soubéssemos ainda, de uma forma ou de outra, estava tudo lá, nas entrelinhas lúdicas dos quadrinhos, influências de um Molière, das aventuras de Alexandre Dumas, dos desafios científicos de Júlio Verne e H. G. Wells, do submundo das tramas policiais delineadas pela narrativa elegante dos escritores Dashiell Hammett e Raymond Chandler e, veja só, até mesmo Shakespeare. Sim, ou você acha que personagens como o avarento Tio Patinhas e seus corajosos mosqueteiros Huguinho, Luizinho e Zezinho, assim como o inventivo Professor Pardal e os mal-intencionados irmãos Metralhas, entre outros, surgiram de onde?

Como diria o velho poeta maranhense Ferreira Gullar, citando a influência da obra de Le Corbusier no trabalho de Oscar Niemeyer: “Na cultura, assim como na vida, tudo é herança e transformação”.

E dos gibis da turma da Disney, da Luluzinha e da Mônica para os livros de Monteiro Lobato e outros clássicos da literatura infanto-juvenil comAlice no país das maravilhas, O pequeno príncipe, O menino do dedo verde, Meu pé de laranja-lima, entre outros, foi um pulo. Contudo, ainda perduram em algum lugar de minhas recordações infanto-juvenis, aquelas tardes gostosas de sábado e domingo com cheiro de café quente e petas da minha mãe, misturados com as páginas surradas dos meus gibis. Pilhas e mais pilhas de gibis que não sei onde foram parar depois.

Fragmentos de algumas dessas leituras até hoje pairam em meu inconsciente fosse pelo forte caráter social, político ou existencial, embora na época eu estivesse longe de saber o que significava essas coisas todas. Não me esqueço, por exemplo, de uma crítica à ganância e ao capitalismo desenfreado num episódio em que, na medida em que o Pato Donald ia subindo de status numa empresa, seu espaço no estacionamento acompanhava o bem sucedido desempenho profissional dele, simbolizado pelo materialismo. Assim, logo, logo aquela reles e sucateada bicicleta de entregador que ele pedalava no início da história, para cima e para baixo, era substituída por um carro mais aconchegante, e mais outro e outro, até chegar a uma lustrosa limusine.

Numa história do Maurício de Sousa, um personagem vive em agonia com o latente medo de tudo que sente. De não conseguir emprego, de andar sozinho pela rua, de não conseguir ser alguém na vida, de ficar doente, enfim, de morrer. Um dia, a Morte, em osso puro, lhe faz uma visita e o leva embora para o além-mundo e lá está ele a sete palmos do chão, para desespero da Senhora Foice, reclamando do medo de ressuscitar. E olha que estamos falando de um singelo quadrinho de Maurício de Sousa. Mais barra pesada impossível.

Daí veio a fase dos super-heróis e era um tal de barganhar gibis do Homem-Aranha, Super-Homem, Capitão América, Hulk, Homem de Ferro, e claro, Batman, meu preferido, com os colegas do colégio. Além de economizar uma grana, valia pela troca de experiências sensoriais e impressões afetivas de cada um.

Lembro que dessa fase, o maior ato de rebeldia ou quem sabe coragem que cometi foi chegar em casa um dia, para desespero da minha mãe, com uma revista do Conan, o Bárbaroenrolada sorrateiramente debaixo da camisa. Tudo isso para a coroa não se assustar com os traços sensuais das personagens baseadas na literatura de Robert E. Howard e as musas do crimeriano cheias de desejos. Um estratagema usado por pura vergonha que não funcionou, mas que com certeza, foi uma experiência bem menos traumática do que eu me decepcionar com a silhueta do bárbaro nos quadrinhos. Sim, porque eu não me conformava com o fato do personagem criado nos anos 70, não ter a cara do Arnold Schwarzenegger das telonas. Fazer o quê, como disse os meninos dos Stones, a gente nem sempre consegue tudo o que quer.


Nos últimos anos, motivado por experiências amorosas frustradas e momentos familiares mágicos, tenho me dedicado, não sei por que, com mais afinco, à leitura de clássicos como Calvin e Hobbes, Snoopy, Tintime Malfada, esse último o predileto lá de casa, dividido entre tapas com minha sobrinha-afilhada. Não há como não se encantar com a urgente ingenuidade da menina Mafalda.

Bom, tenho muitos amigos que são profundo conhecedores de quadrinhos por aí, verdadeiras bibliotecas e enciclopédias ambulantes sobre o assunto e às vezes, me envergonho e sinto constrangido de não ter o conhecimento que eles têm no seguimento, com as observações sofisticadas e perspicazes sobre mangás, autores conceituados no gênero como um Robert Crumb ou Will Eisner e tantos outros. De modo que só me resta uma grande admiração pela turma.

* Este texto foi escrito ao som de: Out here e Roadmaster(Love/1969 – Gene Clark/1972)

Guerra Civil: o irreversível ocaso dos super-heróis

$
0
0



por Ciro I. Marcondes

1: o sonho de voar

O voo: a fantasia é o que legitima o super-herói
Certo dia, quando estava elaborando algumas linhas de pensamento para escrever um texto sobre a sérieGuerra Civil, da Marvel, que estava lendo no momento, eu adormeci. Curiosamente, estas elocubrações bem conscientes e planejadas acabaram transformando-se no mundo absurdo e sem rédeas do sonho. Não tão exótico, mas significativo: um sonho de voo. Este tipo de sonho não é novidade para mim. Desde criança sonho que possuo a habilidade de voar, seja flutuando como um astronauta, dando rasantes como um jato, ou vertendo o céu aberto, como um super-herói. A quantidade de vezes em que mergulhei na experiência do voo (que é contagiante e prazerosa) me fez ter sonhos continuados a respeito deste assunto. Se, em um sonho, eu estava desajeitadamente aprendendo a voar, no seguinte eu já tinha domínio e podia me exibir narcisicamente para as outras pessoas. Depois de centenas de sonhos deste tipo, me tornei um mestre na arte do voo, e passei a uma nova etapa: desenvolver uma ciência do voo, que é refletir, durante o sonho, sobre a habilidade técnica de voar, sua natureza e limitações, etc. A ciência do voo, por sua vez, me despertou para pensar numa ciência do super-herói.


Em sonhos de voo, é comum que algumas fantasias se realizem. Você vai até o alto dos prédios, sobe em lugares inusitados, invade a casa das pessoas, foge de seus inimigos. No caso deste sonho específico, eu pensava exatamente na capacidade que o super-herói tem de voar (alguns deles, pelo menos: tenho certeza de que este sonho foi disparado por um comando, um tanto ridículo, do Capitão América na última edição de Guerra Civil. Quando vários super-heróis estão caindo ao mesmo tempo, ele grita, em pleno ar: “voadores!” “segurem um amigo!” Fiquei um tempo mergulhado nesse comando “voadores!”, e na subdivisão de um grupo imenso de heróis em tipos, qualidades e castas). Então, alcei voo e subi até o terraço de um prédio velho e detonado de apartamentos. A princípio não percebi que estava na casa de outras pessoas até que vi objetos pessoais no terraço e depois ouvi passos e vozes. Quando percebi que o casal dono da casa vinha em minha direção, procurei me esconder sentado em um sofá atrás de uma parede. Meu dilema, mais como um super-vilão do que como herói, era o de decidir sair correndo, dar um jump pela abertura do terraço e sair voando. Como o poder do voo nem sempre nos obedece direito, fiquei com medo, mas não havia outra alternativa. Saí correndo e, na hora do pulo, eu despertei.

"Voadores!"

Este preâmbulo sobre um sonho de voo tem a intenção de nos fazer pensar sobre a fantasia heroica como um todo, e sobre como ela está guardada em um inconsciente irracional, domínio do desejo, fora de uma zona de demarcação de limites regulatórios e representações (fora da representação mimética, portanto). Voar está entre nossas fantasias mais selvagens e impossíveis. Este ato imaginário representa uma das rupturas mais radicais que podemos ter com o mundo premeditado e calculado dos atos cotidianos. É uma fantasia tão livre e agride de tal forma nosso eixo cotidiano de pagar contas, trabalhar e batalhar as coisas diárias que os gregos guardavam o voo para os deuses. Quando dois homens comuns resolvem mimetizar este ato (Dédalo e Ícaro), mesmo que seja com astúcia e inteligência, são castigados fausticamente pela ousadia do conhecimento. Pela ousadia da ciência. Voar é para os deuses. Voar é um ato de fantasia. Não à toa, cada vez mais o gênero dos super-heróis passa a ser chamado de “fantasia heroica”, sendo situado não mais entre a especulação técnica “hard” da ficção-científica, mas sim na elaboração livre da fantasia. Tzvetan Todorov situaria o gênero entre o “fantástico” (onde há uma explicação, por anormal que seja, para o evento fora do comum) e o “maravilhoso” (onde o evento fora do comum ocorre simplesmente porque é assim, sem nada que justifique seu destacamento de nossa realidade). 

Cap makes a correct statement
Essas coisas vieram imediatamente em minha cabeça quando despertei do meu sonho, e foi também imediatamente que o compreendi: aquelas pessoas normais do apartamento estavam querendo que eu abandonasse o voo. Elas representavam a série Guerra Civil e sua tentativa de normatizar os super-heróis segundo uma histeria de controle contemporânea. Em meu sonho, esta HQ estava me proibindo de voar, “cortando as asas”, e fazendo o mesmo com os super-heróis como um todo: estavam sendo proibidos de serem como sempre foram, e de servirem, de maneira geral, para o que sempre serviram: para que fossem nossa fantasia de liberdade absoluta. Esta fantasia da liberdade estava sendo substituída por uma outra fantasia, social e fetichista, a fantasia de controle.

2: Guerra Civil e uma sintomática social

Desde criança, quando era leitor assíduo de super-heróis, nunca gostei de mega-sagas envolvendo uma multiplicidade enorme de heróis, como Guerras Secretas, Crise nas Infinitas Terras, Desafio Infinito, Zero Hora, etc. Elas geralmente serviam para pôr à prova minha teoria de que, quanto mais super-heróis existem em uma história, pior ela é. Teremos mais seres encapuzados, coloridos, ultrajantemente ridículos, com origens imbecis e inverossímeis, todos juntos, lembrando um ao outro o aspecto constrangedor dos super-heróis em geral. Além disso, estas séries têm o poder de anular as subjetividades interessantes dos heróis, suas marcas de individualidade, seus mitos de origem, transformando tudo em uma massa indistinta de figuras bombadas e mulheres gostosas lutando juntos como um exército saído de um desfile de escola de samba.

Este lado risível de toda cultura de super-heróis foi muito bem demonstrando por Alan Moore com Watchmen (uma leitura que deveria fazer as pessoas abandonarem de vez a leitura de super-heróis mas que, paradoxalmente, as faz continuar lendo com mais assiduidade) e não preciso elaborar muito mais. Basta lembrar a luta histriônica que se trava entre os dois “exércitos” do recente Kick-Ass 2, que é encenada como clímax da tensão que se constrói durante o filme, mas que em nenhum momento abandona o verniz do ridículo, afinal, trata-se de uma paródia de tudo isso que estamos comentando. A série Kick-Ass, por sinal, é baseada em HQ de Mark Millar, curiosamente o mesmo roteirista de Guerra Civil.

Quanto mais super-heróis em uma história, pior ela é?

Então, por que me interessei por Guerra Civil? Ainda mais depois de velho e calejado com estas histórias e depois de tanto tempo que a série foi publicada (2006/07). Ora, justamente porque, em princípio, Guerra Civil parecia querer trabalhar, exatamente no seio mais incorruptível dos quadrinhos de super-heróis, o caráter paradoxal de se querer refletir sobre eles sob o signo da realidade. Vejam bem, não se trata de torná-losrealistas (como havia feito, por exemplo, o Demolidor de Frank Miller no fim dos anos 1970), coisa banal, completamente incorporada à HQ de super-heróis há décadas, mas sim de refletir e dar sentido a esse fenômeno, especialmente quando relacionado a uma regulação da sociedade através de normas e processos burocráticos.

Guerra Civil parte de um mote muito interessante: um acidente com super-heróis irresponsáveis que se exibiam para um reality-show provoca um desastre de enormes proporções e a morte de centenas de civis, incluindo muitas crianças de uma escola. Após este evento, a sociedade civil passa a questionar a legitimidade de atuações dos super-heróis fora do perímetro da lei. Intensos debates ocorrem, e a existência dos super-heróis é colocada na berlinda. Uma lei é aprovada no senado americano: todo super-herói que não se apresentar à SHIELD (órgão do governo) para ser regulamentado, institucionalizado e corporativizadocomo uma espécie de super-policial, será declarado como fora-da-lei e, por consequência, caçado pelos seus pares que se apresentaram. Um grupo oficial e temente à lei, liderado pelo Homem de Ferro, se forma, e outro, rebelde, liderado pelo Capitão América, terá o papel de antagonizar o primeiro e lutar pela integridade da função original dos super-heróis, que certamente não inclui obedecer a políticas de governo.


Começa a corporativização dos super-heróis
Estes sintomas de Guerra Civil pertencem, evidentemente, a um quadro maior. Hoje, cada vez mais, os Estados nacionais veem como solução para os problemas sociais apenas a regulamentação, classificação e burocratização de todo tipo de demanda pública, e as instituições, ao invés de ajudarem o indivíduo, o aprisionam em seu próprio fisiologismo. Hospitais se tornam infernos intermináveis de processos em etapas degradantemente desumanas; delegacias de polícia se tornam depósitos de boletins de ocorrência que nunca são investigados; processos jurídicos se tornam meios de reproduzir de maneira pura e lógica a perversidade de seu próprio sistema de regras, enlouquecendo a população. Foucault falava sobre essa perversidade intrínseca às instituições, que elencam hierarquias para manter ordens de micropoder, regulando a sociedade a partir de seus patamares mais elementares, e não em seus escalões mais evidentes de poder. Já se vão décadas desde que Foucault denunciou estas relações perniciosas, e o que vemos é uma intensificação destes sintomas. Não à toa, tenta-se hoje em dia regular as manifestações que ocorrem pelo País (“não usem máscara”, “não ultrapassem este perímetro”, “sem violência”, etc.), mas esta tentativa vai de encontro à própria natureza da anarquia, que é avançar sempre e sem concessões contra toda e qualquer regulação e qualquer instituição. Um dos resultados são discussões bisonhas (para não dizer bizantinas) em programas de TV, com âncoras abobalhados e atônitos, sem conseguirem formar qualquer opinião sobre o assunto. Que uma discussão sobre coisas como essas tenha chegado a um gibi de super-heróis em muito me surpreendeu, e positivamente.

Mark Millar é um autor muito talentoso e já havia conferido seu poder de subverter o universo dos super-heróis em outras séries. Em Kick-Ass ele vai levar estes conceitos ao paroxismo da pós-modernidade, realizando ao mesmo tempo uma história legítima de supers e uma paródia que consegue, em igual grau, ridicularizar e homenagear o fascínio por este universo. Em Superman - Red Son ele vai perpetrar sua própria visão política sobre o caráter arquetípico dos heróis da DC entendendo a História como uma narrativa que se assemelha a um jogo de xadrez, onde um movimento qualquer em falso é capaz de desencadear elementos completamente novos e radicais aos processos que se organizam na estratégia desta mesma História.

Cena de Kick-Ass 2: ao mesmo tempo paródia e homenagem

Millar parece interessado em um processo irreversível de ler o super-herói sempre como algum tipo de modulação de fenômenos históricos e sociais, como se fosse impossível, hoje em dia, inseri-lo novamente no campo da fantasia (como vimos no começo deste texto). Como se sua natureza própria tivesse se maculado de maneira irreversível com as transformações dos anos 70 e 80, e, a partir de agora, só fosse possível representar o super-herói de maneira esquizofrênica: sem se saber o que é, pra que serve, como se insere na cultura contemporânea. Como se só pudesse ser representado como metáfora, como sintoma, como signo de desarranjo.

3: Diante da viralização de tudo, o super-herói em frangalhos

Evidentemente, não li todas as edições que concernem todos os arcos de histórias de  Guerra Civil. A série se espalhou por todos os títulos da Marvel em 2006/2007, abrangendo literalmente centenas de histórias. Estou me concentrando especialmente na série principal, com sete edições, escrita por Millar e ilustrada por Steve McNiven. Aqui, somos transportados a um universo Marvel sombrio, habitado por super-heróis aproveitadores e cínicos, lembrando a atmosfera do futuro desagradável da série Reino do Amanhã, da DC Comics: de alguma forma, ambas as séries partem da premissa de que os super-heróis vão abandonar seus ideais apolíneos e sua ética de correção moral para se ocuparem de atividades mais personalistas, hedonistas, testando, como em uma grande competição de deuses que olham a humanidade de cima para baixo, os limites de seus poderes.

A arte hiperdetalhista de Steve McNiven
A primeira edição é muito boa. Introduz os elementos principais para um intenso debate ético e coloca todas as cartas na mesa. A arte de Steve McNiven, bastante primorosa, ajuda a aclimatar este decadentismo heroico. Obscura, mas ao mesmo tempo apegada a mínimos detalhes, como a textura das roupas dos heróis, a costura de suas fantasias, além de cada músculo de cada expressão facial, a arte de McNiven desde já aponta o tom de seriedade épica (tal qual Alex Ross realizou em Reino do Amanhã) que a história vai assumir. Com a intensidade das batalhas que vão se sucedendo na série, as roupas vão se transformando em trapos verossímeis, como se cada rasgo tivesse uma origem bem pensada, e cada arranhão doesse no herói como efeito real da maceração da carne viva.

Logo na primeira página somos introduzidos ao grupo Novos Guerreiros, liderados por um entusiasmado e ambicioso Speedball. Eles estão sendo filmados pela rede de TV WTNH enquanto espreitam uma casa onde estão escondidos quatro poderosos super-vilões recém foragidos da prisão Ryker. Speedball e seus companheiros se questionam se são capazes de derrotar estes inimigos em combate, e calculam que, contra inimigos mais poderosos, as resenhas e classificações na Internet do show deles será muito melhor. Eles são então percebidos, dentro da uma rotina cotidiana, quando esses vilões estão retirando o lixo de casa. Este tipo de detalhe é importante para ressaltar o clima de enfado que contagia esta história de uma forma geral, como se os super-heróis estivessem efetivamente cansados de serem quem são. A batalha se dá, e o vilão Nitro provoca uma explosão de proporções épicas. Centenas morrem. O debate se inicia.

Think about the ratings!
Desde cedo, Millar se propõe e culpar uma cultura banal übermidiática (como o reality show, o imediatismo da demanda por feedback virtual, além das decisões impensadas do grupo, que são tomadas mais ou menos da mesma maneira com que se posta qualquer idiotice em uma rede social) pelo deflagramento da guerra civil de super-heróis. Speedball e seus amigos tomam suas decisões ao mesmo tempo em que o nível de popularidade deles diante da Internet ou da TV sobe e desce como numa gangorra, e o conteúdo de seu show procura refletir o mecanismo deste imediatismo. Baseado em um ideal de performance diante de uma audiência, o reality show nada pode fazer a não ser surfar sobre esta sequência de processos imediatos e incontornáveis. Speedball e os Novos Guerreiros estão sob a pressão de um mecanismo que detém controle sobre eles, e que, de alguma forma, acabou incorporando-os como parte de si próprios, vertendo-os ao status de informação que precisa ser replicada a qualquer custo, sem processamento, sem representação. É um mecanismo viral, exatamente como este que percebemos nos vídeos e memes que são espalhados pela Internet, mas em uma escala maior, mais complexa e que duplica também nossa incapacidade de se fazer algo a respeito.

O teórico Muniz Sodré diria que, na era da Internet, a informação precisa verter o espaço no menor tempo possível (daí as decisões rápidas e não-processadas de Speedball), tornando-se impossível que ela chegue a ser representação(ou seja: que possa ser decodificada e reavaliada culturalmente). Como a motivação destas imagens contemporâneas é a de se espalharem pelo espaço numa temporalidade praticamente instantânea, elas apenas se reapresentam sem poderem ser crackeadaspelo processamento humano, e o imediatismo do reality show, que em verdade é uma realidade deturpada que procura assumir a nossa própria realidade, é um dos momentos mais intensos deste mecanismo de reapresentação. O resultado é que nossa realidade e a realidade do reality show nos parecem indiferenciadas, tornando difícil o ato de achar sentido ético, existencial ou mesmo material para as imagens que vemos nas mídias. Likesno Facebook ou sinais de positivo no Youtube efetivamente se tornam importantes como comer ou dormir. A rigor, Speedball, do alto de sua estultice, nem é efetivamente um culpado.

O super-herói na berlinda
Millar compreende que este esvaziamento da imagem contemporânea é o que embaralha o sentido ético cristalino dos super-heróis, mergulha-os num mundo sombrio e gera a guerra civil. Evidentemente, o autor escocês está também fazendo uma meta-crítica, lendo a mídia quadrinhos como submetida, contemporaneamente, ao mesmo imediatismo e aos mesmos processos e mecanismos que fazem dos reality shows o que são, e da indústria dos quadrinhos o que ela é. Não à toa, se folhearmos uma revista de comics contemporânea, veremos uma revisteca de umas 20 páginas intercalando quadrinhos de ação pura e propagandas.  Vale lembrar que a DC Comics é propriedade do grande mergingque foi a união da Warner Communications(mídias visuais), da Time Inc. (mídia impressa) e da AOL (mídia virtual), tornando-se o maior conglomerado de mídia do mundo. Já a Marvel, ao ser englobada pela Disney, passou pro processo semelhante. A replicação deste sistema evidentemente chega até o conteúdo dos quadrinhos, como se fossem bonecas russas uma dentro da outra, e a crise geral de representatividade institucional que relaciona o mundo corporativo ao mundo cultural se reflete em Guerra Civil. A grande questão é: Guerra Civilé o que ela critica? Tendo sido amplamente difundida entre todas as dezenas de títulos da Marvel, a saga foi um grande sucesso comercial e pode ser vista como um ato de sabotagem que, ao mesmo tempo, impulsiona as vendas da editora e a expõe ao ridículo. Funciona também como um apelo em homenagem a uma cultura clássica de super-heróis que fenece, e é responsável por jogar uma pá de cal sobre essa mesma cultura. O final, com o discurso otimista do Homem de Ferro, é muito ambíguo, e absolutamente inconclusivo, se não maquiavélico e cínico.

Stark: hipócrita e chorão
Um dos sintomas destas relações está na hipocrisia de Tony Stark. Enquanto, surpreendentemente, o mais patriota dos heróis, Capitão América, decide se refugiar na ilegalidade e no anarquismo (mostrando que sua fidelidade era com o ideal inatingível e fantasioso que gera a cultura do super-herói, e não com a pátria), o Homem de Ferro, abraçando a iniciativa governamental e tomando a decisão de chefiá-la, é acossado por constantes crises de consciência. Stark, o industrial, cientista, gênio, figura calculista e metódica, precisa ser o vetor de toda essa assombrosa transformação, e diferentes forças o puxam para todos os lados, seja a mãe de uma das vitimas, seja a SHIELD, seja sua amizade com Steve Rogers.

No final das contas, a aposta de Stark é a de que o pragmatismo é mais eficaz do que a fantasia, e ele serve como um arauto agourento que informa os leitores de quadrinhos de que não existe mais a possibilidade de voar em seus sonhos. Ele informa os seus leitores de que a única possibilidade de existência dos super-heróis no século XXI é que eles sejam super-policiais sem a fantasia do anonimato (identidade secreta), sem a fantasia de uma ética originária apolínea (agora eles devem servir à política de governo, seja ela qual for, o que torna absolutamente estranho que supostos gênios como Hank Pym ou Reed Richards aceitem isso sem qualquer julgamento do que isso implica) e, por fim, sem qualquer fantasia (a roupa) como um todo. Stark aceita sua missão de maneira tão esquizofrênica e hipócrita que comete atos absolutamente extremos, como encher o Capitão América de porrada até ele literalmente quase morrer (enquanto, por dentro, se ressente disso, meio chorão) ou enviar os heróis-prisioneiros para uma inefável prisão numa zona fantasma, condenando gente boa e nobre, de maneira quase fascista, ao mais inexorável dos exílios.

A rendição do Capitão América
A rendição do Capitão America no final, mesmo em meio a uma fulgurante vitória em campo de batalha, não deixa dúvidas: de alguma forma, o Homem de Ferro está certo. Não há mais vitória possível ao idealismo do super-herói. Sua trajetória é histórica, como tudo o mais, e não há como deixar de pensar que a fantasia heroica não passa de mais uma “velha roupa colorida”, goste-se disso ou não. Millar parece dizer: “eu poderia fazer o Capitão América vencer, mas seria só no gibi. No mundo real, o processo continuaria, irrefreável e constante”. Nós poderíamos clamar que se volte a fazer histórias de heróis que nos permitissem voar, como as coisas que Kirby, Stan Lee ou John Byrne faziam, mas sabemos que isso não é mais possível, e que o super-herói contemporâneo só pode ser algo próximo de uma aberração como Kick-Ass ou o Batman de Nolan.


Se formos prestar a devida atenção, este processo de decaimento já está em curso desde as origens espúrias, vagabundas, estritamente comerciais do super-herói na era de ouro, sua decadência nos anos 50 e posterior renascimento com o herói humano, mas já decantado, da Marvel. Como se fosse favas contadas, talvez fosse melhor para o super-herói, em sua previsibilidade comercial, que ele tivesse fenecido com os personagens da era de ouro, recolhido às suas significações meramente históricas, mais um evento passageiro na trajetória das publicações pulp. Um código de censura permitiu que ele ressurgisse levantando o bastião das histórias em quadrinhos nos Estados Unidos, mas de alguma forma todos sabiam que aquilo era uma bomba-relógio: em algum momento, sua própria inconsistência o faria implodir, transformando-se num animal diferente (Grant Morrison? Mike Allred?) ou espalhando carcaças metalinguísticas como Guerra Civil. Seria o super-herói glamouroso que se descobre agora no cinema capaz de salvar o herói em frangalhos dos quadrinhos? Eis uma boa pergunta. 

Quem pode salvar o super-herói em frangalhos?

STRIPBURGUER e os quadrinhos do Leste Europeu

$
0
0

A Bolha Editora, que teve textos sobre seus quadrinhos aqui na Raio Laser, tem feito um bom trabalho trazendo HQs de outras nacionalidades ao Brasil e publicando autores independentes. Entre coisas difíceis de se encontrar, como as Tijuana Bibles (quadrinhos pornográficos que tiveram circulação dos anos 20 aos anos 60, e que utilizavam personagens como Popeye e Dick Tracy), ela traz também quadrinhos que foram editados originalmente pela STRIPBURGUER, editora eslovena de quadrinhos alternativos que tem como ideia publicar artistas do mundo todo, entre eles também brasileiros, como Dw Ribatski, Allan Sieber, Jaca, etc. Dentre as edições distribuídas pela Bolha Editora, tive a felicidade de encontrar por aqui  Stripburek, em que eles fazem uma compilação de quadrinistas do Leste Europeu a fim de apresentar para o mundo pessoas que têm uma perspectiva diferente a oferecer. Nos Estados Unidos, por exemplo, este material foi distribuído pelo pessoal da Top Shelf, editora conhecida por publicar Do Inferno e Liga Extraordinária, do Alan Moore.

Pessoalmente, amo quadrinhos alternativos e contemporâneos e, quando posso, confecciono os meus próprios, e faço sempre o possível para conhecer o underground de outros países, como fiz em minha viagem ao Chile, e pretendo fazer em minha próxima viagem. Como viajar ao Leste Europeu ainda é um sonho distante, tenho que agradecer imensamente à Bolha Editora pela distribuição desta pérola que nos faz ter uma compreensão profunda a respeito do que estes quadrinistas acham sobre cultura, política, e dia-a-dia do Leste Europeu. São quadrinhos de autores nunca antes publicados no País.

É engraçado perceber que diariamente recebemos álbuns e revistas de quadrinistas norteamericanos, franceses, belgas, italianos e japoneses em nossas livrarias e bancas de todo o país, mas raramente ocorre de recebermos material de um local verdadeiramente diferente, como esta compilação da Europa Oriental. É difícil imaginar como são estes países, que para tanta gente fazem parte da África, ou que alguns pensam ser algo como “árabes”. Porém, há muita vida cultural em meio a todo este continente cinzento, que só agora tem virado roteiro de viagem pelos os turistas mais curiosos, à procura de paises belos e com hospedagem barata, fora do eixo Paris-Londres.

No álbum Comics from other Europe temos uma visão diferenciada do mundo e do tempo aonde se passam estas histórias, que, com várias páginas ou apenas uma, são muito interessantes por proporcionar a visão destes autores, que se expressam por meio de temas que vão desde a guerra até o cotidiano. Coisas como a história mais conhecida, onde rebeldes contra uma Alemanha nazista encontram um ganso que bota ovos de ouro. Nas piadas com o Superman, temos uma visão interessante destes fatos, fora da ótica de heróis americanos, o que é geralmente o mais comum. Quadrinhos non-sense estão presentes também, aumentando as páginas esquisitas do livro.

É engraçado encarar que Stripburek já previa esse interesse pelo Leste Europeu em pleno inicio dos anos 2000, e que tenha levado 13 anos para ser publicado aqui. Existem, é claro, artistas conhecidos no ocidente, como Edvin Biuković, Zoran Janjetov, Grzegorz Rosiński e Enki Bilal. Porém, muitos artistas ainda permanecem incógnitos em nosso país. Entre eles:

Aleksandar Zograf (pseudônimo de Sasa Rakezic): sérvio, teve seus quadrinhos publicados (dentre eles “Weirdo” e “Zero Zero”) nos Estados Unidos pela editora Fantagraphics. 

Danijel Zezelj: croata, que ficou posteriormente conhecido em seus trabalhos no selo Vertigo, tendo feito edições em Vampiro Americano, Terra Sem Lei, sendo substituto de J.H. Williams na série Desolation Jones

Jacek Fras: polonês, ganhou prêmio na categoria de novos talentos em Angoulême. 

Askold Akshin, que faz várias colaborações no meio underground, incluindo uma coletânea sobre histórias de Zumbis, estas publicadas nos EstadosUnidos

Igon Baranko: ucraniano, mora nos Estados Unidos, colaborou com Alejandro Jodorowsky na revista Métal Hurlant, e trabalhou em seu próprio quadrinho autoral, The Horde, que foi comparada com o estilo de Jodorowsky, em uma historia que se passa em 2040, na Rússia. 

January Misiak: polonês, publicou diversos trabalhos no leste europeu, inclusive nas coletâneas StripBurger. Publicou um livro chamado Siedem tygodn ou “Seven Weeks”. 

Pavel Cech, da República Tcheca, ilustrador de diversos títulos

Milorad Krstic, da Eslovênia, artista plástico, tem um estúdio aonde faz montagens com fotos de pessoas e pinturas. 

Roman Tolici, outro habilidoso artista plástico, nascido em Ghetlova, antiga União Soviética. Formado na Romênia, alcançou conhecimento em todo o mundo com suas séries de pinturas realistas. 

Sasa Kerkos, artista da Eslovênia, que também trabalha como design, e que lança quadrinhos também pela Stripburger.

É interessante ver que apenas os mais conhecidos dos cartunistas deste bloco europeu se tornaram conhecidos por aqui, ou nem isso. Conhecido como rei dos quadrinhos da República Tcheca, Kája Saudek ainda permanece no anonimato entre nossas publicações, e, em seu próprio país, apesar de publicar de maneira underground durante toda a década de 70, só foi oficialmente publicado no final da década de 80, com o fim da União Soviética, tendo depois conseguido sustento quando entrou na carreira de quadrinhos pornôs.

É um complicado mundo, os dos quadrinhos do leste europeu, e é um mundo totalmente novo, onde existem países em que a tradição de fazer quadrinhos só começou nos anos 80, e de países que saíram da guerra recentemente. Apesar disso, houve gente que batalhou e enfrentou guerras, para, enfim, publicar quadrinhos.


A metáfora adolescente: entrevista com Rafael Coutinho

$
0
0
por Pedro Brandt e Ciro I. Marcondes
fotos Polyanna Carvalho

Foi com muita curiosidade que li a HQ online Backstage, assinada por Rafael Coutinho e Gabriel Góes. O primeiro é um dos principais nomes dos quadrinhos brasileiros contemporâneos, desenhista de Cachalote(a ótima graphic novel escrita por Daniel Galera) e Beijo adolescente. Góes eu conheço desde meados dos anos 1990 e sempre me impressionei com suas ilustrações e quadrinhos – nos últimos tempos, quando nos encontramos, inevitável eu perguntar para ele “já terminou o Vestido de noiva?”, me referindo à segunda parceria dele com o roteirista Arnaldo Branco adaptando texto de Nelson Rodrigues (a primeiro foi Beijo no asfalto). Espero que saia em breve! Pois foi o Góes – um dos mentores da revista Samba) – que nos deu o toque de que Rafa Coutinho passaria alguns dias em Brasília, perguntou se não gostaríamos (eu e Ciro) de entrevistá-lo. Munidos de algumas perguntas, fomos até a Laje (estúdio em Brasília onde trabalham desenhistas e artistas plásticos, e que virou uma espécie de ponto de encontro dessa galera) para o bate-papo. O chato de entrevistar caras como o Coutinho é que ele é tão gente boa que dá vontade de desligar o gravador e deixar a missão da entrevista de lado, ficar só trocando ideias, falando de quadrinhos, cinema, música, de vida, enfim. Mas acho que a entrevista manteve bastante desse aspecto informal que foi o encontro. Degravar tudo foi um parto (degravar é sempre um porre!) e depois de concluída essa etapa, a transcrição ficou perdida num limbo, numa zona fantasma entre a o excesso de preguiça e os compromissos aos borbotões. Eis que seis meses depois, finalmente colocamos o texto no ar, aproveitando mais uma visita do filho de Laerte à capital federal – ele veio dar uma palestra que faz parte da programação da exposição Macanudismo, sobre o trabalho do argentino Liniers, em cartaz até 2 de março, no Museu dos Correios, em Brasília. Por conta do atraso, alguns detalhes da conversa podem soar redundantes. Mals aê. (PB


De Bang Bang para Cachaloteé possível perceber um grande salto de qualidade no seu desenho. Como você enxerga o seu desenho, está satisfeito com ele ou busca uma mudança?

O artista é muito vaidoso e o estilo é uma expressão dessa vaidade, eu acho. Quando a gente é jovem, ele vem como um objeto de autoafirmação, quase como a perda da virgindade. É o ato de precisar obsessivamente achar o meu estilo, e isso vira quase uma busca fora do desejo de desenhar ou contar história, quase como achar uma chave de entrada pra algo que você não tem.

Sempre gostei do meu desenho. Nunca tive essa relação muito vaidosa. Ficava frustrado quando alguma coisa saía muito errada, sempre fui um tanto crítico em relação a isso. E recebi muita crítica, muita gente me ajudou a ver onde estavam os meus defeitos. E você vai moldando isso aos poucos. É a busca de cada artista... desculpe, eu estou super travado...

Você acha que sofreu mais pressão por ser filho de um quadrinista famoso?

Não, mas eu sabia desde cedo o que era desenhar bem pra caralho, isso eu sempre soube. E eu queria. Acho que essa era a minha pressão maior, uma pressão que eu me colocava. Eu queria desenhar bem pra caralho. Pratiquei com mais afinco e fui devoto dessa busca mais do que outras pessoas são. E por conta de ser filho de um desenhista que trabalha com um desenho mais realista, que tem um domínio muito forte de anatomia, vocabulário visual muito extenso – que sabe fazer a porra de um barco à vela pirata de cabeça – eu me liguei desde cedo que o que compunha desenhar bem não é simplesmente saber desenhar as coisas, é tudo isso: é ter um vocabulário, é entender de anatomia, entender de estrutura arquitetônica, puxar um ponto de fuga decentemente... Eu aprendi essas coisas cedo e me pressionei pra chegar ali.

 Tem algum trabalho do teu pai que te deixou mais impressionado?

Os Piratas me deixaram muito de cara, vendo ele desenhar, pensando como ele consegue. Lembro de, na infância, ficar muito impressionado de como ele sabia desenhar o Jaspion de cabeça. E ele nunca estava comigo quando eu estava vendo Jaspion. Jogar “Imagem & Ação” com o meu pai era assustador – começava de uma linha, parecia que nada se encaixava e, nos dois últimos segundos, blop, fechava um Charles Chaplin girando o mundo.


Você acha que isso é uma capacidade cerebral?

Não, prefiro não pensar nisso.

Você pediu muita dica de desenho pro seu pai?

Ele nunca me orientou, “faça isso ou aquilo”. Mas várias vezes eu perguntei pra ele como fazer as coisas. Acho que com uns 15 anos eu já estava mais interessado no que eu era capaz de fazer. Lembro de um exercício que ele me deu quando eu estava entrando na faculdade, fazer linhas paralelas com pincel. Cobrir vários papéis. Mas só lembro desses. Ele nunca me orientou. Ele nunca quis que a gente seguisse o caminho que ele seguiu.

E papo de quadrinhos?

Isso sim. Eu e meu irmão vivíamos cavando a biblioteca dele, pegando quadrinhos que visivelmente não eram para a nossa idade.

A biblioteca dele hoje ainda é a mesma?

Não, ele está numa fase de desapego. Peguei muita coisa pra mim.

Você tem essa coisa de ter quadrinhos, colecionar?

Sim, tenho uma biblioteca grande. Parei por uma questão financeira, o meu filhote... Mas tenho uns descontroles... em Angoulême que quebrei a família.

Quem dos quadrinhos efetivamente te influenciou?

Jaime Hernandez, Munhoz & Sampayo, Moebius, Katsuhiro Otomo, Jaime Hernandez de novo... ele é muito foda. Tayo Matsumoto... muitos franceses, Bastien Vives... tem uma geração argentina foda...

O seu traço tem muita identidade, e não é muito fácil sacar quais são as suas influências. Isso foi uma busca?

Foi por educação. Eu entendi lá em casa, pelo meu pai e amigos dele, que não era legal copiar. O legal é aceitar o próprio estilo. Foi em casa que eu me liguei nisso.

Cachalote tem uma narrativa muito cinematográfica. Qual a sua relação com o cinema?

Eu adoro cinema, também foi uma coisa lá de casa, vimos muito cinema de arte. Lembro, de moleque, vendo filmes japoneses... Gosto muito do Chabrol, Fellini, Coppola, Bertolucci, gosto muito dos irmãos Dardenne, Gaspar Noé...

Você pensa em cinema quando está criando?

Não como esforço consciente. Gosto de fazer umas cenas complexas, que o olho dê uma viajada, gosto do plano aberto, gosto do tempo do cinema, de o plot não precisar de fechar. Estudei roteiro muito tempo, fiz cursos, li caralhadas de livros sobre roteiro.

Existe uma característica de experimentação maior em O beijo adolescente. Você tem trabalhado a obra de maneira seriada e cada página com um conceito diferente da anterior, usando recursos diferentes. Qual foi a sua intenção ao soar experimental? Você ficou com medo de que esse excesso de informações fosse ofuscar o conteúdo da história, deixando-a difícil de compreender?

Eu gosto muito de fazer quadrinhos pensando em um desafio novo. Até porque são dois anos e meio fazendo a mesma coisa. Seria muito tempo fechado numa proposta e não sair dela. Não posso ficar pra trás dos japas, nem dos franceses. É uma obrigação moral minha. Toda vez que eu sento pra desenhar eu tenho essa neurose de fazer bonito.

Percebo que sua postura é um pouco diferente da postura de muitos dos seus colegas de geração...

Em que sentido?

[PB] Percebo uma falta de ambição. E não digo isso dos caras que já estão “acontecendo”, mas especialmente dessa galera que está fazendo as próprias publicações. O que você acha que poderia melhorar nessa cena de quadrinhos independentes?

Eu gosto muito dessa cena, a quantidade de gente, de propostas diferentes, jeitos de contar história. Entendo o que você está falando. Temos um óbvio problema de mercado, que limita a produção. É muito complicado abrir espaço na agenda pra fazer quadrinhos. Quadrinhos é um contrassenso, um problema pra o artista gráfico, porque você ganha muito pouco, passa muito tempo fazendo, se entrega demais para um retorno muito pequeno. É quase como ser animador. É muito ingrato e lá pelas tantas todo mundo fala “foda-se essa porra”, vou engavetar. Mas não consigo me comparar muito aos outros. A gente tem que fazer muito sacrifício pra fazer essa merda dar certo. E acho que eu dei sorte, algumas sortes: achei uma editora legal logo de cara, que me apoiou, me deu espaço pra criar, que me diz “não tá legal, refaça”, e me orienta pra caralho. Encontrei o Daniel Galera, que foi uma puta aula, e me envolvi com muita gente de outras áreas, como o Coletivo Z, um coletivo de design que eu fiz parte depois da faculdade, uns caras muito obsessivos, que iam até o final de tudo que faziam. Eu entrei e saí de vários projetos antes de fazer quadrinhos nos quais o determinante era esse: chegar até o fim. Desenvolvi um pouco esse raciocínio também: não adianta nada se eu não fizer isso muito bem e até o fim.

Você vive só de quadrinhos?

Não! Faço duzentas coisas. Tenho a Narval, trabalho três dias por semana nela, que é uma loja online de quadrinhos, do selo Cachalote. Antes disso tive uma loja física, com oito sócios. Trabalhei durante anos com animação, me acostumei a projetos longos, ver depois de um ano aquele volumão de trabalho acumulado. Faço ilustração eventualmente. Estou fazendo projetos de curadoria. A exposição do Laerte na FiQ sou eu que estou montando... Fiz uma peça agora como o meu pai. Ele escreveu e a gente bolou a coisa junto, eu fiz vários papeis, ele atuou também, tem na internet...

Você gosta de trabalhos longos...

O beijo adolescente serão vinte números... Vou fazer até os 45 essa porra.

O beijo adolescente representa uma coisa que essa galera independente tem uma certa dificuldade em fazer, que é construir narrativas longas.

O beijo, além dos desafios de linguagem... [pensa] Eu vim de uma coisa p&b, eu queria fazer uma coisa pra um público mais jovem – embora a maioria dos compradores sejam da nossa idade – eu queria falar do adolescente moderno. Algo para o adolescente que está cansado dessas coisas doces, Mauricio de Sousa...

Você subverte esse quadrinho adolescente, fazendo uma grande metáfora do adolescente contemporâneo. Você acha que conseguiu atingir o público adolescente?

Não faço ideia. Uma escola queria adaptar, fazer uma peça, mas não sei o que aconteceu. Alguns adolescentes compraram, eu pedi pra filhos de amigos meus lerem e dizerem o que acharam, recebi umas críticas legais – eles são bem cruéis – “não gostei”, hehehe.

Você tem a história projetada na cabeça até onde?

Tenho vários pedaços, sei onde ela vai terminar e vou compondo. O Beijo veio também como uma tentativa de achar uma forma, uma alternativa, de viver de quadrinhos.


Quem tá bancando?

Eu.

E ela volta?

Ela volta... a gente fez um Catarse que deu super certo. Foi uma aula, me abriu os olhos pra essa nova era que a gente vive, que não tem intermediador, não tem atravessador, é você e o público.

Mil Quadros com Sica. Vendeu tudo?

Vendeu.

Qual a sua ideia sobre o trabalho de desconstrução dos quadrinhos que vem sendo feito no Brasil, e do qual talvez você seja a principal referência?

É o que a Samba já faz, o Sica já faz. Não fui eu que inventei, nego gosta de experimentar, de ver até onde vai a linguagem. Em algum momento eu vi muita crítica e até pensei que fosse verdade, que os quadrinhos brasileiros pecam por roteiros muito ruins, que faltava a classe dos roteiristas. O quadrinista brasileiro, quando começa, ele já tem que contar as próprias histórias. E ele não sabe, isso exige uma maturidade muito grande, mais pra contar história do que pra desenhar. E geralmente esse caras inventam um jeito de contar as histórias dele, e vai se moldando e aí nasce um jeito de contar histórias. A gente experimenta bem, o quadrinho brasileiro é anárquico, a gente não aprende anatomia na escola, não tem grandes cursos de desenho.

Mas já que a gente chegou nessa questão dos roteiros, você não acha que é uma deficiência dos quadrinhos brasileiros?

Eu acho que a gente aprendeu a contar histórias curtas, meios de histórias, e esse virou um jeito brasileiro de fazer quadrinhos, que vem do humor, que vem dos anos 50 e 60, e escoou nesses novos formatos. É quase como uma grande gag, às vezes com humor, às vezes sem humor, às vezes mais americanizadas, às vezes francesas, mais japonesas. Por uma questão também mercadológica, não se lançava graphic novel até ontem. Então, não tinha história longa. Para quem você vai virar falar, “fica aí três anos fazendo o bagulho, eu te dou R$ 2 mil. E quero uma história foda, boa sorte”. Lindo agora que estão acontecendo parcerias com escritores. Que também não são narrativas com começo, meio e fim, heróis, arquitrama bem definida, herói e vilão, não é escola americana, nem francesa, é outra coisa. É romancista brasileiro, que é outro maluco – que também levou três anos pra escrever o seu romance pra receber R$ 2 mil... A gente tem uma geração muito louca que nasceu dessa fragmentação, das revistinhas...

A sua formação é em artes plásticas. Uma coisa que vem acontecendo é que muitos artistas de quadrinhos contemporâneos são formados em artes plásticas e isso deu um twist na produção. O que você acha da confluência entre as artes plásticas e os quadrinhos? Aqui no Brasil isso é uma coisa relativamente nova.

Bota nessa mala aí os designers.

Sendo os quadrinhos uma arte narrativa, como você acha que as artes plásticas estão influenciando os quadrinhos no Brasil?

Acho ótimo, pois compõem o novo perfil do quadrinho brasileiro, o cara que compõe à sua própria imagem, bebendo de diferentes fontes, construindo uma coisa única, uma coisa neo-antropofágica.

Acho que não só nas técnicas, mas na concepção do quadrinho em geral, o fato de o quadrinho parecer um jogo, uma coisa mais contemporânea, fugir de representações mais diretas e dialogar com arte-conceito.

Acho muito foda. Eu gosto muito de um quadrinho que não tá me dando só uma história, que tá me dando um desafio de linguagem, uma nova visão, um conceito narrativo novo, não é o conceito de começo, meio e fim.

Mas você está trabalhando muito com quadrinhos narrativos.

Fiz uma história curta pra samba só com bolas coloridas. “Drinque” tem uma fragmentação, gosto de história com muitos personagens.

Ela não tem uma amarração muito clássica.

Eu gostaria de ser mais corajoso nesse sentido, eu acho que eu ainda tenho um lado bem conservador, que quer contar uma história. Sou cagão, tenho medo de perder o leitor. Medo da expectativa do outro, o que o outro vai achar. Essa expectativa...


O leitor é uma coisa que te assombra?

Eu quero que ele entenda e fique instigado em entender mais. Eu não fico pensando tanto assim no leitor. É um desejo meu de fazer coisas que me instiguem, que eu não compreenda tão bem e que ao mesmo tempo eu entenda o que estou fazendo. Nesse momento eu me espelho no leitor. Eu quero que ele seja um pouco como eu sou lendo as minhas coisas.

Você imagina O beijo como um dispositivo, com o leitor percorrendo um caminho?

No beijo eu perdi a mão, foi muito trabalho, passei mal...

Tem algo de Garagem Hermética, liberdade e criação espontânea...

Quando eu vou conversar com editores a primeira coisa que eles pedem é pra tirar todos aqueles títulos de começo de página. Eu explico que eu fazia uma página por dia, pra internet, mas mesmo assim...

Cachalote saiu na França, acho que demorou pra sair na gringa, você viu ela na França?

Na França eles publicaram no papel que deveria ter sido o papel da edição brasileira. Mas como eu pagava um puta pau pro Jaime Hernandez, eu queria aquele mesmo papel couchê dos trabalhos dele, pra conseguir aquele preto absoluto. Eles falavam que no sol não dá pra ler, que faz reflexo. Eu enchi o saco e eles fizeram. Na França eles fizeram num papel lindo. E saiu com o dobro de tamanho. Me envaideceu todo. Ficou linda.

E como foi o encontro com Daniel Galera

A gente se conheceu na noite em que pensamos em fazer o projeto. A Cia ainda nem tinha o selo de quadrinhos. Fomos falar com o Conti, o “menino dos quadrinhos”. Ele era um editor júnior na editora e queria fazer um selo de quadrinhos.

Como era a dinâmica?

Foram dois anos e meio, fomos ficando amigos nesse meio tempo. Ele morou um ano em São Paulo e depois foi pra Garopaba.
Foi tudo muito fluido. Ele quase desenhou comigo e eu praticamente escrevi com ele. Eu mandava trechos de histórias. A gente fez tudo por etapa. Ele é sistemático que nem eu.
Escrevemos um pré-roteiro, com as premissas dos desenrolares, só com os indicativos de diálogo, depois thumbnails. Com o mapinha do primeiro texto, comecei a esboçar. Na medida em que a gente ia escrevendo o segundo, ele foi me orientando, foi bem junto. Várias ideias visuais foram dele.
A Cachalote saiu vendida já com direito pra audiovisual, pela RT Features. Uma empresa que foi muito parceira na Cachalote e em outros projetos meus. O Rodrigo é um visionário, baita parceiro, comprou os livros do Galera e do Grampá, O campo em branco, Vanessa Bárbara e Fido. A RT deu uma turbinada nessa cena de graphic novels.

Imagina saindo um filme?

Seria ótimo. Vai sair uma peça, do Murilo Rouser, parceiro do Filipe Hirsch.

Achei do caralho o quadrinho que você fez com o Góes. Pretendem continuar?

Aquilo foi uma encomenda da Lion BD. Eles têm um pré-roteiro de tudo, tem que acontecer algumas coisas, tinham ganchos para as histórias. Eu não ia conseguir terminar a tempo, então numa breja eu conversei com o Góes.
Foi ela que disparou o meu desejo de fazer parcerias.
A gente se internou três dias e ficamos fazendo as 10 páginas.

E os próximos projetos?

Men Sur, Beijo 3, projetos da Mil, algumas coisas do Laertão, a Lola, um catálogo de dias do ano do Laertão, tenho um projeto de pintura que chama Fogo Fácil, que eu estava fazendo com uma galeria. Tem um curta que eu co-dirigi com o Pepe, um baita amigo. Fazer 24 telas. Acabei de sair da minha galeria, estou procurando outra. E ficar com o meu filhão.

O beijo parece se alternar entre como os adolescentes conseguem interferir no mundo atual, e ao mesmo tempo lança um olhar crítico sobre como eles tem dificuldade de entrar no mundo adulto. O que você pensa sobre isso? E o que isso se diferencia de quando você era adolescente?

É maravilhoso ver o que eles estão fazendo, e ao mesmo tempo tem muita coisa idiota. Descobri que a nova geração fala muito mais inglês no meio das frases, são mais americaninhos, viram mais séries. Esse papo pode ir longe. Acho que a nossa geração morre de medo de crescer. Caiu por terra umas premissas básicas. Você não precisa ter um carro, você não precisa comprar uma casa. Então outros planos apareceram. Ter uma identidade fragmentada. Até 20 anos atrás era uma coisa consolidada, sujeito que define objeto, hoje o contrário.


Li o Bauman. Minha mulher fez um mestrado sobre isso, então chupei muito disso aí. Entendi isso, até o começo do século passado, o sujeito definia o objeto, hoje é o objeto que define o sujeito. Hoje o sujeito troca de identidade como troca de roupa. Muda de opinião. São eles (os adolescentes) que estão dando o caminho. Somo seres fragmentados. A questão pós Bauman e Lipovetsky. Talvez a gente esteja olhando a sociedade como algo sacro que poderia ser conservada...

O seu quadrinho trabalha os super-heróis como uma metáfora. Qual sua relação com os quadrinhos de super-herói? E qual a relação do adolescente com o super-herói?

Li durante uma ano na adolescência. Depois comecei a ler Akira– o que não me levou pro mangá, só pro Akira. Aquilo é muito moderno, com uns adolescentes muito filhos da puta. E a vida era muito real, tinha um medo muito eminente. O beijoé mais uma resposta ao Katsuhiro Otomo do que aos super-heróis.

Você teve algum receio de que O beijo, em toda sua riqueza artística, recaísse num excesso de camadas e estímulos? Que o conteúdo acabasse esmagado?

Não estou disposto a abrir mão disso. Fiz O beijopensando num público idealizado, quase como se estivesse sob influência surrealista. Daqui a dez anos os adolescentes vão entender.

[CIM] Na minha opinião o volume dois é mais doidão, tem saltos mais radicais. Me interessou formalmente, possui um uso versátil de cores. Acho que ainda está se formando enquanto narrativa, ainda há uma certa dificuldade em se afeiçoar aos personagens. Acho que alguma coisa se perde entre as páginas. Tenho a percepção de incompletude. Não consigo compreender lendo apenas esses dois.

Em relação ao projeto 1000, por que a opção pelo silêncio? Como ficam os quadrinhos sem as palavras?

Boa pergunta, não sei. Muito se diz sem palavras. Acho que vem da minha vida, sou muito verborrágico. Mas muitas reflexões foram em silêncio, coisas não ditas, eu nem saberia dizer o que aconteceu. Tenho essa sensação de que existe uma coisa maior quando internamente acontece. Uma coisa entre os nossos atos e nossas falas e que conduz a gente ao que poderia ser chamado de destino, a conclusão da vida.
Eu perdi um irmão há oito anos e aquilo foi bem forte pra mim. Foi um momento de reflexão aguda, profunda, muito doida, até hoje.

Acha que isso reflete nos seus quadrinhos?

Acho que sim, no playboy que vai pra Europa. Minha mãe morava lá. Viajei muito por lá. Foi muito importante pra mim, ficar sozinho, perder o controle racional que a gente tem das nossas vidas, que a gente projeta sempre cartesianamente como uma narrativa de começo, meio e fim. Existe uma beleza de quando você perde a mão desse controle e deixa que as outras forças ao seu redor conduzam as emoções e atos. Pra mim isso é muito presente, queria que fosse mais, não tenho habilidade de colocar isso numa história. Por isso que eu fiquei tocado pelo livro do Emilio e do DW.
Coisas indizíveis, que conduzem a nossa vida, que acontecem no coração, que ninguém vai saber. E a arte é a melhor ferramenta pra expressar essas coisas.



HQ em um quadro: o Opium do povo, por Torres, Navarro e Marcos

$
0
0

O povo veste a máscara de Ruben Plata (Daniel Torres, Francisco Pérez Navarro e Incha-Ramón Marcos, 1982): há várias coisas legais na HQ Opium, criação do espanhol Daniel Torres, publicada no Brasil pela Abril em 1990: primeiro, um senso completamente idiossincrático de retrofuturismo. Os carros voam, mas são Cadillacs. As máquinas se insurgem contra as pessoas, mas são eletrodomésticos dos anos 50. Os desenhos, tanto de Torres quanto de Marcos, deveriam ser sombrios e obscuros, mas são uma mistura de Spirit com linha clara francobelga. É um choque. A HQ é kitsch e cool ao mesmo tempo. Em segundo lugar, temos o protagonismo de vilões elegantes (também mais voltados à era de ouro) e intrépidos. Opium, típica criminal mastermind, parece um Mandrake que saiu pela culatra. Sua convicção pelo mal é tão atroz que emociona. Gin é a perfeita femme fatale, gloriosa e sexy, muito malvada, e consciente destes atributos. Já do lado dos heróis, temos um protagonista de perfil apenas aparentemente clássico que, na verdade, é uma figura ambígua: o âncora de telejornal Ruben Plata, sacana, melindroso e vaidoso, pode ser considerado um anti-Clark Kent, e essa é a sua maior transgressão.

Na edição número 2 da minissérie que saiu no Brasil, esta incomum HQ nos apresenta um enredo bastante curioso, que ressoa em algumas coisas que estão acontecendo atualmente (comprovando que o retrofuturismo, mesmo ele, ainda pode ser premonitório). Vejam bem: o jornalista Ruben Plata se indaga a respeito de por que o povo é arrebanhado, pacato, bovino. "O cidadão médio, perdido no anonimato, isolado, desconhece suas possibilidades pessoais e sua força coletiva, convertendo-se, virtualmente, em vítima de qualquer canalha"... Dito isso, Plata resolve criar um programa que possa unificar a necessidade coletivizante da população em torno de um centro, de um imagem, de uma pessoa. Pessoa esta que é...ele mesmo! Ele cria então o show "Imite-me", buscando automatizar seus gestos, gostos e falas na população com o paradoxal propósito de "despertá-las" de seu "sono dogmático".

As consequências deste gesto ao mesmo tempo ególatra, messiânico e "generoso" levarão Plata à prisão, mas interessa mais, aqui, a reação do povo: o clamor pelo "Imite-me" torna-se tão grande que as pessoas passam a sair nas ruas com máscaras de Ruben Plata, mobilizando causas forjadas por ele, obedecendo-lhe cegamente. Em última instância, tornando-se ele. Ou tornando-se sua imagem, como diria Baudrillard. E neste momento, a imagem passa a agir, ao invés do povo. Quando Plata conclama as pessoas para irem atrás de Opium e capturá-lo, o povo, finalmente encontrando sua convicção unificadora, vai às ruas para a caça às bruxas. É como se, ao invés de máscaras de Guy Fawkes, as pessoas aqui no Brasil usassem máscaras de William Bonner achando que estão vestidas como revolucionários. Em Opium, fica difícil discernir quem usa, no fim das contas, a máscara de quem. Plata é o suposto herói da série, mas seu uso da imagem o aproxima de um vilão fascista. O povo, sem identidade, encontra-a na máscara da imagem vazia de um ícone midiático. A agressividade recalcada daquela população bovina, no final, se volta contra a própria imagem que havia lhe conferido autonomia, e eles passam a caçar Plata - o que é o mesmo que caçar a si próprios. O ciclo eterno que permeia revolução e fascismo, mediado por imagens midiáticas vazias, é o sentido que se depreende disso tudo. Uma causa se torna o Opium do povo. (CIM

Redundância e obsessão: reminiscências sobre Homem Animal de Grant Morrison

$
0
0


Olá pessoal. Meu nome é Lima e já colaborei com a Raio Laser em alguns textos no passado. Este agora é meu primeiro ensaio de uma nova e promissora fase de intensificada participação na Raio e que pretende ser marcada por uma fronteira bem anuviada quanto as fontes quadrinísticas. Quem já leu meus textos anteriores percebeu que tenho um pé firme no quadrinho “mainstream” e, de fato, considero urgente promover uma leitura crítica do que se passa nas bancas de revista atuais. Há os que prefiram nem passar perto da massa amorfa e sem graça que se fabrica nas grandes editoras do gênero. O que considero uma atitude razoável. Mas a força que estes quadrinhos industriais exercem no imaginário atual, e os problemas que desencadeiam, me fazem ver na Raio Laser um espaço perfeito para escarafunchar este material de maneira crítica contribuindo para que um eventual leitor das “grandes editoras” possa ter despertada uma curiosidade para com outros gêneros e matrizes de produção de HQ’s. Sendo claro, boa parte do meu objeto de discussão vai ser o quadrinho de grande tiragem, o que inclui o gênero super-herói ou o Mangá, entre outros tantos. Aqueles que não suportarem este tipo de quadrinho podem ignorar os textos com a minha benção. Findo esta breve apresentação com um bem-vindo a todos e vamos logo ao que interessa. (LN)


As histórias em quadrinhos nos capturam pelo olhar. É uma obviedade dizer isso, mas é sempre saudável lembrar que, na expressiva dança entre palavra e imagem que transcreve a leitura de uma HQ, é a imagem que toma a dianteira na sedução. É depois que o olhar engole o anzol pictórico que a narrativa encontra a abertura para desfraldar sua trama, seus dramas e acontecimentos. Mesmo que não tenha palavras, uma HQ vai ser formada de uma sequência de imagens que encenam um narrar ordenado que se desfralda da direita para a esquerda (no ocidente). Uma página de quadrinhos é, portanto, uma ou mais imagens que se submetem a uma narrativa que não é própria de seu estatuto. Ou melhor, a narrativa linear impregnada de imagens da página de quadrinhos instaura um estatuto próprio que é fruto de uma síntese entre a linearidade narrativa e a espacialidade visual.

Volto agora alguns 20 anos no passado. As bancas de revistas dos primeiros anos dos anos 90 viviam um momento de glória. O quadrinho nacional encontrava um fôlego econômico para se proliferar e as HQ’s mensais das grandes editoras, sob o monopólio da então soberana editora Abril, chegavam em fases novas e autorais graças à chegada no Brasil da conhecida invasão britânica. Alan Moore se consagrava como respeitado criador do meio. Neil Gaiman já causava frisson com a tessitura narrativa de seu Sandman e uma segunda leva de escritores aportava nas praias brasileiras. Nomes como Jamie Delano, Peter Milligan e um criativo escocês chamado Grant Morrison.

No início dos anos noventa o autor destas linhas estava na sexta série. O hábito de ler quadrinhos me permitia descobrir verdadeiros esconderijos em minha escola para ficar em paz. As HQ’s não prestigiavam deste respeito artificial que pode se ver hoje em dia, e ler um gibi no recreio só era possível longe das pessoas “normais”. Num destes esconderijos, encostado numa grade de ferro e sentado desconfortavelmente no chão de paralelepípedos que separava o pátio do recreio das quadras de educação física, minha relação com as histórias em quadrinhos, e consequentemente com o mundo das imagens, mudou completamente. Lendo uma edição do extinto mix DC 2000, especificamente uma das sempre impressionantes histórias do Homem-Animal de Grant Morrison, fui tomado por uma imagem que era ao mesmo tempo um lugar-comum e uma epifania.


Esta cena do personagem Buddy Baker o retrata no ápice de uma viagem de autoconhecimento regada a peyote ritual. Prometendo respostas para seu passado confuso e seu presente surreal, um Doutor indígena chamado Highwater oferece respostas através de um ritual shamânico. Como resultado deste procedimento, Buddy recebe três revelações, sendo que a terceira é a revelação da existência de uma outra dimensão acima dele que não apenas observa o que se passa em sua vida, como sua vida se revela como um simples entretenimento. Resumindo, naquela manhã, no intervalo da minha escola, um super-herói se tornou ciente da minha presença e do impacto que ela causa em sua vida. O mundo para mim nunca mais foi o mesmo e esta imagem tornou-se uma obsessão.

Cabe aqui uma melhor contextualização deste momento na história do personagem. Afinal, este texto não pertence à seção HQ em um quadro. Conhecido por seus roteiros “viagem”, ao trabalhar para a DC Comics, Morrison escolhe o personagem mais esquisito que estava à disposição. O Homem Animal era um personagem do quinto escalão da editora. O “homem com poderes animais” ganhou seu dom ao ser exposto a uma radiação alienígena e, sem nenhuma história memorável fora a participação em outros títulos como a participação especial do mês, terminou seus dias ao lado dos Heróis Esquecidos, um grupo de heróis de igual celebridade nula. Com a reformulação da editora, durante a saga Crise nas Infinitas Terras, Morrison recebe carta branca para fazer o que desejasse com o personagem e o transforma em um herói ecológico e pai de família que encara a luta contra o crime como um trabalho normal como outro qualquer. Suas aventuras esquisitas o colocavam contra soldados poetas e obras de arte de destruição em massa, gênios do mal suicidas, deuses africanos cancerígenos e messias coiotes que se recusavam a morrer. Era a alucinação da era de prata elevada a níveis concentrados de lisergia. É para dar conta deste cotidiano dadaísta que o Homem Animal decide embarcar no ritual que termina por lhe revelar sua natureza como ficção. Ao se defrontar com o nonsense absoluto que é a morte, o herói adentra neste labirinto da meta-linguagem até encontrar com o responsável por suas desgraças: Grant Morrison.

Retornando à imagem. Algumas páginas antes de olhar para mim, Buddy está discutindo com ele mesmo. Trata-se da versão do Homem-animal de antes de Crise, aquele dos Heróis Esquecidos. Ele revela o segundo segredo para Buddy, o de que houve outro Buddy Baker que foi apagado para que o atual vivesse. É este Homem-Animal, devidamente vestido em seu uniforme adornado com uma gigante letra “A”, que revela minha presença para Buddy. E é a partir da visão de minha presença que o personagem decide ir à busca de seu criador.


Retornando à imagem. A metalinguagem é usada nos quadrinhos desde seus primeiros anos e aparece abundantemente nos quadrinhos de humor até os dias de hoje. De fato é um recurso retórico de efeito fácil, mas, em mãos hábeis, a metalinguagem ainda consegue exercer seu assombro poético. Esta imagem é, como todo requadro de uma página de HQ, uma janela. Mas Morrison abre a janela. Escancara. O olhar de espanto de Baker, representado de maneira honesta pelo artista Chas Truoug, se eleva em direção ao leitor e o puxa para dentro. É um vórtice de identidades, de arbítrios que se querem livres sem saber que seguem um roteiro. Tornamo-nos personagem direto da revista e por uma fração de segundo somos uma criação de Grant Morrison. Muito esperto senhor Morrison. Entretanto, havia algo mais, e, na busca deste algo mais, passei a seguir o senhor Morrison aonde quer que ele fosse. Mas não foi nele que encontrei respostas. Pelo menos não encontrei respostas diretas.

Não foram os limitados componentes estéticos da imagem que repercutiram na minha alma naquele momento. Como desenhista, Truoug é bastante limitado e exerce sua função de maneira bem burocrática e direta. Sua construção pictórica do rosto espantado é pobre quando comparada à imensa miríade de desenhistas que trabalhavam na indústria naquele período pré-Vertigo e esta dobradinha “bons roteiros X arte medíocre” vai ser uma bandeira que viria a se tornar o selo de quadrinhos adultos da DC Comics. A razão de minha obsessão residia no significado daquele momento na narrativa do personagem (o que estava sendo representado nas ações e gestos dos personagens), e a maneira com que este momento é foi passado ao leitor (as escolhas linguísticas que foram tomadas ao criar a cena). Interpretando esta imagem sob a luz das pesquisas empreendidas por Gilbert Durandé possível perceber que o efeito “mágico” da cena é resultado de suas características enquanto imagem simbólica.

A palavra “símbolo” vem do grego sumbolon que, assim como o hebraico mashal e o alemão sinnbild, implica uma reunião de duas metades. No caso do símbolo, uma reunião entre significante e significado. Significante é a parte visível do símbolo e esta possui 3 dimensões concretas: uma dimensão cósmica – que reproduz o que está visível a sua volta; uma dimensão onírica – que constrói sua imagem a partir dos gestos fantásticos de nossos sonhos e fantasias e  esta intimamente ligada à nossa biografia pessoal; e uma dimensão poética – construída com a matéria prima da linguagem em seu momento de maior ímpeto. Se a arte de Truoug corresponde a dimensão cósmica, então a narrativa visual da imagem vai corresponder a dimensão onírica, e a metalinguagem corresponde à dimensão poética deste requadro simbólico. Como se pode ver, o lado significante do símbolo é infinitamente aberto em suas possibilidades figurativas. Mas é próprio do símbolo que este significante só se refira a uma “qualidade” não figurável.

Esta “qualidade” não figurável é o componente do outro lado do símbolo: o significado. Como o significante, o significado também é infinitamente aberto. Por não ser representável, o significado se espalha por todas as ordens de coisas e dimensões. A dimensão do significado é epifânica. No símbolo, significado e significante estão sempre divergindo, sua existência é uma aproximação feliz e fugaz. Esta inadequação só é superada pela redundância. A ação de sempre retornar a imagem simbólica de forma a reinterpretá-la, a corrigi-la e complementá-la. Como o fizemos em parágrafos anteriores. Da mesma forma este texto é a volta mais recente de uma redundância que minha alma executa desde os anos 90 em cima da imagem principal deste texto. Não à toa Durand descreve a redundância da imagem como com a imagem de um solenoide.

Vimos que a redundância exercida sobre a imagem do HA é baseada nas dimensões poética e onírica do símbolo que engendra. Durand estipula que as redundâncias estabelecidas por meio de relações linguísticas são conformam símbolos mitológicos, enquanto que as redundâncias que emergem dos gestuais oníricos e subjetivos prescrevem os símbolos rituais. A dimensão cósmica, a representação dos fenômenos do mundo, engendra múltiplas redundâncias. Quando afirmamos que a arte de Truoug é “pobre” esteticamente é porque são poucas as redundâncias possíveis no espaço que ele encena sua representação em comparação, por exemplo, com uma página de Little Nemo. Os símbolos destas redundâncias são os símbolos iconográficos.
Mas, voltando à imagem, e voltando aos quadrinhos. A complexidade da imagem simbólica é grande. E ainda mais complexo é o simbolismo em uma página de quadrinhos. Na HQ, diferentes tipos de símbolos se revezam na construção da narrativa. O próprio quadrinho pode ser considerado uma narrativa simbólica onde dois lados de propriedades distintas se encontram ligados de maneira indissociável. Mas no que tange à imagem em questão, identifico dois simbolismos originários de redundâncias distintas que exercem seu efeito sobre mim. O símbolo poético que a metalinguagem representa e o símbolo mítico do encontro que a imagem exprime.

Como vimos, Buddy Baker se encontra na imagem no ápice de um encontro epifânico. É uma jornada dentro de sua própria psique. Neste embate ele encontra consigo mesmo em sua versão original de Homem Animal. E este o mostra a verdade de sua condição como ficção. Na obra de Morrison o mito do labirinto é uma imagem persistente. Até em sua recente passagem pelo título de Batman, concluída em 2013, encontramos referências diretas ao mito e seus componentes: 


No mito do Minotauro, o herói Teseu adentra o labirinto para salvar os atenienses mandados para ser pasto para o monstro com cabeça de touro e corpo de homem. Ao se encontrar com o vilão, Teseu usa de uma arma proscrita para matá-lo o que acaba por amaldiçoar seu destino heroico. O que Teseu encontra no fundo do labirinto é a imagem de seu próprio instinto animal reprimido para o subconsciente, mas, ao eliminá-lo, torna-se Minotauro. Seu valor heroico se inverte. O herói vira monstro e o monstro torna-se vítima. Buddy Baker se encontra com seu “eu” em um estado mais primário, original. Um homem com poderes animais. Um Minotauro encarcerado no labirinto à espera de seu libertador. Mas tudo que encontra é Buddy Baker, seu lado humano, sua identidade secreta. A imagem do homem sem sua parte animal. E, sendo vítima do mito, Buddy pouco pode fazer para salvar seu oposto animal. Mas antes de morrer, o Homem Animal clássico aponta para a saída do labirinto. No mito original há apenas duas saídas do labirinto, pelo fio de Ariadne ou por cima, pelos céus. Esta é a estratégia utilizada por Dédalo, o inventor do labirinto, e seu filho para escaparem do encarceramento ao qual foram condenados por ajudar Teseu. Olhando para trás e para cima, Buddy vê não sua liberdade, mas enxerga aqueles entes aos quais sua liberdade é submetida. Em uma indústria onde a qualidade do que é produzido fica em terceiros e quartos lugares, as possibilidades poéticas do personagem são severamente limitadas pelas intenções do público alvo. Neste vislumbre de liberdade, nós leitores nos tornamos personagens da história. Submetemos-nos às mesmas imposições às quais a vida de Buddy sofre. Como Teseu e o Minotauro, nós trocamos de lugar com Buddy Baker.

Esta troca é expressa pelo símbolo poético representado pela metalinguagem. Uma meta linguagem extrema, radical, impetuosa. A metalinguagem é a ação de abrir a cortina. De rasgar a fina película que separa a cena de seu público. É um ato de trazer o leitor para dentro do mecanismo de construção de uma escritura e fazê-lo perceber seu funcionamento. Nesta imagem que analisamos este “trazer para dentro” se torna queda. Torna-se um choque que derruba, pulveriza a fantasia e a espalha pela realidade misturando uma com a outra. E assim permanecem ligados até o final da história, quando Grant Morrison, o próprio Dédalo, entra em cena e revela para Buddy a natureza de sua existência.

A redundância da imagem simbólica, seu padrão circular, vai encontrar paralelo na noção de eterno retorno que a imagem possui. Diferente da palavra, a imagem não tem ordem de leitura. Ao se deparar com uma imagem, o olhar se fixa em um ponto que lhe seja significativo à subjetividade do observador e este passa a construir e ler a imagem a partir de visadas cíclicas que sempre retornam a este ponto determinado, muitas vezes sem razão lógica aparente.

Em uma narrativa em quadrinhos, este eterno retorno se submete à linearidade da leitura aos moldes da palavra. Mas isto não impede que seus símbolos efetuem redundâncias. E Grant Morrison é bem ciente disto. No título que vai trabalhar paralelamente ao Homem-Animal – Patrulha do Destino– Morrison recria o personagem da era de prata, Homem-negativo, na forma de Rebis. Uma entidade andrógina de corpo enfaixado que emite uma versão negativa de si mesmo para fora de seu corpo. Rebis é o nome do casamento alquímico entre dois elementos distintos, processo que é usado por Jung para descrever sua noção de símbolo e que vai ser posteriormente retomado por Durand. O personagem Rebis também é reconhecido como o Ourobouros: imagem da serpente que engole a própria cauda. Símbolo de eternidade e do fluxo circular do eterno retorno. É a imagem e sua redundância encarnados em um único personagem. Também o Ourobouros é um símbolo muito usado por Morrison. Mesmo em sua recente fase em Batman, o escritor insere o conceito de Ourobouros na forma de uma fonte de energia que nunca se esgota, como um moto-perpétuo. 

A propriedade redundante da imagem também vai ser representada, em Patrulha do Destino, na figura de um quadro arcano que suga para dentro tudo o que está fora. No arco “A pintura que engoliu Paris”, o bizarro grupo de desajustados que compõe a Patrulha do Destino se vê sugado para dentro do quadro junto com a cidade de Paris. Dentro o quadro, o grupo pula de uma dimensão para outra, cada uma representando um círculo do intricado labirinto que é a imagem do quadro. Cada círculo é regido por uma escola estética da arte: parte do grupo vai para um mundo futurista, outra parte se vê presa em um mundo impressionista. Há até um circulo dadaísta. Difícil não ver a produção simbólica humana como uma série de redundâncias, das quais as escolas estéticas são voltas em torno deste enigmático símbolo maior: a vida. 








Extra! Extra! Pimba vem aí!

$
0
0



por Pedro Brandt

“Quadrinho? Jornal? Arte? Entretenimento? Herói? Humor? Que cada um decida como perceber Pimba”, sugere o editor Danylton Penacho em texto de apresentação sobre esta novíssima publicação brasiliense. A Pimbaé tudo isso e um pouco mais e, a julgar por outra parte do release escrito por Danylton, liberdade é palavra de ordem na redação deles: “Não teve pauta, não teve editoria, tema, ideias vetadas. Cada um fez o que quis como quis e que agora assuma a responsabilidade de tocar o seu pandeiro, como diria Francisco da Ciência”.

Ou seja, conceitualmente, a Pimba não é muito diferente de outras tantas publicações independentes de quadrinhos que vêm surgindo a rodo nos últimos anos no Brasil. Ao mesmo tempo, ela não é qualquer publicação, especialmente porque a equipe é formada por ilustradores experientes que garantem um visual imponente e um acabamento gráfico primoroso, que chama a atenção desde a capa até a última página. O fato de a Pimba ser um jornal – formato pouco ou nada usado por quem faz quadrinhos hoje em dia no País – também ajuda na impressão positiva.

Com 32 páginas, tamanho um pouco maior que o tabloide, impressa em duas cores (azul e preto sobre papel branco), vendida por módicos R$ 5, a Pimba apresenta histórias em quadrinhos, tirinhas, crônicas e pinups. O conteúdo tem algumas ótimas sacadas (tanto visuais, quanto de texto) e outras totalmente dispensáveis, mas o resultado, no final das contas, é bastante simpático. É possível perceber um esforço para contar histórias, expor ideias, não ficar apenas na autoindulgência, na preguiça intelectual e no nonsense vazio (ainda que ele também esteja presente). Que venham mais – e melhores – edições.

Às vésperas do lançamento do jornal em Brasília, que será realizado com festa no Sindicato (705 Sul, bloco A, casa 35), a Raio Laser trocou uma ideia com os idealizadores da Pimba, equipe formada pelos craques Caio Gomez, Daniel Carvalho, Felipe Sobreiro, Leandro Mello, o editor de texto e cronista Danylton Penacho e a diagramadora Sarah Sado. Confiram o bate-bola a seguir:


Como surgiu a Pimba? Todos vocês já publicaram em outras revistas/zines, então qual a necessidade que viram em mais um publicação do tipo? Como vocês definem a proposta editorial do jornal?
Gomez: Bem, acho que sentíamos falta de uma publicação legal, com uma periodicidade decente. Eu e o Daniel já conversávamos bastante sobre isso. Daí foi um pulo para juntarmos uns amigos que admiramos pra caralho e que sentiam o mesmo vazio interior. A ideia era fazer um negócio com texto, ilustração, quadrinhos e que fosse barato, logo, abrindo mão de uma impressão refinada, meio que no contrafluxo do quadrinho ostentação atual. Algo que o formato jornal atendeu bem. Mas como produto final, talvez o maior diferencial da Pimba seja a presença de um editor de texto – a bagagem que o Danylton Penacho trouxe deu uma cara bem diferente para o jornal.

Para vocês, o que significa a palavra Pimba?
Gomez: Tem a onomatopeia, tem a melodia fácil ou pouco elaborada (em Portugal é bem popular), tem o mau gosto ou fraca qualidade e tem o Pseudo-Intelectual Metido à Besta Associado, esse último cunhado pelo saudoso Adolar Gangorra.


O formato jornal é inusitado dentro do meio dos quadrinhos independentes. Pensam em manter o formato jornal para as próximas edições?
Sobreiro: A ideia é manter o formato de jornal sim. A gente queria precisamente um tipo de publicação diferente do que é visto normalmente no meio das HQs. E agora que o jornal como meio está morrendo, resolvemos ressuscitar e aproveitar esse grande formato. Uma das diferenças é que o jornal "de notícias" tem uma vida útil de um só dia, o Pimba não tem esse problema, é atemporal.

E por falar em próximas edições, seria possível adiantar alguma coisa do que vocês estão planejando para o futuro da Pimba? Quais autores poderemos ver futuramente na Pimba?
Sobreiro: Ainda é meio cedo pra falar, mas a ideia é que os membros fundadores (Leandro Mello, Caio Gomez, Daniel Carvalho, Danylton Penacho e Felipe Sobreiro) sempre tenham material novo no jornal, mas queremos chamar novamente os convidados que apareceram no número 1, gente como Gabriel Góes, Stêvz, Roberta Ar, André Valente, e ir convidando outros, do Brasil todo, mas dando uma ênfase pro pessoal de Brasília.

Manter a periodicidade de um publicação é um desafio. Acreditam que conseguirão lançar uma nova edição a cada três meses? Quais outros desafios vocês enfrentam/enfrentaram na produção do jornal?
Sobreiro: Olha, a gente demorou muito fechando o primeiro número, resolvendo problemas, definindo a cara do jornal, nos distraindo com eventos, etc. Agora que já estamos com o trem em movimento, a ideia é não perder mais tempo e já fechar o segundo número, e manter religiosamente a periodicidade. O número 1 ainda nem foi lançado oficialmente e nós já lidamos com uma série de problemas que serão evitados nas próximas edições. A expectativa é que cada número vá ficando mais tranquilo de montar que o anterior.

Os encontros, feiras e convenções de quadrinhos estão cada vez mais populares no Brasil, sempre com a participação dos autores independentes (ou “dependentes”, como alguns se chamam). Como vocês enxergam esse movimento, tanto no sentido de articulação, quanto do resultado do que tem sido feito por essa galera?
Mello: Bom, passamos um bom tempo elaborando material, produzindo coisas para participar de eventos. Essas feiras/eventos funcionam como um grande laboratório, é lá que a gente vê como o nosso material se comporta. Lá temos contato com diversas pessoas: autores, produtores, editores e consumidores. E é sempre uma troca de experiência muita intensa, ainda mais quando vamos para outros estados. Penso que as feiras independentes têm um papel fundamental no fortalecimento do cenário nacional. São nessas feiras que você encontra pessoas que estão batalhando pra poder se inserir no mercado. Gente que enfia a mão na massa, sem editora (ou criando a própria editora), e com pouco dinheiro e pouco recurso. São essas feiras que dão a oportunidade de você mostrar seu produto e poder vendê-lo. E pro consumidor também é uma oportunidade única de encontrar coisas que não estão nas prateleiras das livrarias.

Ainda sobre o assunto da pergunta anterior, o que você acham que pode melhorar nesse universo dos autores (in)dependentes?
Mello: Não sei dizer exatamente o que se pode melhorar. Poderia falar em retorno financeiro, mas isso não é o que nos motiva. Claro, queremos retorno, temos contas pra pagar. Mas essa não é nossa principal questão. Não sinto a necessidade de que as coisas devem melhorar. Sinto a necessidade de continuar fazendo. A única coisa que eu quero é manter minha condição para continuar fazendo. Acho que as melhorias virão com o tempo e o amadurecimento de um mercado que é novo. Vai ser natural.

Vocês todos trabalham com artes gráficas (ilustração, design, etc) e, paralelamente, produzem quadrinhos. Viver só (ou principalmente) de quadrinhos é um sonho que alimentam?

Daniel Carvalho: Viver de quadrinho autoral ainda é um pouco custoso, porém o cenário tem mudado e quem sabe num futuro breve poderemos pagar nossas contas se autopublicando.


Chninkel: o grande poder da obra-prima

$
0
0

por Ciro I. Marcondes

Um Chninkel
Às vezes no deparamos com uma obra-prima assim de supetão, sem qualquer previsão, buscando apenas uma leitura descompromissada. Não que eu não esperasse nada ao abrir O grande poder de Chninkel (Le grand pouvoir de Chninkel), obra em quadrinhos que impressiona já numa breve folheada, graças ao vigor e à robustez dos desenhos barbáricos do grande ilustrador polonês Grzegorz Rosinski. Conhecendo também o trabalho do clássico roteirista belga Jean Van Hamme – que, entre outras coisas, trouxe ao mundo a série de fantasia Thorgal, a detetivesca XIII e as aventuras do bilhardário Largo Winch –, era de se esperar algo refinado, num primeiro escalão de BDs estilo Métal Hurlant, cheio de aventuras prodigiosas e cenários hiperimaginativos. Porém, vale frisar, eu não esperava uma obra-prima.

Mas o que qualifica esta BD como obra-prima? Chninkel foi publicado em 1986 na revista belga (A Suivre), editorada pela Casterman, e, em alguns aspectos, é a típica HQ francobelga dos anos 1980: passa-se em um mundo de fantasia cheio de raças exóticas, guerras intermináveis e déspotas execráveis; além disso, é imersa em um quase interminável ciclo de aventuras e peripécias, num modelo epopeico, que carregam o leitor rumo a uma clássica jornada heroica; por fim, doses generosas de violência e erotismo confirmam a tendência desta HQ em capturar os aspectos mais gerais que definiram esta época como uma das mais vertiginosas da BD.


A exuberante arte de Rosinski
Para além dos clichês já representados no próprio background da história, Chninkel se destaca por ser um tipo de parábola religiosa que é, ao mesmo tempo, uma paródia e uma crítica ao universo do evangelismo. Sua história é a de Daar, um mundo em constante guerra, dominado por três imortais e seus povos, que subjugam e escravizam tantos outros: Zembria, a ciclope, que rege um grupo de ferozes amazonas; Barr-Find, o mão-negra, líder de um grupo barbárico de humanos; e Jargoth, o perfumado, que lidera uma raça de elfos que voam em orquídeas carnívoras. No meio de eterna guerra entre os três imortais, uma raça de escravos chamada Chninkel (uma espécie de ratinho antropomorfo) luta por sua própria sobrevivência. As sete páginas iniciais, que mostram o contexto e os atos sanguinolentos de batalha, são particularmente primorosas – apocalípticas, exuberantes, desoladoras.

Um dos chninkels, J’On, sobrevive a uma batalha avassaladora, e, ao ver-se só em meio a uma multidão de cadáveres, presencia a aparição de um monólito negro (tal qual em 2001) que se apresenta como o Grande U’N, mestre criador de mundos. A figura divinal explica-lhe então a sua insatisfação com o mundo em guerra e confere uma missão ao pobre Chninkel: no curso de cinco cruzamentos de sóis (o “ano” no mundo de Daar) ele deve conseguir acabar com todas as guerras em seu mundo. J’On, percebendo sua pequenez diante de tamanha responsabilidade, questiona o criador de mundos sobre porquê ele ser o escolhido, no que a figura divinal responde: “Eu sou encarregado por uma infinidade de outros mundos e de milhares de milhares de seres que criei. Você pensa que eu tenho tempo de procurar qualquer outro neste mundo aqui? Será, portanto, você, J’On, o escolhido”.


Enquanto U’N parece uma figura divinal tirânica, amarga e opressora tal qual Jeová no Velho Testamento, J’On vai se transformando, pouco a pouco, de uma figura à Moisés (afinal, ele tem de livrar seu povo da escravidão e ouve diretamente um chamado de seu Deus) em uma à Jesus Cristo. Logo percebemos que O grande poder de Chninkel tem uma clara intenção de produzir uma reflexão sobre a ética da Bíblia como um todo. Se, em algum momento, pensamos que há nesta HQ certo proselitismo cristão, percebemos, ao final da leitura, que seu verdadeiro sentido reside em ironizar o monoteísmo como um todo, colocando todas as complexas linhas narrativas e desdobramentos da trama à mercê de um ato egoico, paranoico e vingativo concentrado nas mãos de uma imagem onipotente.

"Doses generosas de violência... e erotismo"

Excelente design de criaturas
J’On, assim, vai viver uma série de peripécias que deflagram sentido claramente mitológico, concentradas em cenas e atos que se configuram como parábolas, e onde rapidamente percebemos figuras e atos presentes nas próprias fileiras dos evangelhos, como Maria Madalena, Judas, os evangelistas, a travessia do deserto, etc. Estas peripécias são narradas com tal desenvoltura, envolvendo-nos em meio a raças particulares, cenários exóticos e coadjuvantes carismáticos, que a linhagem bíblica que parece a todo tempo nortear a história não impede que nos surpreendamos a cada instante. Cada solução pensada por Van Hamme para as armadilhas que a jornada reserva são carregadas de soluções criativas, saídas inesperadas, pequenos milagres que, no contexto da história, não parecem forçados. Cada sincronismo presente na narrativa lembra mais, efetivamente, um evento mitológico do que um deux ex machina, ainda que este recurso seja utilizado no final, mas mergulhado em franca ironia.

Excelente design de máquinas
A arte de Rosinski ajuda tudo a se tornar mais épico, com o amplo uso de splash-pages, megarrequadros e lettering expressivo. Além disso há um aproveitamento do preto-e-branco robusto e sensual, com detalhamento minucioso nas expressões dos personagens e excelente design de criaturas, máquinas e cenários. Seus quadros contêm intensa movimentação, praticamente sem linhas de ação, fazendo-nos supor este movimento, tal qual um Delacroix, a partir de uma cinética inerente à expressão do desenho. Em cada mínimo detalhe, um primor. Chninkel por vezes é tão intenso em seus movimentos que parece que estamos vendo uma animação, ao invés de lendo uma HQ.

Parábola sobre o poder

Por fim, como se tudo isso não fosse suficiente para caracterizar O grande poder de Chninkelcomo uma obra-prima dos quadrinhos, falta falar sobre o próprio poder em si, o que talvez seja a elaboração mais sutil, e ao mesmo tempo a mais importante da HQ. Vamos lembrar, em primeiro lugar, que J’On não sabe exatamente qual a natureza de seu poder “milagroso”, e a todo instante ele questiona se sua “visão” do U’N não foi um sonho ou uma alucinação. Sem qualquer poder que lhe esteja disponível, cabe a ele o tempo inteiro exercer seu poder de dúvida, um pouco como Jesus em A última tentação de Cristo, e se deixar levar pela missão como que por intuição. Assim, o pobre Chninkel é também uma espécie de Forrest Gump, e as coisas vão se sucedendo como que se fossem ao mesmo tempo milagres e coincidências. Esta perspectiva abre um olhar muito interessante sobre a natureza, digamos, gnóstica do mundo, onde existe uma dupla face de acontecimentos, uma na esfera do divino e do sobrenatural, e outra nas leis da física e da materialidade. Os acontecimentos, de qualquer forma, são os mesmos, e o leitor deve escolher qual a percepção que melhor lhe sensibiliza, duvidando junto com o Chninkel e tendo de oscilar entre interpretar a história como uma fábula paródica (no caso do poder ser falso) ou como uma fábula holística (no caso dele ser real). Vivenciar estes acontecimentos, no fim das contas, seja qual fora a sua natureza, é o que parece contar.

A própria natureza do poder em si, bastante tolkeniana (que, por sua vez, é também cristã), é problematizada a partir do momento em que percebemos que J’On não ostenta um poder bélico, ou mesmo sobrenatural, mas sim demarca sua posição política com ideias e uma intervenção não-violenta, tal qual Ghandi, através do diálogo e do poder de arrebanhar seguidores. O poder de O grande poder de Chninkelé, portanto, um poder moral, um poder invisível, presente em qualquer um, e não apenas em um escolhido por Deus. Esta mensagem, a de que as forças motivadoras que transformam a humanidade estão nos indivíduos, ecoa mais em um existencialismo sartreano do que propriamente na doutrina Cristã. A ironia é que, para ser impulsionado a, sozinho, libertar seu povo, J’On precisa ter uma alucinação religiosa. A religião é colocada como uma falsa força-motriz, um poder motivador capaz de mover montanhas não por sua natureza sobrenatural, mas sim por sua força de congregação social, tal qual pensava, por exemplo, Durkheim. Fica a impressão de que J’On poderia realizar toda a sua façanha sem qualquer visão ou “missão” divina, apenas acreditando em sua força individual. Porém, resta também a questão dialética que diz que ele também não poderia fazê-lo, afinal, a religião seria a única motivação capaz de movimentar esforço tão descomunal. Impasses de um texto ambíguo.

A despeito do final sinistro e assombroso, mais afeito a um niilismo hipercínico, parodiando o apocalipse bíblico, todo o caráter épico de O grande poder de Chninkel, associado às suas várias matrizes de interpretação e à sua arte de primeira grandeza, nos levam a pensá-lo como uma das obras definitivas da BD. Obviamente é difícil pensar em uma obra de ficção nas histórias em quadrinhos atuais que levante tantas questões, e ao mesmo tempo com tanta estranheza e tanto impacto estético. Certamente traduzi-lo para o português deveria ser uma prioridade e uma urgência.

Música para sonhos: A pior banda do mundo

$
0
0

por Ciro I. Marcondes*

O que pode haver em comum entre o kammerspiel (gênero de filmes alemães dos anos 1920, voltado à classe operária), Reinhart Koselleck (historiador da segunda guerra mundial) e Hermann Rorschach (psiquiatra suíço que desenvolveu o famoso teste... e que batizou também um personagem de quadrinhos)? Em princípio, nada – ou tudo. E este é o mote desenvolvido por José Carlos Fernandes na história em quadrinhos portuguesa A pior banda do mundo: os elementos que compõem as fiações do nada. Todos estes nomes são realojados, em algum momento, em personagens obscuros, excêntricos, desvalidos, que habitam uma espécie de cidade de sonhos, onde o descartável e o inútil encontram sua ontologia, onde uma paranormalidade de boteco vai obcecar pessoas acanhadas, onde os ofícios mais inadequados e obsoletos continuam a existir de maneira cíclica, eterna, interminável. Um mundo dentro do nosso próprio mundo, escondido em suas entrelinhas, abafado nas funções ordinativas da nossa realidade.


É assim, redimensionando as proporções com que os elementos do mundo se encontram nas coisas mesmas, que o autor cria um verdadeiro fenômeno de atravessamento em quadrinhos. O sistema é muito simples: a cada duas páginas ocorre na cidade um sketch, espécie de ensaio de algo improvável de acontecer. Em um momento, acompanhamos o esdrúxulo ensaio da pior banda do mundo, que toca junta há 30 anos, mas os músicos não conseguem chegar a um consenso quanto a qual música estão tocando. Em outro sketch, temos a história de uma caixa de correio que recebe as sugestões utópicas dos cidadãos. Em outro, duas velhas irmãs ouvem em suas cabeças a música que o obececado compositor do andar de cima nunca conseguiu realizar após anos de tentativas. Outro ainda, igualmente  fantástico, nos leva a um quarto de hotel em que o hóspede atual sonha os sonhos do hóspede anterior, e ainda há aquele em que um personagem se descobre como sonho de uma outra pessoa.

Para esta miríade de personagens e situações insólitas, que se situam entre a poesia e o conto fantástico, Fernandes vai espalhando nomes de suas referências, sempre de maneira bem humorada, convidando o leitor a uma verdadeira caçada a seus easter eggs: aparecem, por exemplo, os nomes de Roy Lichtenstein, F.W. Murnau, Bela Lugosi, etc. De alguma forma, o autor espalha e compartilha seu mapa de delírios e sonhos tanto através da paisagem surrealista da cidade, quanto em seu universo de influências e subtextos. Este universo se revela no gesto de renomeação e duplicação do nosso mundo, exalando erudição, mas não só isso. O tom modesto do texto, a coloração pastel das páginas e o aspecto encurvado, espremido, dos personagens, denotam equilíbrio entre ambição e simplicidade, deixando a leitura lúdica, curiosa, aguda.

A origem desta mistura entre modéstia, poesia, erudição e um senso de humor muito específico é difícil de determinar. Poderíamos pensar em coisas semelhantes ao vermos os filmes de Wes Anderson, Aki Kaurismäki ou Hong Sang-Soo. Ou lendo as HQs de Lourenço Mutarelli e os contos de Murilo Rubião. Há um DNA que mistura surrealismo, existencialismo e humor que pontualmente aparece em expressões culturais aqui e ali. Porém, é certamente no imaginário de Jorge Luis Borges que encontramos um parentesco mais afinado, unindo certa curiosidade filosófica debochada ao fascínio por mundos adimensionais que ocorrem dentro das mais diminutas manifestações da nossa percepção. Assim, a obsessão do músico Sikorsky – daPior banda… – em escrever a peça musical perfeita para o mais banal cotidiano ecoa na obsessão de Pierre Menard – de Ficções, de Borges – em reescrever, palavra por palavra, o Quixote de Cervantes. Da mesma forma, o peso e a densidade das palavras buscada pelos irmãos Nazca lembra a metafísica que tange a biblioteca de Babel em Borges.


Uma literatura borgeana de boa qualidade já é rara pela própria rarefação indefectível do gênio do autor argentino. Imagine então encontrarmos em quadrinhos algo que encante com a mesma propriedade, ainda mais partindo de um estado lacônico, estatelado no tempo, tipicamente português, como o que encontramos na HQ de José Carlos Fernandes? A pior banda do mundo, lançada originalmente nos anos 1990, pode hoje ser considerada já um clássico, em que a norma é a fragmentação e no qual o punch line das piadas nunca acontece, mergulhando o leitor em uma ansiedade cíclica pela solução de mistérios indecidíveis, de coincidências inalcançáveis. É neste hiato que mora o pensamento poético. É nesta vala que a pior banda do mundo toca sua música.   

* Publicado originalmente no jornal de quadrinhos Suplemento.

Escalpo e o tempo mítico

$
0
0

por Lima Neto

O quanto devemos ao passado? Não falamos do almoço que foi degustado ontem, mas de ações que foram tomadas há vários anos atrás e que deixam sua marca no presente com muito mais força e brutalidade que o agora. Se o tempo for visto como um fluxo contínuo de decisões e acidentes, então estas ações do passado a que me refiro são como gigantescas pedras que dilaceram e estraçalham o tempo para sempre. Estas rochas são marcos, pessoais ou coletivos, que sempre imporão sua vontade ao tímido e nascituro presente. E a série Escalpo, escrita por Jason Aaron e com arte de R.M. Guéra, gira em torno desta inevitabilidade de um passado que se impõe ao presente. Um passado violento e pessoal e, além disso, um passado ainda mais violento, o passado histórico.


Shunka e Corvo Vermelho cuidando dos negócios do Cassino Cavalo Louco
Em Escalpo, série de crime publicada no Brasil na revista Vertigo da Panini desde seu início e que se concluirá este mês em uma edição especial toda dedicada à série, conhecemos a reserva indígena fictícia de Rosa da Pradaria, e seu amargo povo remanescente dos índios Lakota. A série foca no agente especial do FBI Dashiel Cavalo Ruim e sua missão/punição de retornar à sua terra natal após mais de 15 anos para angariar provas que incriminem Lincoln Corvo Vermelho, um líder tribal às vésperas de inaugurar um cassino na reserva e movimentar milhões em dinheiro sujo. O passado de Corvo Vermelho é uma longa estrada de contravenções e assassinatos que tinham como objetivo manter o grande plano que ele havia pensado para a reserva. Ele se inicia com o duplo assassinato de agentes federais ocorrido nos anos 70, e tem entre os acusados Gina Cavalo Ruim, mãe de Dash. O desfile de personagens e seus passados entrelaçados vão construir uma tapeçaria marcada por uma violência ainda maior: a colonização e extermínio dos povos indígenas pelos invasores europeus.

Lincoln Corvo Vermelho e seu totem animal.
A desolação e a pobreza dão o tom das ruas da Rosa da Pradaria. Como bem coloca um dos personagens, a situação das reservas do centro dos Estados Unidos só pode ser entendida como um país de terceiro mundo no coração dos EUA. Confinados em suas terras, os cidadãos da reserva se afogam no álcool, o que faz das terras indígenas os lugares de maior índice de alcoolismo dos EUA. Os jovens, sem perspectivas ou opções, se dividem entre viciados e traficantes movimentando uma indústria de metanfetamina e heroína que prospera graças aos policiais tribais, muitos corrompidos pelas promessas de dinheiro fácil que os cassinos representam para as reservas. Deste mundo, poucos conseguem escapar. Dash é um deles, mas que agora retorna com uma missão que lhe foi empurrada garganta abaixo pelo agente especial Nitz, um federal veterano obcecado em vingar seus amigos e levar Corvo Vermelho para a cadeia.

Jason Aaron escreve sua saga de crime e sacrifício como um cavalo louco. Superficialmente, Escalpo pode ser descrito como uma mistura de Família Soprano com romances policiais de agentes infiltrados. Porém, a impressionante pesquisa de sua ambientação, a maestria com que tece a trama dos personagens e o ritmo estonteante da narrativa - somada à belíssima arte do sérvio R. M. Guéra – fazem de Escalpo uma espécie de Chemako on drugs. O percurso das personagens é sempre impressionante. Mas uma coisa dá o tom da narrativa: sua complexa e sofrida relação com o passado.  O retorno de Dash à Rosa da Pradaria é apenas uma volta no eterno retorno que a história exerce na narrativa.

Dar más notícias aos filhos de uma prostituta:
um dia de trabalho para Dash Cavalo Ruim
A narrativa quebrada de Aaron remete diretamente a outros autores semelhantes da editora, como o Brian Azzarello ou David Lapham. Entretanto, o quebra cabeça que se monta é sempre duplo: uma situação atual e sua contraparte no passado. Em seus arcos de história iniciais, o olhar do leitor é sempre entrecortado, invadido por uma narrativa que se quer a principal, mas que se passa em um outro tempo. E neste momento a pena de Guéra brilha. Sua caracterização de personagens, com muita influência da escola italiana e francesa de faroeste, é tão precisa que garante que você identifique um personagem 30, 40 anos no passado. Esse passado é tão vivo que deixa o presente para trás. Transforma o presente em frágil memória. Impossível não lembrar do trabalho do pensador romeno Mircéia Eliade. Para Eliade, nas culturas míticas, há um tempo marcado pelo retorno ritual do passado. As datas comemorativas, como São João por exemplo, são um momento em que se sai do tempo mundano e individual e se retorna a um passado coletivo e mítico. É o eterno retorno de Eliade. Este retorno marca o ciclo temporal e a passagem do tempo de forma compartilhada. O ser humano atual não partilha deste eterno retorno da mesma maneira que os povos antigos. O homem moderno está preso ao tempo mundano e sua infinita evolução onde desenrola os dias em direção a um final para o qual não está preparado. O tempo sagrado do eterno retorno, heterogêneo e ditado pelo mito vai ser deixado de lado por um tempo profano, homogêneo e ilusoriamente livre. O homem moderno vai enxergar no tempo profano a possibilidade de escrever sua própria história, sem perceber que de fato é uma peça minúscula dentro de uma história muito maior dominada por uma minoria que impõe sua narrativa ao cotidiano deste homem moderno.


Flashback com Gina Cavalo Ruim e Lincoln Corvo Vermelho.
Esse conflito entre uma forma sagrada e coletiva de agir e uma liberdade profana e ilusória é uma boa metáfora para o grande pano de fundo da Rosa da Pradaria e seus habitantes. Todos os personagens de Escalpo se encontram emaranhados nas cordas que lhes dão a ilusão de movimento. Corvo Vermelho, um personagem de carisma ímpar, esticou as cordas da tradição para que estas se dobrassem à sua vontade. Dash Cavalo Ruim foge de suas cordas apenas para se ver emaranhado por outras ainda mais traiçoeiras. Outros personagens, como Gina Cavalo Ruim e o índio branco Diesel, lutam para que suas cordas não sejam trocadas pelos fios profanos do tempo histórico. Enquanto que personagens como o testa-de-ferro Shunka e Carol Corvo Vermelho sabem o que é preciso para sobreviver em um mundo sem redenção. Esse balé estressante de esforços quase sempre culmina na mais palpável frustração. O passado dos personagens de Escalpo não permite que eles se arrastem para muito longe de Rosa da Pradaria. Nessa realidade pós-faroeste, tempo profano e sagrado sucumbem e se misturam na esmagadora gravidade que a história vai instaurar nesse povo. Em Escalpo não há heróis, nem vilões, só há vermes se contorcendo para se verem livres de seu passado, e falhando miseravelmente. 

Raio Laser's Comics' Quicky #03

$
0
0


O biênio 2013/14 tem sido uma época boa para os quadrinhos brasileiros. Eventos como o FIQ e a Feira Plana, somados a incontáveis feiras de quadrinhos, pequenas ou grandes, espalhadas pelo País todo, mostram que, se o mercado das grandes editoras ainda é reticente em relação a publicar material nacional, no mundo independente (ou "dependente", conforme ponto de vista) a coisa fervilha. Este material pode aparecer impresso, online, em zines de luxo, publicações requintadas, xerox, em tiragens de milhares de edições ou apenas poucas dezenas, etc. Minha opinião é a de que, para que uma cena se fortaleça, é preciso um volume grande de gente participando. Joio e trigo. Coisa ruim, banal, esquecível, e coisas que ficarão para a história. A quantidade fomenta a qualidade. Com ajuda do amigo quadrinista Pedro D'Apremont, que foi nestes eventos e trouxe dezenas de quadrinhos para que eu pudesse ler (agradeço a cordialidade), selecionei algumas das coisas mais interessantes que apareceram em minhas mãos e escrevi breves comentários. Quase tudo coisa boa. Só peço ao povo dos quadrinhos (muito autolaudatório) que pare de chamar gente que está apenas fazendo um trampo honesto de "gênio", "mestre", "monstro", como vejo tanto por aí nas redes sociais. Menos, pessoal. Afinal, como diz meu amigo Chico Mozart, se vamos chamar qualquer um de gênio, que palavra vamos usar para falar de Beethoven? (CIM)  

Se quiser aparecer nesta seção (a gente tarda, mas não falha), envie seus quadrinhos para (novo endereço!):

RAIO LASER
SQS 212 Bloco G Apto 501.
Brasília-DF
Brasil
CEP: 70275-070

por Ciro I. Marcondes


Samba Nº 3– Gabriel Góes, Gabriel Mesquita e Lucas Gehre (Org., Independente, 2013, 166 p.): A Samba é uma das iniciativas mais significativas da cena dos chamados quadrinhos “dependentes” brasileiros, e este número 3, financiado via Catarse, amplamente aguardado, saiu no ano passado. Novamente temos um trabalho cuidadoso de editoração realizado pelo trio de quadrinistas brasilienses: uma capa arrojada e intrigante, uma história inteiramente “destacável” (“Galaxian”, espécie de souvenir), ótima qualidade de impressão e um louvável trabalho de curadoria (ou ao menos na intenção), já que esta edição reúne, além dos organizadores, alguns dos nomes de maior destaque deste cenário. Gente como Rafael Coutinho, Diego Gerlach, DW Ribastki, Bruno Maron, Stêvz, André Valente, etc, etc. Além disso, há a presença de quadrinistas mais jovens que avançam na publicação, como Pedro D’Apremont e Mateus Gandara. Tudo lindo, não? O problema é que, a despeito da seriedade do trabalho e das boas intenções, o resultado desta terceira Sambaé irregular não pela falta de talento ou calibre nos quadrinistas escalados, mas por um certo desleixo com as histórias mesmo.
Uma quantidade considerável dos trabalhos publicados não passa de gags ou sketches, coisas tolas, esquecíveis, como é o caso do abre (com Stêvz) e do fecha (com Elcerdo) da revista. Dadaísmo e rabiscos, dois sérios problemas dos quadrinhos brasileiros. Mesmo a parte de Rafael Coutinho, grande talento, que “narra” uma história de assassinato com pontos coloridos, se perde no excesso de abstração e experimentalismo. Meio difícil de engolir. Outros trabalhos, como os de Carlos Ferreira (“misterioso” e sem graça), João Lavieri (um delírio à Spain Rodriguez), Mateus Acioly (muito zinesco) e Pedro Cobíaco (boas ilustrações que lembram o estilo de Tardi, mas com roteiro clichezento) são descartáveis e pouco acrescentam no volume que fazem na revista.  Em geral, paira o preguiçoso experimentalismo “vale qualquer coisa” e pouca coesão. Falta, claramente, um conceito que unifique a revista, um propósito que seja mais do que simplesmente juntar uma galera que ilustra pra caralho e botar pra jogo. Se o conceito for a “diversidade” esquizo pós-moderna, tudo bem, eu compreendo, é um sinal dos tempos, mas não me obriguem a gostar.
Nem tudo, porém, são pedras. Algumas das histórias em Samba 3 são mais vigorosas, revelando natural maturidade nos artistas, coisas pensadas de maneira efetivamente mais adulta e profissional. Gerlach (sempre salvando a pátria) traz, em colorido psicodélico, a história psico, histérica, cheia de palas, de um lobisomem punk. Seu traço vem revelando um estilo cada vez mais autoral e autoconsciente, e o roteiro, cada vez menos caótico e largado, ganha força representacional. O mesmo vale para DW Ribatski, cujo estilo mais indie (lacônico, confessional, autobiográfico) dá um tom mais sóbrio à coletânea como um todo. Um alívio narrativo. Também vale destacar a história “muda”, de compleição mais expressionista/leste europeu, de Tulio Caetano, com arrojadas soluções narrativas, uma arte bastante personalizada em branco e preto, e um roteiro satírico, ácido e delirante. Há também o trabalho insólito, sempre inovador e desafiador, de Eduardo Belga, que constrói aqui uma mapa de conceitos visuais em quadrinhos, com pouca aproximação lógica, mas cujo resquício de sentido é o suficiente para ativar uma ação horripilante nos umbrais da mente.
Por fim, o que considero a grande conquista desta edição é a já citada série Galaxian, de Góes e Gehre, publicada ao longo de 2012 no site do coletivo. Trata-se de uma psicodélica saga space-opera não em quadrinhos, mas sim narrada em lindas splash-pagesmulticoloridas e ilustradas com o mais dedicado apuro detalhista, como se fosse uma narração arcaica em vitrais e um livro infantil ao mesmo tempo. O roteiro de Gehre, com seus impérios galácticos, futuros utópicos, fontes inesgotáveis de energia, além de heróis e vilões, é esteira para a arte de Góes florescer carregada de referências pop engraçadas, do UFC a Comandos em ação. De Star Wars a X-Men 2099. Obviamente, a chegada de mais uma Sambaé uma conquista para os quadrinhos tanto de Brasília quanto nacionais. O cenário brasileiro de quadrinhos autorais tem se tornado vigoroso e o talento dos artistas amadurece no compasso das condições de produção. Há que se ter paciência, mas os frutos deste processo até agora progridem visivelmente.
Prego Nº 5– Alex Vieira e Guido Imbroisi (Org., Independente, 2011, 80 p.): o que vale para a Samba, de certa forma vale também para a Prego. Publicação punk de Vila Velha (ES) que reúne não apenas quadrinhos, mas também ilustrações, textos e entrevistas, esta revista indiee selo editorial tem se destacado no cenário nacional pelo design arrojado, pela multiplicidade de publicações e também por orbitar os quadrinistas mais bem relacionados nesta cena. O resultado é uma publicação de verve mais agressiva e chutada que a Samba (que quer ser mais... arté), por mais que as duas compartilhem praticamente os mesmos autores. Nesta edição número 5, já meio velha, todas as histórias giram em torno do som e da música (fazendo parte de uma trilogia “sexo, drogas e rock and roll”). Focar a revista em um tema só é um mérito, permite que se trace uma linha de coesão entre uma história e outra, fica mais fácil de se pensar um comentário a respeito. O problema é que vários dos autores parecem não ter entendido direito o que fazer com o tema, gastando tempo e trabalho com o processamento de qualquer coisa que lhes veio à mente. É o caso do próprio Alex Vieira, de Yuri Moraes e Tom Noise. Gerlach desta vez manda mal com uma história “sensorial” de uma fossa regada a música. Não vai a lugar algum. Cynthia Bonacossa ao menos cria uma história autoirônica, em que confessa não saber o que fazer com o tema. 
Mesmo assim, há um punhado de boas colaborações, como a biografia do crítico musical Lester Bangs (de Chico Félix), num estilo que mistura Peter Bagge com Allan Sieber, quadrinho bem dosado, cheio de referências dentro e fora dos letreiros, com humor preciso, cirúrgico. “Lembrança de quinze anos”, de Fernando Saul e Xablutz, narra a relação da adolescência com a música e o universo afetivo que a circunda, com a solução (meio batida) de colocar letras de canções na caixa de letreiros enquanto a história se desenvolve. É inofensivo, mas a leitura agrada. Ao menos não é “quadrinizar” uma letra de música de Jorge Ben, como foi o caso de Nik Neves (sem comentários).
O universo afetivo da juventude também é explorado na primeira parte da série “Palhaços tristes”, de Gabriel Mesquita, que virou até (um bom) curta-metragem. Aqui, o quadrinista brasiliense desenvolve estilo bastante minimalista, um pouco inocente e pueril, ao colocar um par de patetas completamente ordinários, tristes de tão insignificantes, refletindo sobre sua própria condição numa “festinha” de classe média. A quadrinização é direta, sem firulas, e essa “pobreza” conceitual ajuda na pobreza espiritual dos personagens, ao contrário da atmosfera barroca do filme de Rafael Lobo. A melhor história da edição, porém, fica com o quadrinista português Marcos Farrajota e seu tergiversar free style, altamente ácido, sobre a cultura do punk rock nos dias de hoje. Em cinco páginas, no que parece um surto rabiscado de improviso, ele vai das “demos” podreira (Mukeka de Rato, Leptospirose, DFC, etc.) que recebe pelo correio, à saga de conseguir revendê-las em Portugal, a uma reflexão sobre o solipsismo da cultura punk nos dias de hoje, à comparação entre o som brasileiro e o português, e até a uma árvore genealógica do estilo, partindo de 1976. Finalmente, em talvez um único caso, a música tenha sido relevante na edição “musical” da Prego. O resultado em geral, porém, por irregular que seja, é positivo. Melhor queimar os fusíveis dessa galera de uma vez e deixá-los experimentar do que esperá-los apodrecer procurando fazer obras-primas.


Surfista Calhorda– Fábio Lyra, Pablo Carranza, Porco e Presto (Org., Pula Pirata/Power Fuckers, 2013, 56 p.): Sacanear o Surfista Prateado não é uma má ideia. Quase todos os heróis de Stan Lee trazem consigo uma coisa puritana, de bons costumes e valores – é o filhinho da vovó, a família margarina, o pobre órfão cego, etc. – associados a sofrimentos terríveis, histórias de superação, contos motivacionais. Uma coisa, assim, meio dickensiana, mas, ao invés de cada história ter 700 páginas de densidade justificando essas coisas, tem 24 de puro pulp engana-trouxa. O Surfista chega realmente a ser o melhor e o pior ao mesmo tempo. Lee tinha essa intenção “nobre” de fazer um personagem metafísico, filosófico, exilado no espaço, etc. Mas o cara, lembremos sempre, parece a estátua do Oscar, usa uma prancha de surfe (?) e... não tem piroca.
Um time de depravados e escarninhos da HQ nacional resolveu fazer uma revista em formatinho virando o conceito do Surfista do avesso, provando que comics não é bem um território muito valioso para a galera que está reinventando os quadrinhos nacionais. Não tem como não apoiar. Desde o texto de abertura (de Bruno Azevêdo), que pinta o Surfista como calhorda por rejeitar sua amada Shalla Bal, até as versões de Pablo Carranza (uma coisa sem-noção em que Galactus deixa todas as mulheres do mundo com TPM, e o Surfista e Reed Richards têm de se aliviar com animais e sereias) e Fábio Lyra (em que o Surfista vira zineiro de poesia new age vagabunda), o herói é zoado de todas as maneiras possíveis: vira tema de papel de LSD, surfistinha no Havaii e refugiado do nazismo na Argentina. Galactus, por sua vez, é sempre retratado como um laricado, glutão e obtuso. A revistinha é, como se pode ver, uma mongolice, e, finda a diversão (depois de ler numa cag*da), talvez seu destino (como o de qualquer formatinho) seja o lixo, mas vale a leitura. Isso me lembra de minha ideia de botar a galera da HQ underground brasileira de hoje para fazer paródias/releituras dos abstrusos heróis clássicos brasileiros, como Capitão 7, Raio Negro e Velta. Fik dik.   


Falsidade Ideológica Nº 1 e 2– André Escobar (Anti-Tudo e Todos/Ninho de Vespa Quadrinhos, 2012/13, 48 p. cada): o autor deste fanzine, famigerado Escobar, deixa claro em seu “Manifesto fanzineiro quadrinista”, logo na número 1: isso aqui é “História em Quadrinhos Brasileira de Escracho”. Dentro deste nicho, o cara acerta em cheio. Falsidade ideológicaé uma espécie de zine à moda antiga feito por um punk velho que não se esquiva de sacanear a própria contracultura, o ridículo da luta “contra o sistema”, e a própria condição miserável do fanzineiro como um todo. Sua história principal, contada em quadros grandes e expressivos, meio estilo Bob Cuspe, é “Vida de artista”, em que um quadrinista (ele próprio) sequestra um ator global viciado em heroína pedindo que esse “lixo da indústria cultural” seja substituído por “cultura de qualidade”, ou seja, seus próprios quadrinhos toscos. O final anárquico e ruim pra todos não poderia ser mais clarividente sobre a condição tanto do indie maltrapilho e orgulhoso de suas porcarias quanto do mainstream obtuso e imbecilizante. Escobar dispara também sua metralhadora ambígua em direção a cotas raciais, suicídio, cocaína, Ziraldo e outros tantos temas polêmicos. Escracho de primeira. De fato, Falsidade ideológica merecia esses prêmios todos (HQ Mix, Ângelo Agostini, etc.) que ele faz questão de ironizar neste zine comédia.


Bebê GiganteTiago Elcerdo (Projeto 1000, 0004, Cachalote, 2011, 24 p.): eis mais um bom lançamento de 2011 que havíamos deixado passar. Não custa corrigir aqui. Nesta HQ completamente “silenciosa” (sem falas, como todas do projeto 1000) de Elcerdo – quadrinista de traço um tanto tremido e de alguma forma tristonho (no caso, qualidades) – acompanhamos uma espécie de vila medieval em que um casal de caçadores encontra um bebê enorme, monstruoso e voraz debaixo de uma árvore. As consequências de se levar esta criatura para casa acabam esbarrando na fronteira entre o amor humano e a brutalidade animal. Elcerdo lida muito bem com esta aporia, criando uma excelente metáfora sobre a animalidade em nós mesmos, e sua inevitabilidade em um mundo em que nossos instintos parecem cada vez mais estarem sendo submetidos a todo tipo de regulação técnica. O despojamento visual da HQ, equilibrando bem splash pages com minudências, denota sofisticação narrativa, mesmo que a leiamos em apenas um minuto. E, mesmo com um final muito aberto e um tanto confuso, Bebê Giganteé uma das melhores edições de “1000” que li até agora, mostrando que Elcerdo tem grande desenvoltura não apenas com o humor e o surreal (“Beleléu”), mas também com o drama em quadrinhos.     


Grounfff!!! Histórias estranhas. Quadrinhos malditos Nº 1Koostella (Independente, 2012, 36 p.): Koostella é um quadrinista paranaense que mora na Suíça, um tanto isolado do resto da patota indie nacional. Desde que li uma história dele na Golden Shower, virei fã. O cara tem perfeito timing para bons quadrinhos de humor, sem ser insípido, sem ser somente grosseiro, sem perder sua naturalidade autoral. Além disso, sabe cruzar referências sem que pareçam gratuitas, indo do horror brasileiro dos anos 60/70 até a trajetória completa da música pop, passando pela ficção-científica. Mas não se enganem: não há nada de esquizofrênico em seus quadrinhos. Neste ótimo zine Grounfff!!! há sim uma miscelânia de coisas, mas, como num episódio de Futurama, todas as referências estão submetidas a um mesmo substrato, que neste caso é o traço neurótico e os personagens degenerados de Koostella. Mudam-se os temas, permanece o tom de deboche sagaz em relação à cultura pop e à sociedade contemporânea. Assim, aparece aqui um misto de terror com autobiografia em uma história de estremecer os ossos sobre uma criança sendo assombrada por uma mão fantasma; ou as biografias de bandas absurdas, lunáticas, em tudo excessivas, mas que ao mesmo tempo são distorções febris de artistas reais; e por fim uma história futurista com cenários quase num tom meio arte-naïve, uma coisa assim “fantástica fábrica de chocolate”, que nos apresenta um mendigo que desconfia que as máquinas de teletransporte são, na verdade, copiadoras. Hilário. Koostella pode não reinventar a roda, e certamente está alinhado à frente de quadrinhos ácidos/cínicos/paródicos que meio que esgotaram um pouco o potencial criativo da produção brasileira há algum tempo, mas não se pode negar que, neste ramo, ele é um dos mais carismáticos.


BadonkadonkFelipe Portugal (Independente, 2013, 84 p.): vamos ser justos com Felipe Portugal: qualquer um que se preste a escrever um romance gráfico (ou uma história longa fechada, tanto faz) e lançar na forma de zine merece algum crédito. O esforço de se desenvolver arcos narrativos, solidificar personagens, construir histórias é em si um ato quase político na HQ brasileira, já que nosso cânone é composto quase inteiramente de tiras, charges e excertos satíricos. Badonkadonk procura dialogar ao mesmo tempo com a linguagem do mangá (tem alguns estilemas tezuka-escos, mas as referências primárias são coisas mais rasteiras, como Dragon Balle One Piece) e do videogame, sendo certamente insatisfatória no que tange a ambos. Afinal, somos apresentados a um mundo pouco contextualizado em que os personagens pipocam nas fuças do leitor como se saídos da sarjeta de um jogo de Master System tipo beat’em up, fazendo-nos engolir uma trama absurda (seria boa se fosse surrealista, mas esta qualidade é claramente involuntária), infantil e tosca. O autor, de boa fé, quer que pensemos se tratar de algo à moda antiga (?), “estilo Band Kids”. O que parecia um trunfo (a coragem de produzir o texto longo), quando inspirado em tão “inevitáveis” referências, acaba desembocando em mais um tropeço da nossa produção. De um jeito ou de outro, há ainda um caminho longo a se seguir.


Xula– Luciana Foracipe (Org., Maria Nanquim, 2014, 108 p.): seria fácil confundir a Xula, caçula entre as revistas mix indie brasileiras, com mais uma publicação despudorada, fritona, carregada na putaria e na escatologia, como tantas outras que são evacuadas na nossa cabeça todo dia nesse meio. Afinal, a Xulaé, efetivamente, uma revista muito... chula: é difícil ler alguma história que não fale de cu, de merda, de piroca, de violência grotesca, coisas assim. Até aí, nada de novo no front, apenas a vaga impressão de que o quadrinista brasileiro contemporâneo tem algum problema com a fase anal freudiana. Lendo a revista, porém (que tem excelente editoração e diagramação), percebemos, em sutilezas filigrânicas, que a Xula tem alguns diferenciais. Em primeiro lugar, não são os mesmos nomes de sempre. Publicada por Luciana Foracipe, a moça responsável por um louvável trabalho de formiga de coletar e divulgar as melhores tiras em quadrinhos na Internet, Xula reúne alguns dos mais intrépidos quadrinistas nesse metiê, que agora procuram desenvoltura fora do ambiente virtual. São eles o brutalmente cínico Ricardo Coimbra, o irreversivelmente paródico Bruno Maron, o chocantemente psicótico Bruno Di Chico, e o flagrantemente irracional Calote. É um time de primeira, que procura exoticamente misturar escatologia com política, e putaria com uma visão sobre o Brasil. Por mais que, como toda revista mix, a Xula se manifeste ainda sob alguma irregularidade, é franca a intenção de se fazer quadrinhos, sim, sujos, mas em que a sujeira se revele como substância imprescindível para se compreender que porra é a sociedade em que vivemos. Coimbra e Maron são francamente superiores, ainda que os outros dois guardem suas personalidades e qualidades. O primeiro representa um mundo cinzento em que a cultura pop, o mundo midiático e o universo do consumo são insumos de uma sociedade demente e autodestrutiva. Poucos no Brasil hoje produzem com ironia tão incisiva. O segundo, na mesma linha, escrotiza com o imaginário infantil de uma geração narcísica para trazer à tona uma classe média retardada, inconsequente, oca. Se o universo agressivo de Xula pode parecer indigesto demais para alguns, há que se compreender que essa mistura entre um pensamento punk e uma leitura política do mundo nunca foram excludentes. Angeli sempre esteve aí para ligar uma coisa à outra, e esses caras são claramente seus descendentes.   



SurubotronDavi Calil (Dead Hamster, 2013, 28 p.): uma one-shot com capa à Frank Frazetta, ilustrações estilo BD contemporânea, ótima coloração, misturando temas que vão da (já tradicional) putaria à brasileira com sci-fi B? Parece um bom negócio. E é disso que se trata esta Surubotron, um verdadeiro achado em meio à anarquia de quadrinhos ruins/amadores que compõem boa parte do nosso cenário contemporâneo. Calil conta a história amalucada de um alienígena que cai na Terra e sem querer liberta uma substância (controlada por um cientista maluco) que faz todo mundo cair na suruba. E tome ótimos desenhos de sacanagem engraçada, misturados a sátiras sociais, paródias de filmes, etc. E o melhor: sem usar qualquer palavra (fazendo inveja às edições do projeto 1000). O autor não se esquiva de suas ambições e faz uma quadrinização hiperdetalhada, de leitor experiente, melhor do que muita coisa até no mercado indie americano. E é o primeiro trabalho do cara. Aguardemos mais.


Banhero Selvagem Nº 1 e 2– Pietro Luigi (Org., Independente, 2012/14, 22 p. e 32 p.): quando parecia que não tinha mais pra onde surgir revista de putaria, escatologia e humor doente, chega aqui no escritório da Raio Laser (a.k.a. minha casa) um pacote com a primeira Banheiro Selvagem, barbarizando pra todos os lados. O autor da empreitada fritona, carregada de bundas gigantescas, pin-ups com dinossauros e algum gore (a capa denuncia: “piadas infames, mulher pelada e violência gratuita” ou: “contém 20 mg de coliformes fecais”) é o infame Pietro Luigi, doidão de Londrina afeito a grafismos e uma estética que poderíamos até chamar rockabilly, não fosse tão torta. Há um salto grande entre a número 1 (um apanhado de desenhos histéricos, colagens pornográficas e tiras nem tão engraçadas assim) e a número 2, que se aproxima mais do padrão mix atual, com colaborações interessantes (como Chico Félix), algumas ilustrações shokantes e até uma entrevista com um bom desenhista holandês. Tudo sem perder a premissa zinesca, visceral (literalmente: vísceras aparecem logo na capa), representada especialmente pelos desenhos grosseiros, mas carismáticos, de Luigi. Vale destacar as capas, bem lisérgicas, e o texto do também infame Rogério Skylab (verdadeira peça de literatura marginal) na segunda edição. Não chega a ser state of art (óbvio), não é para ser levado a sério (evidente), mas vale como uma boa injeção de sem-noçãozice na veia. 


That's all, folks!

Geração Q: os novos quadrinistas brasilienses

$
0
0



por Ciro I. Marcondes
fotos João Luiz Marcondes

Brasília, minha cidade, definitivamente não é para principiantes. Acossada por chuvas violentas e incessantes no verão, que depois dão lugar a uma longa e sufocante seca que dura quase 6 meses, a cidade tem fama de inóspita, pouco prática, com pouca abertura a quem vem de fora, de difícil penetração. De fato, as dificuldades para se tomar contato real com Brasília vão além de um clima pouco convidativo ou dos endereços calculáveis, matemáticos, complicados para quem vem de cidades “orgânicas”. Por mais que recentemente a última geração de brasilienses esteja se mobilizando com grande esforço para tomar conta dos incríveis espaços da cidade, promovendo grandes festas abertas, gratuitas, com vibrante intensidade cultural (até o carnaval, antes insosso e deplorável, ganhou força e levou milhares de pessoas às ruas este ano), algo de misterioso ainda se preserva nos cidadãos brasilienses. Algo que penso pertencer a uma qualidade cultural intrínseca, rarefeita, difícil de detectar, quase somente percebido pelos mesmos, pequeno segredo de uma etnografia ainda por se fazer.


Origens modernas

Falo não apenas de timidez ou de um caráter reservado (o brasiliense tem fama de recluso, antipático, mas creio que seja mais timidez mesmo), mas de todo um universo secreto, que vibra dentro dos apartamentos, das repartições e das instituições culturais da cidade. Trata-se de um universo que não se abre facilmente, autopoiético (isto é: faz sentido somente para si mesmo), o que faz da cidade um lugar paradoxalmente provinciano e ao mesmo tempo cosmopolita: o cidadão brasiliense pode se recolher em seu universo particular, mas viajou o mundo (física ou virtualmente), sabe o que faz sentido política e culturalmente nos tempos atuais, projeta sua expressão numa interface digital que o faz se reconhecer como cidadão de si próprio e ao mesmo tempo de lugar algum. Por mais orgulho que tenha de suas origens modernas, de viver sob a sombra de uma arquitetura arrojada, de se reconhecer em certa identidade geracional, ele é desde sempre cético, ecumênico, até laico.

De fato, o visitante que chegar aqui e procurar a civilização de uma cidade “orgânica” não vai encontrar nada além de frieza e vazio. Vai visitar a esplanada dos ministérios, ver monumentos estéreis, raciocinar qualquer coisa relacionando o poder público à assepsia coletiva, andar um bocado e não chegar a lugar algum. Mas isso não é Brasília assim como um cartão postal não é uma cidade. Como uma mulher à moda antiga (desculpem aí feministas), Brasília se oculta, requer que seja seduzida. O visitante que souber entrar nestes meandros, conhecer os detalhes idiossincráticos dessa maçonaria de brasilienses, vai provar deste cosmopolitismo provinciano, entender a cabeça de seus habitantes, será inevitavelmente convertido. Brasília foi formada, como se sabe, por visitantes de todo o País, e assim continua sendo. Brasília é seus estrangeiros, catequizados. 

Brasília: seca e solidão
Apesar da gentrificação crescente da cidade, motivada por um cartel da especulação imobiliária (tornando-a superpovoada, violenta, vítima de mazelas metropolitanas), Brasília ainda pode ser reconhecida em suas formas culturais. Infiltrar-se no complexo sistema de relações interpessoais que encontramos por aqui requer, por exemplo, conhecer as alteridades da cidade demonstradas em um filme premiado como A cidade é uma só, do ceilandense Adirley Queirós. Ou em extremos musicais que passam longe do imaginário construído nos anos 80, como o rap de Gog ou o college rock do finado Prot(o), que segue vivo no coração dos brasilienses. É preciso entender um pouco como se mobilizam seus artistas plásticos, dramaturgos, atores, produtores culturais, poetas, DJs, pessoas que tracejam uma linha invisível de motivações que atravessam os muitos bares, cafés, cineclubes, galerias, parques e outros espaços que concatenam uma dimensão lúdica para Brasília.

Não surpreende, portanto, que, dos anos 2000 para cá, diante de uma renaissence cultural que vem sendo empreendida especialmente por gente jovem e disposta a chamar a cidade de sua, tenha florescido uma cena de quadrinhos em Brasília. Uma primeira leva, composta de gente que já se pode dizer veterana, acabou formando ao redor do chamado “complexo Laje” (uma casa na W3 Sul que serve de ateliê e escritório aos artistas) um forte de resistência em prol da ilustração e dos quadrinhos, gerando força em torno da marca “Samba”, que já rendeu várias publicações. Além dos três “samba boys” (Gabriel Góes, Lucas Gehre e Gabriel Mesquita), outros nomes interessantes vêm já ralando com quadrinhos há um certo tempo, como Evandro Esfolando e suas resenhas de shows em quadrinhos, André Valente e sua produção mezzo arté, mezzo paródica, ou Caio Gomez e o pessoal que fundou o Pimba, jornal em quadrinhos bem maneiro recém-lançado pelo “Sindicato” (outra “casa de artistas” na W3). O entusiasmo pelos quadrinhos vem de um consumo grande na cidade desde os anos 80 (que formaram essa galera) somado a uma libertação do curso de Artes Visuais da UnB em prol de um conceito mais amplo de arte, dentro do qual se incluem os quadrinhos. Assumir, dentro do curso de artes, o quadrinho como, digamos, uma “categoria primária” foi algo que foi construído de dentro para fora, a partir das demandas novas dos próprios alunos, o que faz com que hoje, por exemplo, um exímio quadrinista saído desta geração (Eduardo Belga) seja professor no Instituto de Artes.

Em 2013 tive a oportunidade de ministrar, dentro do curso de Comunicação na UnB, um curso completo sobre a História das Histórias em Quadrinhos, cujo programa se assemelhava mais ou menos a isso aqui. Poucas coisas em minha carreira como professor e pesquisador foram tão empolgantes quanto ministrar um curso de histórias em quadrinhos. São três as razões principais: primeiro, saber que você está trabalhando com um material cultural que é puro ouro: vasto, complexo, diverso. Em segundo lugar, saber que poucos sabem disso e que, para a maioria dos alunos, tudo apresentado se pareceria com o abrir de portas de universos inteiros de referências. Por fim, o modo alucinado e vívido com que fomos atravessando todas aquelas escolas de quadrinhos me fez não esquecer aquela turma e criar laços de amizade com eles e com sua produção.

Nesta turma, eu tinha alunos de cursos diversos: Cinema, História, Filosofia, Design, etc. Não posso me esquecer dos alunos dos outros cursos, especialmente os muitos de Comunicação, mas foram principalmente os alunos de Artes Visuais que deram caldo especial para aquela turma, por um motivo muito simples: eles faziam e queriam fazer mais quadrinhos. Obviamente seria arrogante eu dizer que minhas aulas deflagraram o processo todo em que mais de dez dentre aqueles alunos passaram a publicar quadrinhos com regularidade, fossem na forma de zines, fosse na Internet, fosse em outras plataformas (publicando com a geração anterior, inclusive). O fato é que as aulas serviram para congregar estes artistas semana após semana em torno do universo dos quadrinhos; serviram para catalisar o entusiasmo pelo ofício; serviram para configurar uma protocena que, hoje, um ano depois, se solidifica através de feiras de quadrinhos (há pelo menos uma por mês na cidade), projetos no Catarse, reportagens em revistas e jornais e, é claro, amadurecimento autoral e empreendimentos mais ambiciosos. Um exemplo disso é a grande popularidade da tira Batata frita murcha, cujos quatro integrantes pertencem a esta “Geração Q” (adoro dar nomes a essas coisas). Todos frequentaram minhas aulas. A tira, difundida via redes sociais, pode pecar por um certo pieguismo (vá negar!), mas é bastante original: cada um dos quadrinistas publica em um dia na semana, com uma cor específica, momentos frustrantes, insightsínfimos, pequenas delicadezas e afecções do dia-a-dia. Apesar do mote comum (que dá liga e unidade ao projeto), cada artista consegue, com histórias mínimas, manter a sua integridade autoral. Já tem mais de 23 mil fãs no Facebook, e contando.




É por isso e por outros motivos que posso dizer que: 1) sim, há uma nova geração de quadrinistas produzindo material autoral em Brasília, e esta geração se mescla com a imediatamente anterior, configurando uma cena que parece sólida (a ver), com certeza uma das mais férteis do Brasil. E, 2) posso afirmar que, diante deste cenário, a partir dos anos 2000, entender Brasília passa também por entender seus quadrinistas e a arte dos quadrinhos em geral, que já afirmei ser a mais importante para o século XXI. O quadrinho tem a virtude exclusiva de configurar o texto literário com a qualidade plástica, indiscernível, das imagens, produzindo um tipo de leitura de um hibridismo que é pura dinamite narrativa (Flusser diria: leitura em linha e de superfície ao mesmo tempo), em que o autor pode reinventar o meio a cada diferente investida. Logicamente, a capacidade que um meio como este tem de expressar a dimensão cultural profunda de uma cidade é muito grande. Brasília, a cidade que se vela, se revela por meio da melancolia, do experimentalismo ou da agressividade destes quadrinhos. Como a cidade que lhes abriga, estes quadrinistas não fazem arte de fácil deglutição, e por vezes se escondem por trás de aparente vacuidade. Para que eles possam se explicar, resolvi então convidar os quadrinistas desta novíssima Geração Q para responder quatro perguntas relativas ao mercado e à arte dos quadrinhos, precedidas por um comentário meu sobre a arte de cada um, ressaltando suas qualidades. Convido o leitor, pois, a conhecê-los. São sete entrevistas. Vá pela sombra.

As perguntas:

1 – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

2 – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

3 – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

4 – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

As respostas:


Lo-Fié o nome da empreitada de Pedro D’Apremont, o mais rabugento, antissocial e irascível quadrinista desta geração. Com um traço carregado de personalidade, indefectível a cada nova produção (influência de indie comics, coisas como Seth e Dan Clowes), seus quadrinhos são os únicos no Brasil a misturar elementos como sátiras de black-metal, pós-música e deuses nórdicos obscuros em histórias de terror, além de putaria e sarcasmo. Pedro tem o mérito de manter um cast fixo em seus gibis, dando continuidade às histórias, com personagens absurdos e carismáticos, como o deus-doidão Shiva, um pé-inchado de moletom sem calça (ou seja: nu na parte de baixo) tocando o terror por onde passa. A segunda edição da Lo-Fié de um primor tão grande que nem parece um zine. Corra atrás. (CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Pedro D’Apremont– Faço quadrinhos independentemente se isso é uma atividade rentável ou não, faço HQs porque sempre amei lê-las e sempre tive vontade de contar historias de um jeito gráfico. Além do mais, quadrinhos são um meio artístico de baixíssima responsabilidade financeira. Os materiais usados nos desenhos são geralmente muito baratos, você não precisa contratar outras pessoas para te auxiliarem, você pode reproduzir seus gibis em “xeroxes” que cobram 10 centavos por impressão... Apesar de você não conseguir viver de quadrinhos, pelo menos é possível você não gastar quase nenhuma grana fazendo-os, ao contrário do que acontece em outras formas de arte como cinema, escultura ou mesmo música. Mesmo quando a sua intenção é fazer um produto mais “profissional”, por assim dizer, o custo desse objeto, seja ele um gibi ou um livro, será muito mais barato do que, digamos, um disco ou um longa-metragem.

Deuses nórdicos e black metal
A trava que enfrentamos no mercado brasileiro agora não se deve a uma falta de qualidade ou variedade de trabalhos que temos aqui dentro do país, mas mais a uma falta de editoras de grande e médio porte que publiquem obras de cartunistas autorais e talentosos em grande tiragem e com boa distribuição. Enquanto contarmos apenas com a Quadrinhos na Cia (da Companhia das Letras), a Zarabatana e a Conrad, não teremos uma catálogo grande de quadrinhos acessíveis ao grande público, disponível em varias lojas distribuídas pelo país inteiro. Da mesma forma, enquanto os quadrinhos publicados em larga escala oferecerem um espectro limitado de temas, gêneros, traços e narrativas, o grosso da população brasileira ainda tratará essa forma de arte como mero entretenimento descartável e serializado.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Shiva: doidão
Pedro D’Apremont– Essa é difícil! Hehehe. Acho que eu tento sempre dialogar com aspectos aparentemente contraditórios nos meus trabalhos: quero que minhas historias sejam bem-humoradas, mas que tratem sobre assuntos pesados ou perturbadores ao mesmo tempo; que sejam simples, mas que possuam algum tipo de informação ou mensagem que não esteja visível se lidas de um jeito superficial. Acho que justamente por causa dessas intenções meu traço fica entre o cartunesco sintético e o realismo, sendo esse realismo bem relativo, hehe.

Talvez por isso eu goste tanto dos quadrinistas americanos independentes, ao estilo do Daniel Clowes, Robert Crumb e outros caras como Joe Matt e o Seth. Eles conseguem balancear todo drama, peso e seriedade dos seus quadrinhos com humor sutil e um pouco de de autoironia. Mesmo quando eles fazem alguma historia escrachada (principalmente o Crumb), eles conseguem dosar o humor no nível certo pra que o resultado não seja um besteirol tosco. O foda é que eles fazem isso parecer a coisa mais fácil do mundo! 

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Pós-música
Pedro D’Apremont– Dentro dos quadrinhos gosto principalmente da cena independente norte-americana. Parece que desde o final dos anos 80 houve uma onda forte de cartunistas maravilhosos que nunca acabou ou ameaçou entrar em hiato. Adotei o Daniel Clowes como meu mestre supremo já há algum tempo, mas ando lendo muita coisa de gente como Charles Burns, Noah Van Sciver e de alguns canadenses como o Seth (que eu já mencionei) e o Chester Brown. Fora isso, muitos amigos e colegas meus como o Góes e o André Valente, junto com os caras da Gibi Gibi e da Revista Samba têm me influenciado muito e me forçado a trabalhar cada vez mais e melhor. Principalmente a dupla Góes e Valente têm uma qualidade de desenho, traço e humor que eu invejo e aspiro a alcançar. É interessante ver o quanto o quadrinho brasileiro renasceu e adquiriu uma riqueza e refinamento em tão pouco tempo! Acredito que nós temos alguns dos melhores cartunistas e algumas das melhores publicações do mundo hoje em dia, assim como já os tivemos no passado, na geração do Angeli e do Laerte.

Alguns gêneros musicais como Black Metal, Noise, Dark Ambient e Punk também me inspiram e me ajudam a entrar no clima de algumas das minhas historias. A temática tratada nas letras desses estilos (principalmente sexo e violência) e a forma como esses temas são tratados também tem a ver com o que faço nos meus quadrinhos.  Tenho a impressão que grande parte das coisas que fiz nos meus gibis foram movidas por uma tentativa de recaptar um sentimento ou uma sensação que tive quando assisti um filme ou ouvi algum disco. Com música isso ocorre de um jeito quase imediato, pois quase sempre trabalho ouvindo algum álbum no som do escritório aqui de casa, mas lembro, por exemplo, que fiquei vários meses obcecado com Twin Peaks (tanto o seriado quanto o filme, mas principalmente o longa-metragem). Por muito tempo tentei reproduzir as emoções que essa obra me passou, às vezes procurando outras coisas que me trouxessem esse sentimento de volta, às vezes tentando passá-lo para os meus próprios quadrinhos. Isso é só um episódio, mas durante toda a minha vida eu passei por situações onde fui arrebatado por algo que eu não conseguia botar em palavras e tentava resgatar esse algo fazendo um desenho solto ou uma historia. De certa forma é sobre essa relação entre arte e nostalgia que a HQ “Érico”, que eu fiz pra Lo-Fi 2, fala. Se eu consegui me expressar bem ou não, isso já é outra historia, hehehe.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Pedro D’Apremont– Vejo o quadrinho como uma forma de arte como qualquer outra, e não como sub-gênero da literatura ou das artes plásticas. Acho que se os cartunistas, assim como os editores, tratassem as HQs como expressões artísticas autônomas, que não devem nada à prosa, as chamadas “narrativas gráficas” e “romances gráficos” seriam tratados com muito mais respeito, principalmente no Brasil.


É possível que você já conheça o trabalho de Gabriela Masson ou seu codinome, Gabi LoveLove 6. Ela certamente é a garota produzindo quadrinhos mais conhecida de Brasília, já despontando com seu estilo minimalista, de poucos quadros, mensagens subliminares e linguagem onírica abordando o mundo da sexualidade e da afetividade em seus dois volumes do zine A ética do tesão na pós-modernidade. Porém, é com a série Garota Siririca, publicada no portal da Revista Samba, que ela se projetou nacionalmente. Fortemente engajados em um feminismo que procura libertar através de um conhecimento completo do corpo feminino, os quadrinhos dela são monocromáticos, visualmente didáticos, mas charmosos, encantadores. Seus temas demolem tabus, cobrindo cada aspecto da sexualidade feminina, e às vezes resvalando também em pequenas narrativas próximas a Dykes to watch out for, de Alison Bechdel. Seu trabalho mais emocional, cheio de sutilezas, pode ser visto também em Batata Frita Murcha. (CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Gabi LoveLove6– Pessoalmente creio que os quadrinhos sejam uma poderosa ferramente de comunicação e atualmente são o meio pelo qual melhor expresso o que desejo comunicar ao mundo. Percebo que graças à Internet, em especial às redes sociais, o consumo e contato com quadrinhos tem aumentado, possibilitando, por exemplo, cada vez mais projetos a serem financiados coletivamente em plataformas como o Catarse. Essa barreira entre quadrinhos e arte tem se flexibilizado cada vez mais a partir de experimentações narrativas e gráficas dentro do suporte dos quadrinhos. Mais lentamente, o tema tem sido introduzido na academia em áreas de comunicação e artes visuais. Acredito que sejam necessárias mais pesquisas sobre quadrinhos no ambiente acadêmico. Também uma maior produção de quadrinhos independentes e nacionais para maior expressividade do mercado frente à indústria de quadrinhos. Uma formação e mentalidade mais empreendedora dos próprios autores é necessária para que possam articular melhor sua circulação e construção no mercado independente em relação ao público, distribuidores, editores, produtores...

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Gabi LoveLove6– Quadrinhos autobiográficos, sobre sexualidade, relações interpessoais e sentimentos, sob uma perspectiva feminista. Meus quadrinhos orbitam em volta destes temas. Graficamente as experiências variam de acordo com a circulação, público, temática que viso para cada projeto. Escolho abordar estes temas pois acredito que tenham importância política e que possam estimular reflexões acerca das circunstâncias sociais em que estamos submersos.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Gabi LoveLove6– Atualmente consumo especialmente quadrinhos, fanzines e outras publicações independentes e nacionais. Também consumo livros de educação com abordagens feministas ou políticas, como os dos autores Guacira Lopes Louro e Paulo Freire. Os quadrinhos de colegas e autores de possível contato direto me influenciam fortemente especialmente em relação às experiências e métodos gráficos que utilizo na minha produção. As pesquisas em educação e política me ajudam a desenvolver as temáticas que aprecio.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Gabi LoveLove6– Penso que, a depender da narrativa e visualidade de um determinado quadrinho, as barreiras que dividiriam este meio de outros, legitimados pelo mercado de arte, se tornam nebulosas e podem ser ultrapassadas. Porém, os autores não estão especialmente preocupados em serem acolhidos por este mercado específico, uma vez que existe um menos expressivo porém crescente mercado voltado aos quadrinhos e publicações independentes. Creio ainda que possuam preocupações acerca de desenvolver um trabalho artístico que gere reflexão e experiência sensitiva tanto quanto os artistas legitimados pelo mercado.

Lovelove 6: sutilezas

Cesariana– Lucas Marques

Lucas Marques é um caso único na HQ brasiliense de hoje em dia. Ele escreve e desenha um romance gráfico autobiográfico, fortemente influenciado pela escola indie americana (Charles Burns, Craig Thompson, etc.) que vem sendo publicado na forma de um zine muito caprichado em fascículos, Cesariana. Delicada e ao mesmo tempo sombria, a história toca a trajetória de três adolescentes num cenário típico de classe média baixa brasiliense, com surpreendente maturidade narrativa e questionamentos de ordem filosófica (a existência de Deus, o valor do Bem, fronteiras éticas, growing pains, etc.). Lucas pretende concluir a história em 5 edições e estamos prestes a ver nascer a terceira. Esperamos que o ótimo nível se mantenha.(CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Lucas Marques– Se eu fosse me ater a um retorno econômico certamente eu não escolheria o quadrinho como profissão. Porque além de exigir muita dedicação e tempo no processo, não são muito valorizados no mercado brasileiro e muitas vezes nem em outros países mais culturalmente abrangentes. O que me leva a insistir nessa forma de expressão é uma espécie de sentimento de fidelidade. Os quadrinhos são os responsáveis por me fazer despertar interesse pelo mundo e pela arte. Antes do meu envolvimento com os quadrinhos eu não tinha muitas coisas que me estimulassem a querer fazer algo. Mas nessa forma de linguagem eu encontrei algo muito essencial, algo que se adequava perfeitamente ao que eu julgava ser a minha forma de expressão. Me atrai muito as possibilidades do que posso fazer com imagens e palavras, é como se eu tivesse uma liberdade expressiva ilimitada e isso é muito estimulante para mim. Embora, eu também tenha muito interesse por animação e cinema.

Acho que para que o quadrinho adquira esse status de arte ou uma maior relevância no mercado - que ao que me parece tem acontecido, embora bem ao poucos - é preciso amadurecer o que se entende por essa forma de expressão, tanto o público, quanto os editores e até mesmo os próprios autores.  Aqui em Brasília, onde moro, parece que se você não está estudando para um concurso ou se iniciando numa profissão mais prática e de retorno financeiro imediato, você é uma espécie de idiota. Não estou dizendo que o que essas pessoas pensam a respeito disso não têm qualquer fundamento e que elas fazem isso por pura maldade, isso é apenas um reflexo do que a dinâmica socioeconômica lhes impõe. O fato é que geralmente se tem uma ideia muito limitada do que é cultura e da importância que ela tem na nossa sociedade. Em algum lugar que não me lembro onde ouvi dizer que a etimologia da palavra “cultura” está ligada ao processo de cultivar o plantio, preparar a terra, as sementes e esperar que ela dê frutos. Assim, temos que entender que cultura é algo indissociável de tempo, de amadurecimento. Se o nosso mercado econômico e o nossas políticas entendessem e valorizassem esse processo, acho que os artistas não teriam tantas dificuldades de sobreviver nesse meio.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Lucas Marques– Não sei definir o tipo de quadrinho que faço, consigo identificar algumas influências nele, mas não saberia defini-lo. Acho que essa parte de classificação, definição e identificação de tendências deve vir mais pela crítica e pelo público do que pelo próprio autor. Ao menos eu, em meu processo criativo, busco me desvencilhar de classificações, muitas vezes só vou descobrir depois o porquê do que fiz. Como sou um autor iniciante ainda estou buscando desenvolver e amadurecer meu estilo, acho que ele ainda está em processo.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Juventude brasiliense
Lucas Marques– Busco consumir todo tipo de bem cultural que me leve a um experiência estética interessante. Os que mais tenho acesso são livros, quadrinhos, filmes e música. Geralmente nos livros, quadrinhos e filmes eu vou buscando por meio dos autores e diretores, e na música pelo gêneros e músicos que me agradam. Na literatura eu gosto muito dos clássicos, embora me falte muita coisa para conhecer, tenho um apreço muito grande pela literatura russa. Dos escritores contemporâneos que posso dizer que conheço alguma coisa, gosto muito de Gonçalo M. Tavares: é um escritor que adquiriu um prosa muito concisa e segura e um olhar muito sóbrio para as coisas que descreve. Nos quadrinhos o que mais leio são os formatos graphic novel e autobiográficas, mas procuro conhecer um pouco de tudo, embora tenha um bloqueio muito grande em ler super-heróis. Tanto no cinema, como na literatura e nos quadrinhos que são meios que lidam com a narrativa, o que eu busco é  alguma originalidade ou inovação na forma de se narrar e apresentar eventos ou ideias. Acho que o cinema influenciou muito minha forma de lidar com a narrativa, porque por muito tempo me envolvi de uma forma ou de outra com essa área, fazendo storyboard, direção de arte ou mesmo só assistindo. Aprendi a escrever roteiro no modelo cinematográfico e é o modelo que também venho usando nos quadrinhos, pelo menos os mais longos. E no “Cesariana”, meu quadrinho em produção, me baseei muito em vídeos de skate que via na adolescência.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Lucas Marques– Uma coisa que observei e aprendi durante o meu curso (Artes Plásticas) é que o termo “arte” na forma como utilizamos não é nada além de uma espécie de carimbo para qualificar algo, atribuindo-lhe um status social. É uma palavra que empregamos para legitimar ou não um tipo de material criado dentro de nossa cultura. Penso no quadrinho simplesmente como um meio, um meio de se transmitir algo com uma quantidade de recursos ilimitada, mas com suas especificidades, como em qualquer outro meio. Embora ele também possa ser diversas outras coisas, entre elas arte.


Pequi– Taís Koshino e Lívia Viganó

O trabalho constante e cada vez mais misterioso desta dupla de autoras recebe as recompensas e sofre com as intempéries de se fazer quadrinhos extremamente experimentais. Carregados de non-sense, minimalismo pueril (doodling), tiradas sarcásticas e coisas que se parecem com algo que Liniers faria após um colapso mental, os quadrinhos destas garotas passam por experiências de linguagem, trocas sensoriais, jogos de palavras, ou puro e simples mergulho no absurdo. Podem ser encontrados em vários zines publicados desde 2011 (incluindo Pequi 1 e 2), e também em um site muito maneiro com várias séries online. Para alguns leitores, o tom autista das tiras pode levar desde ao desdém até à mais legítima revolta. Eu, no entanto, recomendo fortemente a tira Vida difícil. Certamente é uma das coisas mais lúdicas produzidas por aqui. (CIM)  

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Taís Koshino e Lívia Viganó– Por que tentar outra carreira? Para nós, seguir fazendo quadrinhos é um risco necessário.

O interesse por quadrinhos no Brasil, com a chegada das graphic novels, tem aumentado, as produções têm crescido, estão surgindo novas feiras e festivais voltados para a produção independente (onde realmente há possibilidades de algo novo). É assim, aos poucos que vamos avançando.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Taís Koshino e Lívia Viganó– Não sei defirnir os quadrinhos que faço, eles surgem a partir de uma angústia de dizer e produzir algo. (Taís) O estilo às vezes se estabelece como uma resposta à narrativa.(Livia)

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Taís Koshino e Lívia Viganó - Recentemente entramos em contato com vários quadrinistas diferentes, variados formatos de zine. É sempre bom estar aberta a novas referências, sejam elas pinturas, quadrinhos, enquadramentos num filme, ou a própria vida. (Taís e Livia)

De quadrinhos, estou pirando mais num finlandês, o Roope Eronen, e no Yuichi Yokoyama, um artista japonês do alternative manga. (Taís)

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Taís Koshino e Lívia Viganó - Quadrinhos são arte.


Pequi: pegada dadaísta

Vudu Comix– Mateus Gandara, Heron Prado, Vitor Vitali

A Vudu Comix é um selo de quadrinhos voltados principalmente para o insólito, o horror, o humor negro e o fantástico. É uma das únicas iniciativa de “gênero” na HQ brasiliense contemporânea. Quem encabeça esta empreitada é Mateus Gandara, um quadrinista de traço vigoroso e sutileza poética, que melhora a cada produção lançada. Há um salto, por exemplo, entre os rascunhos de lirismo intimista em As sessões, o senso de aventura e horror gótico tresloucado em Flagelos Noturnose a dimensão existencial primitiva, quase religiosa, em Mondo Colosso, seu melhor trabalho. Sendo um dos desenhistas de maior personalidade da cidade, ele cada vez mais avança também na sofisticação narrativa, dispensando balões e transformando a leitura de seus quadrinhos em um processo de deslindar as possibilidades visuais de seu trabalho.

Por mais que a Vudu hoje conte apenas com a presença de Gandara, ela já teve outros colaboradores. Heron Prado, dono da tira mais non-sense e ácida do Batata Frita Murcha, é um ilustrador caótico, de desenhos rascunhados e cheios de hachuras, bom para histórias de bas-fond perturbador, caso da recente Breve, ou de suas próprias tiras publicadas no portal da revista Samba, a série Futuro de pretérito, um inventário de situações absurdas e possibilidades surrealistas. Outro nome de destaque que colaborou com a Vudu é o do roteirista Vitor Vitali, um dos mais novos nessa galera. Ele escreveu tanto Breve quanto Mondo Colosso, a primeira com pegada noirterceiromundista, e a segunda com visão mais holística, cheia de recursos de perspectiva e ponto-de-vista, aprofundando-se em possibilidades narrativas. Tem potencial, especialmente pela parca quantidade de roteiristas especializados em quadrinhos hoje em dia no Brasil. (CIM)

A colossal Mondo Colosso
RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Mateus Gandara– Particularmente, não pauto minhas escolhas de acordo com as consequências que elas podem acarretar. Já fiz isso durante um longo tempo, talvez durante toda a minha vida. Não faço isso mais. No ano passado, estive muito próximo de encerrar minha temporada nesse mundo, e isso me fez reavaliar minhas prioridades. Entre elas, quais concessões deveria fazer, no tempo que me restasse, e quais não. Nunca mais abrirei mão de fazer o que eu gosto por qualquer outro motivo que não seja o da sobrevivência, ou da manutenção da minha felicidade. Depois do amor pela vida, pela humanidade e pelo Led Zeppelin, tem o amor aos quadrinhos. Abaixo disso está todo o resto. Tenho tempo, vontade e recursos. O que me impede de só fazer o que eu gosto nessa vida tão breve? O julgamento alheio? Meu próprio julgamento? Foda-se o julgamento! Viver está além disso. E eu estou vivo. “Não me comprometo, nem mesmo em face ao armagedom!”

E tem mais: se os quadrinhos ficarem entre eu e a minha vida, fodam-se os quadrinhos também!

Para que os quadrinhos se estabeleçam no Brasil - cultural e economicamente - é preciso, nesse momento de pioneirismo, que venham à tona o máximo de quadrinistas que for possível. Todos eles, eu diria. E com coragem. É preciso que os desenhistas parem de ficar batendo punheta em casa - com seus caderninhos de desenho geniais que só os amigos veem, com seus blogs que nunca são atualizados, com suas histórias de amor e suas tragédias particulares - e comecem a desenhar aquelas histórias incríveis que eles pensam há anos, escrever aquele roteiro genial que você contou pra teu amigo deixando ele com fogo nas calças, sentar com outros quadrinistas e aprender como se faz um quadrinho, ensinar a fazer, montar um pdf, fazer um orçamento numa gráfica e imprimir um quadrinho! Eu garanto que poucas coisas são tão emocionantes na vida de um desenhista, do que ver uma história tua impressa. Ainda que seja curta. Ainda que você não tenha dado todo o sangue. Mas tá lá. E aí não tem mais volta, você vai querer mais. E então a gente começa a formar um público. Daí, um mercado.

A(o)s punheteir@s, reitero que o que eu disse anteriormente foi dito com todo o amor que posso lhes transmitir, do fundo do meu coração. De um punheteiro para o outro. O primeiro passo para deixar de ser um punheteiro, é reconhecer-se como tal. Sem julgar, só reconhecer. É isso que tu é, um descascador - uma máquina de procrastinação. E está tudo bem. Quem nunca procrastinou que atire a primeira pedra. Mas só que tu sabe desenhar e escrever, e gosta disso. E acha que é bom nisso. Então seja o punheteiro que escreve e desenha. Não julga, só faz. E faz porque gosta, não porque acha que é bom. Isso vem depois. Continua, desenha até o fim, nem que seja uma história de uma página só! Imprime, distribui. Sem nunca julgar, mas ouvindo as críticas com atenção. Vai desenhando, vai fazendo outras histórias, outras maiores. Então o processo começa a te consumir. E aí vai ficando menos deprimente ser um punheteiro. Tu até tira um tempo pra uma punheta, porque então você até precisa de uma! Depois você vai numa gráfica qualquer e imprime umas 100 cópias da tua revista. Nem começa com o papo da grana! Vende tuas revistas. Pronto!

Flagelos Noturnos
E então você passa a ser uma pessoa saudável, que faz o que gosta e que pratica uma atividade sexual perfeitamente saudável e comum, nas horas vagas. Quem sabe não se assume um quadrinista? Quem sabe até não melhora tua vida?

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Mateus Gandara– São quadrinhos narrativos lineares, a princípio, que contam histórias com início meio e fim, e com esmero visual - tendo em vista minhas influências e os mais de dez anos de estudo de desenho.  São quadrinhos com argumento enxuto, que dão maior enfoque às sensações que ao discurso. São dinâmicos e soturnos. Tematicamente, sinto que ainda não me defini completamente, mas seria algo abrangendo fantástico/sci-fi/terror/drama. Tenho vários outros projetos em gêneros diversos, com temas mitológicos, policiais e documentais, mas ainda não os botei na lenha, portanto não posso definir qual seria meu gênero predileto. Isso é até um tanto irrelevante, na verdade. Adoro todos os gêneros narrativos, e pretendo explorar todos eles. Pra mim, uma história tem que ser bem contada, independente do gênero, e que tenha nela algo de vivo, que nos faça sentir vivos, ou que nos atente pra vida. Que pulse por si, como algo vivo.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Mateus Gandara– Minhas maiores inspirações para os quadrinhos, na verdade, estão no cinema. Gosto de quadrinhos que têm aspecto de filme. Gosto de síntese; de questões complexas resolvidas em gestos, situações, imagens ou com poucas palavras. Gosto do charme dos filmes europeus pós segunda guerra, e da intensidade do cinema norte americano dos anos setenta. Atualmente está difícil de gostar de cinema (no que faz referência aos quadrinhos), os EUA estão muito repetitivos! Gosto de filmes românticos. Simplesmente amo tudo do Hayao Miyazaki! Tem o Masamune Shirow (Ghost in the Shell) e o Katsuhiro Otomo. Considero Akira uma leitura obrigatória pra quem pretende fazer quadrinhos. Assistir ele também, várias vezes.

As sessões
Quanto aos quadrinhos, Frank Milleré incontornável; se você não vai a ele, ele vem até você. É uma das minhas primeiras referências em quadrinhos, com o Cavaleiro das Trevas e o Ronin, que eu li pela primeira vez quando tinha uns 14 anos. Alan Moore e Grant Morrison para  aprender a ser prolixo sem ser insuportável, além de suas histórias inesquecíveis – Watchmen e Grandes Astros Superman. Moebius, Dave McKean, David Mazzuchelli, Simon Bisley, Liberatori para inspirar o desenho. Neil Gaiman. Lobo Solitário pra aprender a fazer quadrinhos, e ainda aprender alguma coisa decente para a vida. Acho o Eisner chato, apesar de sua importância para que a linguagem dos quadrinhos fosse elevada a um patamar de seriedade, em um contexto sócio/cultur... CHATO!! A não ser pelo Spirit! Spirit, sim!

A literatura é crucial para quem faz quadrinhos. Alguns autores como o Tolkien e o Asimov engrandecem muito a criatividade de uma pessoa. Adoro os livros do Mutarelli. Um deles, o Miguel e seus Demônios, me deu muita vontade de transformar em quadrinhos. Quem sabe? Tem o Cervantes, que dá uma aula de humor, dentre outras variadas qualidades da narrativa escrita. Saramago tem um estilo original (que é tipo escrever errado) que dá muita fluidez pra sua narrativa, e isso é muito importante nos quadrinhos. Gabriel Garcia Marquez, óbvio. Dashiel Hammett, Edgar Allan Poe, Jonathan Lethem e Chuck Palahniuk como maiores incentivos para os pretendidos romances policiais. Leio muito de mitologia grega e história antiga em geral. Nada é mais inspirador do que ler sobre as civilizações antigas. Sou apaixonado pela pré-história.

Em um primeiro momento, tudo o que um artista (qualquer pessoa, na verdade) consome, que seja de ordem cultural – livros principalmente -, irá ampliar as fronteiras de sua criatividade, irá expandir também sua capacidade imaginativa e apurar seu gosto por tudo quanto existe na vida, caso já não o tenha desperto. O que desperta aí é sua consciência - que é algo liberto e não algo inato. É adquirida por mérito. Uma vez desperta a consciência de um artista, tudo o que há - e muito do que não se sabe ao certo se há realmente - lhe servirá como base para a criação.

Acima de todos, eu tenho como a maior inspiração para a criação artística, quiçá para toda a vida, o filme Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa. Ali está tudo o que eu pretendo enquanto artista, tudo em que eu acredito enquanto ser consciente e tudo o que eu considero importante saber sobre o mundo.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Eu não penso nisso. Mas tenho certeza que deve culminar em um acalorado ensejo intelectual pelo o qual eu não tenho o menor interesse. Não acho que “ser arte” ou não importe muito pra qualquer coisa que “seje”.

A arte de Heron Prado

Mês– Daniel Lopes e Augusto Botelho

Escrever, editar e publicar um zine por mês. Com este foco em mente, Daniel Lopes e Augusto Botelho realizaram o empreendimento laborial mais extenso nos quadrinhos de Brasília em 2013. Mês teve doze edições, cada uma delas com o nome do mês de lançamento. Em 2014, via Catarse, eles reuniram todos os zines em um box-set com coisas extras. A qualidade dos zines cresce a cada edição, sendo muito tímida e amadora no começo, e se tornando mais ambiciosa, experimental e autoral no final. Geralmente Mês traz vários convidados, alguns totalmente dispensáveis e outros que também estão listados neste texto. O que é vital para a identidade e sagacidade do zine, no entanto, é o trabalho de seus editores-quadrinistas. Daniel Lopes, um disciplinado desenhista interessado pela história dos quadrinhos, nos apresenta a ótima série Marco, o macaco do espaço, formatada em tiras à moda da era de ouro, com ecos de Flash Gordon e Planeta dos Macacos, sendo ao mesmo tempo homenagem e revisão destes imaginários. Esta HQ não é apenas space-opera de aventura ligeira, mas também revisão de ideias sobre solipsismo, psiquismo, política, história, etc. Seus desenhos são elegantes e simples, com ótimo design de personagens. Já Botelho, dono de um traço mais barroco, mistura de influência de BD adulta com HQ brasileira dos anos 80, faz transparecer estes aspectos também em seus temas. Sua principal contribuição é a história longa O aguardado, mostrando uma surreal aparição do Rei Sebastião nos dias modernos, como espécie de Ronin (Frank Miller) abrasileirado, ecoando o sentido político manifestado nos protestos de 2013. Uma dupla cuja maturidade artística ainda está em processo, mas que não deve parar de trazer novidades de agora em diante. (CIM)

Daniel Lopes
  
Marco: referência à era de ouro
RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Daniel Lopes– Acho que o negócio mesmo é arriscar e fazer o que gosta. Levei muito tempo pra começar a fazer quadrinhos, justamente pela insegurança de arriscar, por não achar que está bom o suficiente, sobre o que é um bom desenho, etc. Aqui em Brasília, conhecia já alguns casos de pessoas fazendo quadrinhos mas acho que quem realmente arriscou foi a galera da Samba, e um somatório de coisas fez o projeto ir pra frente. A qualidade gráfica, das histórias, da impressão, a situação local. Hoje dá pra ver que o público está crescendo, tem mais gente também consumindo quadrinhos, gente que antes não consumia. E tem mais gente arriscando a fazer. Essas coisas já estão acontecendo, e aos poucos vamos avançando.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Daniel Lopes– Faço quadrinhos há um ano apenas, acho cedo pra dizer. Mal comecei a me encontrar no tipo de história que quero fazer, ou o que quero dizer com elas. Na maioria das histórias curtas fico bastante na experimentação, testando a empaginação, adequando o desenho ao clima da história. A história mais longa que fiz foi "Marco, o Macaco do Espaço". Fui fazendo aos moldes das tiras clássicas, como Flash Gordon, e lançando em capítulos mensais. Gostei muito de fazer essa história e pude encher ela de referências, que vão desde desenhos animados e filmes de ficção científica que via quando era criança até teosofia e ufologia. Se pudesse resumir, diria que essa história é um mashup de várias coisas que eu gosto, não há nada de muito novo. Gosto dela também por não ser uma história que se leva muito a sério, acho despretensiosa. Agora no começo do ano participei do 24 horas de quadrinho, uma versão nacional do exercício proposto pelo Scott McCloud. Essa coisa meio louca de ir fazendo sem pensar muito acaba por te denunciar, você expõe suas falhas, fica muito claro pra quem conhece de onde você tá tirando a solução pras coisas. No meu caso, acho muito forte essa questão da referência, o que produzo está muito ligado com o tipo de coisa que consumo, seja no desenho ou no roteiro. Por um lado essa contaminação é produtiva, alimenta as ideias, mas tem de se tomar cuidado com isso e buscar uma autonomia.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Daniel Lopes– Sem dúvida influenciam. Leio majoritariamente quadrinhos, gosto muito de Moebius, Manara, Enki Bilal e esse pessoal da Heavy Metal/Métal Hurlant. Pra mim estão entre os melhores no desenho. Gosto também das histórias da geração britânica de roteiristas da Vertigo no final dos anos 80, Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison. Se pudesse, gostaria de escrever histórias entre essas duas vertentes. Leio também alguns mangás, hoje em dia menos, mas melhor selecionados. O fato de começar a fazer quadrinhos me fez procurar muito os independentes. O contato direto com o trabalho dos colegas sem dúvida é uma grande influência. A gente vai trocando ideia direto, conversando sobre o processo, é bastante motivador. É também uma realidade próxima da nossa, é gente começando também e tentando, testando. O contato com o público ajuda bastante a entender o que funciona ou não. Assisto muitos filmes também e leio alguns livros, a busca pela literatura é uma coisa recente pra mim. Mas pra mim essas referências são mais pro texto. Acho que muito da imagem dos quadrinhos tem essa influência direta do cinema e da televisão, nosso olho é bastante educado por essas imagens. As vezes acho que isso limita um pouco o que podemos fazer com os quadrinhos, por isso tenho tentado buscar mais referências na ilustração, que explorem os recursos gráficos.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Daniel Lopes– Tenho como formação as artes visuais, e dentro da academia há um senso comum de que quadrinhos não é arte. Arte sempre foi essa coisa elitizada, e a instituição acaba por dizer o que é arte ou não. O fato de quadrinhos ser um produto da indústria cultural só agrava as coisas, há sempre esse estigma de ser múltiplo, barato, descartável, e do outro lado todo o fetiche se constrói sobre a aura da obra de arte. Mesmo que na arte contemporânea muitas dessas questões sejam colocadas em cheque, ainda há esse pensamento conservador e segregador em relação ao que está fora e dentro da galeria. Parafraseando uma frase genial do Liniers, "se você faz quadrões é um artista sério".  É muito mais uma ideia fixa do que preconceito, visto que muitos dos professores do departamento consomem quadrinhos regularmente. Lembro de um episódio em que um professor falava sobre Winsor McCay e o colocava como "diferente" dos outros quadrinistas, como um "artista". Realmente McCay foi um autor que praticamente esgotou em termos de recursos gráficos na sua época, mas essencialmente o que faz ainda é quadrinhos, então se ele é um "artista" por que não dizer que faz "arte?". Acho que há sim grande parte da indústria de quadrinhos que considero descartável, como a maioria dos quadrinhos de super heróis e mangás shonen de hoje. É muito delicado fazer esse julgamento pois há várias questões de subjetividade e empatia do leitor com os quadrinhos que lê, e acabamos por repetir o mesmo crivo opressor da instituição. Mas há uma galera mais crítica que realmente explora a linguagem dos quadrinhos, que talvez se aproxime mais dessa discussão autorreferente das artes, como o Chris Ware, com Building Stories e David Mazzucchelli, com Asterios Polyp, pra citar alguns. Talvez esse seja o grande atrativo do mercado alternativo e quadrinhos autorais. Acho que hoje em dia é onde se acha mais coisas diferentes. Tem muita coisa boa surgindo por aqui, muita gente se publicando pela Internet, explorando os recursos gráficos no virtual e no impresso. Acho os zines FABIO, do André Valente e do Gabriel Góes, geniais, foram a minha escola da autopublicação. É interessante ver essa cena do zine ganhar força ao mesmo tempo que se utiliza de alguns recursos que conferem um determinado valor artístico pra coisa, como as impressões em papel diferente ou a tiragem numerada. Acho que gosto de como há um mercado que se sustenta pelas bordas do sistema, parasitando e ao mesmo tempo questionando.


Marco fritando


Augusto Botelho

Augusto Botelho– Antes de começar a responder as perguntas eu gostaria de deixar claro que a minha experiência com os quadrinhos, enquanto meio e enquanto mercado é bem recente, de pouco mais de um ano, e acho que boa parte do que penso a respeito de ambos ainda se encontra em um estágio bem inicial de amadurecimento. Se conversarmos com autores já mais experientes talvez muito dessa minha visão já seja algo passada ou ainda ingênua. De qualquer forma, o processo é esse de ir construindo mesmo e acho que é só trocando ideias que vamos construir uma reflexão maior sobre esses temas, então vamos lá:

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante dessas dificuldades, por que tentar essa carreira? O que você acha que tem de acontecer pra avançarmos nesses méritos?

Bom, a vontade de trabalhar com quadrinhos vem principalmente de uma paixão pela mídia nutrida desde moleque. Os quadrinhos se encontram entre os principais produtos que consumo e definitivamente são o principal motivo de eu ter continuado desenhando.

Existem vários extratos diferentes dentro do mercado dos quadrinhos. Talvez pra gente entender melhor seja bom fazer algumas distinções e olhar pra cada um separadamente. Existe um mercado comercial, representado principalmente por grandes editoras, que têm os recursos necessários para distribuir revistas por todo o país, ter publicações com regularidade fixa e etc. Essas grandes editoras detêm um certo monopólio do que é publicado e a esmagadora maioria do que lançam nas bancas são os quadrinhos estadunidenses de super-herói, mangás dos mais comerciais e afins.

Botelho: estilo barroco
Dentro desse mercado comercial existe também um pequeno grupo de editoras menores que têm publicado quadrinhos europeus, asiáticos e outros com uma pegada mais autoral, mas geralmente de autores clássicos ou já consolidados. Acredito que principalmente pelo fato dessas editoras não terem condição de distribuir na mesma escala que as maiores, elas têm focado os lançamentos em edições mais caras em capa dura ou de luxo para livrarias, atingindo a um público mais específico que vai de quadrinistas a estudantes universitários e pessoas mais velhas com uma estabilidade financeira maior e que já consomem quadrinhos. Então, apesar de darem uma diversificada no mercado, acabam ficando meio restritas pelo fato de que seus produtos não são muito acessíveis.

Existem também algumas publicações que vêm de editais públicos, mas tenho a impressão que é ainda uma iniciativa bem tímida por parte do poder público e que a maior parte das publicações são adaptações de clássicos literários direcionadas para uso didático em escolas.

E, por fim, existe a cena independente nacional, onde os autores não só fazem suas histórias, como editam a publicam suas revistas, vendem, distribuem e tudo mais. Costumam circular em feiras, organizadas pelos próprios autores ou entusiastas, e têm um contato mais direto com o seu público. Além de criarem redes entre os autores, que realizam trocas e fazem os trabalhos de uns e outros circularem através do País. Essa cena está passando por um momento muito rico, com novos autores e autoras surgindo a toda hora, em um movimento crescente da cena como um todo.

Ufa! Enfim, acho que o caminho mesmo é o de aumentar em todos esses nichos o espaço pra diversidade. Diversidade de autores, propostas, formatos e etc. É difícil furar o bloqueio das editoras, que dificilmente vão publicar autores que já não estejam consolidados, então acho que o caminho é a gente fortalecer cada vez mais essas nossas redes, tentar chegar em públicos diferentes e não se acomodar em pequenas zonas de conforto que possamos ter conseguido, ou venhamos a conseguir. Acho que nesse sentido iniciativas como a zine XXX são extremamente necessárias, para diversificar tanto os autores e trabalhos que circulam nesse meio, quanto o público que o consome. Em poucos meses de existência já deu pra sentir o impacto que foi a zine XXX e como ela realmente responde a uma necessidade que estava ali e que os autores (grifo no O) não estavam dando muita bola.

Talvez valha algum tipo de iniciativa conjunta dos autores para cobrar maior espaço dentro de investimentos públicos e afins, mas não sei quais seriam as perspectivas reais disso.

O aguardado
RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por esse estilo?

Augusto Botelho– Acho que a minha experiência com quadrinhos ainda é bem pequena então não me sinto muito seguro pra afirmar que os quadrinhos que faço são de determinada forma ou definir um estilo porque não vejo isso como algo já definido neles. Estou ainda experimentando os tipos de desenho; composição; formas narrativas, descobrindo muitas coisas. Acredito que ainda tem muita água pra correr até eu realmente ter um estilo definido. De qualquer forma, desse um ano e pouco trabalhando com quadrinhos, algumas coisas já começaram a aparecer. No âmbito do desenho comecei trabalhando com um traço mais cheio de informação em desenhos com bastante tracejado e hachuras ou trabalhando com o pincel seco e lápis. Enfrentei algumas dificuldades quanto à clareza narrativa com tanta informação e passei por um processo de limpeza do traço. As últimas histórias foram feitas numa desenho mais linha clara, com algumas sombras em preto. No momento estou querendo juntar as duas coisas de alguma forma, voltar pro traço sujo, em especial o de pincel, mas tentar ser mais sintético e deixar áreas maiores de respiro.

Quanto à temática, até o momento meus quadrinhos têm ido por uma linha meio regional, meio fantástica, com alguma coisa de aventura. Inicialmente nos quadrinhos mais curtos fiz coisas relacionadas ao ambiente e à cidade onde vivo, e depois comecei trabalhando com adaptação de um conto do Cyl Gallindo, escritor pernambucano, o que me levou mais pra essa onda regionalista. Acho que estou variando entre essa pegada regional e uma outra de pequenas crônicas urbanas, relativas a essa experiencia da cidade. Coisas de paradas de ônibus, pichação, etc. Acho que o principal motivador dessas temáticas são as coisas que gosto e me influencio e as questões que acho importante trabalhar, eu tenho um envolvimento muito grande com o debate político (político num sentido amplo do termo, não apenas o universo de eleições, cargos políticos, etc) e acho que isso acaba aparecendo, de forma mais ou menos evidente, no meu trabalho.

Uma coisa que já percebi ser característica da minha forma de trabalhar é em geral fazer os desenhos, definir a composição da página antes de ter o texto. E várias ocasiões, em especial nas tiras do Batata frita murcha, eu começo desenhando e o quadrinho vai se definindo a partir do desenho. O que o traço me sugere eu vou dando a forma e de um quadro pro outro o mesmo processo. Mesmo quando tenho uma história mais linear eu costumo ter em mente mais ou menos o rumo de pra onde as coisas vão, definir os thumbnails, desenhar e no final colocar o texto. É legal porque às vezes os desenhos acabam mudando o rumo da história ou ela se constrói a partir deles.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Augusto Botelho– Bom, depois dos gibis da Turma da Mônica, as primeiras coisas que peguei para ler foram quadrinhos de super-herói, que consumi durante bom tempo, então eles estão em algum lugar nas minhas referências com certeza. Volta e meio ainda vejo o que sai nesse mercado, mas olhando mais algumas séries fechadas do que as revistas mensais. Acho que um pouco do meu gosto por histórias de aventura e afins, que acabei fazendo, vem em parte daí. Mas, acho que minhas principais referências em quadrinhos são de quadrinhos europeus de autores como Hugo Pratt, Milo Manara e Moebius.   Dentro do cenário do quadrinho americano trabalhos como Sandman, do Neil Gaiman, e O Retorno do Cavaleiro das Trevas, do Frank Miller, foram marcantes. Acho que a maneira como o fantástico é trabalhado em Sandman é algo que me atrai muito, bem como nas histórias do Corto Maltese, do Pratt (em especial nas últimas). Vejo bem claramente n"O Aguardado" (meu primeiro trabalho longo e o que estou finalizando agora) essa pegada de misturar algo do campo das lendas dentro das coisas cotidianas. Tem uma série de quadrinhos do Manara chamda As Aventuras de Giuseppe Bergman (alterego do autor), que são especialmente marcantes por uma pegada bem onírica, fantástica, às vezes até surrealista e ao mesmo tempo uma certa ironia, um sarcasmo com relação ao próprio autor e à cultura ocidental que é um exemplo que tenho sempre em mente de como tratar questões políticas e ao mesmo tempo conciliá-las com uma tendência que é um pouco natural minha ao delírio. Gosto bastante também do trabalho do Oesterheld e do Breccia, na Argentina, mas conheço pouco ainda dos quadrinhos de lá, gostaria de conhecê-los mais.

Estando há um ano e pouco trabalhando e me inserindo dentro desse meio do quadrinho independente estou em um momento de muitas descobertas dentro da produção nacional, principalmente a atual e isso tem sido uma grande influência com certeza. A possibilidade de conversar com os autores, trocar referências, enfim, esse contato direto é muito frutífero. Temos conhecido muita gente massa com trabalhos incríveis nas viagens pra feiras em outros estados e a experiência tá sendo muito boa, muita coisa sendo digerida ainda, mas já dá pra citar aqui os trabalhos do pessoal da SAMBA; Vudu Comix; do Sindicato; várias das autoras que conhecemos através da zine XXX, bem como os coletivos Loki. e Invisible (ex-Libre!). Um autor que volta e meia eu estou olhando é o D'Salete, tenho o quadrinho Encruzilhada dele sempre por perto. Acho que o que quero seguir em termos de desenho depois de terminar "O Aguardado"é bem por ali, o preto e o branco bem contrastados mas com uma sujeira do pincel seco rolando ali pelo meio. A temática das histórias, pequenas crônicas urbanas de pessoas comuns também fala muito pra mim. Acho que não é à toa que quando fiz a "Risco" (história publicada na zine de Julho, cujo personagem principal é um pichador) o traço foi um traço mais sujo, no pincel.

Dentro desse cena nacional sinto que ainda tenho muito o que conhecer e ando buscando, desde o trabalho dessa galera ao de autores já clássicos, como Laerte, Fabio Zimbres e outros. Conheci recentemente através de uma publicação da Ugra o trabalho do Henry Jaepelt, que me atraiu muito pelo desenho e pela pegada surrealista.

As influências se dão de diversas maneiras. Às vezes por querer fazer igual, às vezes tentando fazer igual e vendo que aquela não é a sua pegada também (como é um pouco a minha relação, por exemplo, com o trabalho do Moebius, que já tentei muito copiar até ver que não era por ali).

Fora os quadrinhos, me influenciam bastante filmes em geral e música, brasileira em especial, de hoje e de ontem. Como falei na pergunta anterior acho que um pouco da literatura regionalista e trabalhos de autores como Suassuna também estão em ligação direta com meu trabalho mais recente.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Augusto Botelho– Acho que os quadrinhos são um potente meio de expressão e isso é facilmente constatado simplesmente dando uma olhada no que já foi produzido dentro dessa mídia. No último século não faltam exemplos de quadrinhos que exploram as mais diversas questões, experimentando com formatos, temáticas, estilos, linguagem e afins. Como toda mídia, divide características com outras mídias, mas tem outras características bem próprias. Compara-se muito o quadrinho com o cinema, por exemplo, e as duas mídias realmente têm muito em comum (até por serem ambas fruto da sociedade industrial e por terem em comum o representar do tempo, movimento, etc). Mas mesmo essa representação do tempo e do movimento se dá em cada uma de forma muito diferente. No cinema as imagens se sobrepõem no tempo, causando no olho do espectador a ilusão do movimento, no quadrinho elas estão colocadas espacialmente em sequência. Essa diferença muda muito o modo de fruição da imagem, fazendo com que, no quadrinho, o tempo do leitor seja  infinitamente mais relevante que no tempo do filme. E por conter o elemento visual, esse tempo também não é o mesmo do texto pois o leitor pode se manter em um quadro por conta do elemento visual, e ir e vir pela obra. O Underground, (segundo volume do "Promessas de Amor a Desconhecidos", do Pedro Franz), por exemplo, vem dentro de um envelope e as folhas não estão grampeadas, permitindo que o leitor posse se movimentar pela obra através de múltiplos caminhos e tempos. O trabalho meio que assume de vez que o autor não vai ter o controle sobre o tempo e o processo de leitura do seu público e é um exemplo interessante de como explorar isso.


Botelho em pala à Moebius


O que eu vejo mesmo entre os quadrinhos e os trabalhos que circulam em galerias, museus e outros desses espaços institucionais do mercado de arte é mesmo uma diferença de nicho de mercado. São nichos de mercado diferentes, com funcionamentos específicos, pré-requisitos e exigências diferentes e que atendem também, em parte, públicos diferentes. Lógico que eles possuem intersecções e talvez a tendência é isso só aumentar, à medida que cada vez mais artistas têm se utilizado do múltiplo, do livro objeto ou do zine como forma de aumentar a circulação do seu trabalho para além dos espaços expositivos; e também quadrinistas têm levado seus trabalhos para outros espaços de circulação ou incorporado vários elementos desse campo neles.


Flores, véu e grinalda

$
0
0
por Pedro Brandt

Lembro quando, em 1997 ou 1998, conheci o Gabriel Góes na aula de desenho do saudoso professor Marel, no Espaço Cultural Renato Russo, mais conhecido na época apenas como “508 Sul”. Ele chegou com uma pasta cheia de desenhos e eu e os outros alunos ficamos embasbacados com o que vimos. Naquele momento, tive a certeza de que Gabriel seria um desenhista profissional – o que se confirmou alguns anos depois. Os desenhos dele, desde a adolescência, se distinguiam por uma identidade muito marcante, pela maneira como ele conseguia absorver influências diversas dos quadrinhos e da cultura pop e devolver tudo aquilo com uma cara inegavelmente própria, imediatamente reconhecível como sendo dele.

E acompanhando o trabalho do Gabriel ao longo do tempo, pude perceber como o desenho dele está em constante mutação, sempre apresentando algo de novo em seu traço, seja para ilustrar algo delicado ou tosco, grosseiro ou refinado – muitas vezes, tudo isso ao mesmo tempo.

No sábado, 24 de maio de 2014, os polos opostos de sua personalidade como desenhista poderão ser conhecidos no mesmo evento. Na ocasião, o artista brasiliense, 33 anos, lançará dois trabalhos, Vestido de noiva, sua segunda parceria com o roteirista e cartunista carioca Arnaldo Branco adaptando uma obra de Nelson Rodrigues, e Flores, o primeiro gibi individual de Góes depois de diversas colaborações em publicações coletivas (como Samba, Kowalski e outras).

                                          

Abaixo, seguem alguns comentários sobre as duas obras e, mais adiante, entrevista com os dois autores. Se você ler isto aqui a tempo, não deixe de prestigiar o evento no sábado, com a presença de Gabriel e do Arnaldo, que virá do Rio de Janeiro para o lançamento. 

LANÇAMENTOS -VESTIDO DE NOIVA E FLORES
Sábado, 24 de maio, às 16h, no Sindicato (705 Sul, bloco A, casa 35), Brasília-DF. Acesso livre. Informações: (61) 3202-5255.

Dos palcos para as páginas
Segundo texto de Rodrigues para o teatro, Vestido de noiva, na época, chegou a ser considerado impossível de ser levado para os palcos, dada a complexidade do texto, cuja trama se passa em três planos narrativos. Coube a um experiente encenador e ator polonês radicado no Brasil, Ziembinski, tal missão, cumprida com sucesso a partir de montagem de 1943, responsável tanto por alavancar a carreira do escritor como por contribuir decisivamente para a modernização do teatro brasileiro.

                                        

É de tirar o chapéu que Arnaldo Branco e Gabriel Góes tenham encarado fazer a adaptação para os quadrinhos de Vestido de noiva. Até porque, o resultado desta nova parceria entre os quadrinistas reforça o quão difícil é esse tipo de processo. Góes, aqui com um desenho em preto e branco que volta e meia acena para Charles Burns (mas, como dito no começo do texto, sempre sendo Góes), conta a história como se o leitor a estivesse assistindo no teatro, com muitos planos abertos, vendo todo o palco. Um palco simples, de poucos adereços cenográficos, tal qual numa peça.

Muitas das cenas foram construídas em cima de fotos ou poses encenadas por amigos e amigas, como numa fotonovela. O recurso funciona como uma faca de dois gumes: ganha-se na apresentação visual de corpos e rostos, mas perde-se em dinamismo e expressão. Vestido de noivaé uma peça que demanda muito dos atores. E a construção narrativa da HQ se apoia mais no texto do que nas atuações, o que acaba por atenuar um pouco a carga bad vibe do texto de Nelson Rodrigues – que, contudo, não perde o impacto e continua uma tijolada na cara, mostrando o ser humano como ele realmente é por debaixo das aparências. 

Em comparação, eu diria que a adaptação da dupla para Beijo no asfalto consegue manter com mais fidelidade o clima sufocante e hostil do universo rodriguiano. História à parte, Vestido de noivaé mais instigante ao olhar.

Pesadelo pós-adolescente
Quem acompanha a Raio Laser sabe que, volta e meia, estamos comentando por aqui publicações diversas da produção zineira pós-contemporâneo brasileira, cenário marcado, em sua grande maioria, por muita vontade, alguma experimentação, boas doses de porralouquice, nonsense e, infelizmente, nem sempre algo interessante a mostrar. Mas é necessário disposição para se deixar surpreender, pois no meio do lixo também nascem flores.

E por falar nelas... Flores, numa rápida folheada, parece mais um desses quadrinhos esquecíveis, com desenhos infantis, lido em questões de segundos. Se eu esbarrasse com ele inadvertidamente, não daria bola. Pior: o julgaria pela capa. Mas como já cantava Bo Diddley... 

Curioso que eu mencionei mais cedo que o desenho de Góes tem algo de inconfundível, mas talvez eu não reconhecesse sua autoria em Flores. Ponto pro artista que, mais uma vez, comprova sua versatilidade. Os desenhos aqui só parecem toscos, mas são frutos de uma desconstrução consciente, da busca por um minimalismo espontâneo que, quando utilizado de maneira inteligente (vide Arnaldo Branco) resultam em algo cuja beleza está ao mesmo tempo escondida e exposta.

                                 

Floresé uma leitura rápida, mas pode gerar demoradas reflexões. Ao longo de suas páginas, Gabriel Góes apresenta uma série de pensamentos que assombram muita gente. Em resumo, o gibi pode ser apresentado como um breve e descompromissado retrato sobre o doloroso processo de se tornar adulto. Temos aqui um protagonista engolido pela rotina do trabalho entediante, que encontra refúgio, entre arrependimentos e responsabilidades, em devaneios sobre sexo e outros prazeres (como ouvir aquele disco preferido) da juventude recém-perdida. Tudo isso colocado de maneira implícita e aberta a interpretações. Talvez nem tenha sido a intenção do autor. Prefiro acreditar que sim. Envelhecer, todos sabem – ou saberão –, é uma barra. E, como canta a banda Apanhador Só, talvez seja melhor despirocar.

ENTREVISTAS

















As adaptações em quadrinhos de clássicos da literatura se tornaram recentemente um filão – aparentemente lucrativo – no mercado editorial brasileiro. Como vocês avaliam a carreira de Beijo no asfalto? Têm ideia de quantos exemplares foram publicados e quantos foram vendidos? Vocês receberam algum feedback de leitores, professores ou mesmo dos herdeiros do autor?
Arnaldo: Fomos contratados para escrever apenas pelo adiantamento – uma praxe quando a família do autor está envolvida no processo, então não acompanhamos muito o desempenho nas lojas. Sei que os herdeiros gostaram e o governo comprou algo em torno de 25 mil exemplares para distribuir em bibliotecas pelo país, curti bastante ser um bestseller assim de tabela. Não fiquei muito a par das reações também, a crítica parece ter gostado o suficiente para não ficar reclamando desses quadrinistas se metendo na obra imortal do Nelson.
Gabriel: Foram 25 mil cópias do Beijo, fora a versão pocket que vendia nas bancas. É tipo um disco de ouro se comparado com as mil ou duas mil cópias dos títulos da SAMBA e outros independentes. Deve ter muito moleque por ai que chegou no teatro do Nelson pelos quadrinhos.

A escolha de adaptar Vestido de noiva para os quadrinhos é um tanto ousada, dada a complexidade do texto. A proposta veio da editora ou de vocês? Outro título do escritor está nos planos?
Arnaldo: Veio da editora. Se fosse por mim, talvez escolhesse alguma outra peça, talvez Anjo negro, Senhora dos afogados ou qualquer uma das "tragédias cariocas".

A narrativa de Vestido de noiva passeia pelo plano da alucinação, da realidade da memória. Imagino que deve ter sido bastante desafiante pensar em como narrar isso em quadrinhos. Como foi esse processo de preparação para adaptar a peça para HQs? Além do próprio texto, o que mais serviu como base? E o que vocês diriam que foi mais desafiador durante o processo? 
Arnaldo: Usamos um esquema de cores e estamos contando com a inteligência dos leitores, às vezes uma aposta arriscada, hehe. Eu tinha sugerido o uso do estilo do desenho de Roberto Rodrigues, irmão do Nelson – no livro contamos um pouco da história da família Rodrigues até a estreia de Vestido de noiva no Teatro Municipal – para marcar o plano da alucinação, mas o Gabriel preferiu usar só em um quadro. E gosto também da ideia de confundir o leitor um pouco, obrigá-lo a prestar atenção, voltar a página, desistir da leitura etc.
Gabriel: Nos quadrinhos passear por planos diferentes não é novidade, acontece bastante de usarem requadro de "nuvem", paletas diferentes para passado e presente, o clássico sépia para representar o passado. Pra mim, o tempo e quantidade de páginas são sempre um desafio. O mais legal foi adicionar o plano da realidade onde retratamos o próprio Nelson enquanto escrevia a peça.

                                          

Se não me engano, vocês dois moravam no Rio quando produziram Beijo no asfalto. No caso de Vestido de noiva, a distância foi mais um desafio na produção da HQ?
Arnaldo: Continuo morando no Rio, o Gabriel está em Brasília agora. Não, porque mandei todas as sugestões de referências junto com o roteiro – e as nossas reuniões na época do Beijo no asfalto eram mais desculpas para beber. Na verdade dessas eu sinto falta.
Gabriel: A distância não foi um problema. Minha dificuldade foi o prazo, eu não queria fazer chutado e estourei o prazo umas cinco vezes, o pessoal da editora deve me odiar.

Quanto tempo você levou para preparar o roteiro da adaptação?
Arnaldo: Quatro meses – mas podia ser bem menos, o processo foi interrompido por uma mudança interna na editora.

Quanto tempo levou para desenhar as quase 70 páginas da HQ?
Gabriel: Levou quase um ano entre produzir fotos, desenhar e tratar e ficar satisfeito com o resultado.

Gabriel, você tem a capacidade de mudar bastante seu estilo de desenho de um trabalho pro outro. Como foi a escolha do estilo que acabou sendo escolhido para Vestido de noiva? Fez muitos estudos até chegar nele? Quem diria que são suas principais influências para esta HQ?
Gabriel: Optei por fotografar modelos para capturar a linguagem corporal e biotipos diferentes, além de resultar numa atuação mais sutil e feminina. Me influenciei em elementos visuais de Gritos e sussurros, do Bergman, e da montagem original do Vestido de noiva, do Ziembinski.

                                         

Você já tinha ilustrado alguma HQ usando pessoas como modelo? O que você achou desse processo? 
Gabriel: Eu uso bastante foto nas minhas ilustrações, tenho muita dificuldade em desenhar carros, por exemplo. Algumas pessoas têm o dom de desenhar de memória um carro em qualquer ângulo concebível, eu não, eu uso fotos e acho que o importante é que a ilusão de que aquela mancha no papel signifique um carro, o mais importante é a pessoa conseguir ler aquele determinado símbolo.

Arnaldo, você já gostava da obra do Nelson Rodrigues antes de trabalhar nas adaptações de Beijo e Vestido? O que mais te chama a atenção no texto dele? E, em especial, no texto de Vestido de noiva? Dentro dessas características, o que acha mais difícil no processo de adaptação do texto original para as HQs?
Arnaldo: Muito – li todas as peças, romances e tudo o que recuperaram do trabalho dele para a imprensa. Gosto de tudo, das imagens, da adjetivação, do humanismo do cara. Vestido de noiva foi uma leitura estranha para mim porque foi precedida pela fama do texto – era a peça que fez a carreira dele – e achei muito hermética pra justificar tanto sucesso (não estou reclamando, muito obrigado turma de 1943). O mais difícil é cortar qualquer frase, até as vírgulas são geniais.

Gabriel, como você costuma apresentar Flores? 
Gabriel:Floresé o meu primeiro livro individual, é sobre um homem que tem um passado, uma obsessão, um emprego e que se encontra diante de uma decisão. Floresé sobre estarmos todos juntos como uma máquina, sobre o caos e os medos mais antigos do homem, é sobre a redenção. Foi originalmente publicado em capítulos semanais no revistasamba.com e veio da experiência do fluxo criativo do projeto FABIO (http://fabiozines.blogspot.com.br) e da necessidade de ter que produzir um capítulo novo toda quarta-feira no blog da SAMBA.

Vocês gostam de trabalhar em parceria? Com quem mais das HQs brasileiras gostariam de trabalhar? Por que?
Arnaldo: Gosto de trabalhar em parceria, ainda mais com o Gabriel que acho um dos melhores desenhistas brasileiros. O que não gosto muito é de lançamento de livro. Sou péssimo fisionomista e dou vários vexames. Se pudesse escolher, acho que adaptaria um livro mais obscuro, como Os ratos, de Dyonélio Machado.
Gabriel: Gosto de trabalhar com o Valente, vamos terminar as 100 edições do FABIO, também com o Arnaldo, quem sabe fazemos mais um do Nelson, Anjo negro seria massa.

O que você acha mais legal nessa movimentação dos novos quadrinhos brasileiros? Dessa galera, quem são seus autores favoritos (e por que?). E o que, na sua visão, ainda falta acontecer? Arnaldo, acha que faltam bons roteiristas?
Arnaldo: Acompanho e acho que estamos em uma fase sensacional. Diego Gerlach, Alexandra, Elcerdo, Bruno Maron, Ricardo Coimbra, Chiquinha, Stêvz, Danilo Beyruth, praticamente todos os Rafaéis (como tem Rafael fazendo quadrinho). Gosto por vários motivos, até porque todos têm estilos bem diferentes. E não acho não – tem até gente mandando mal, mas ninguém que esteja no currículo escolar obrigatório ou algo assim, é só não ler. 
Gabriel: Eu gosto da liberdade desse momento, acho que devemos aproveitar para produzirmos nosso quadrinhos mais inspirados, devemos aproveitar a visibilidade que é oferecida pelas diferentes mídias e também o crescente interesse do público por autores novos. Stêvz, André Valente, Gerlach, Eduardo Belga, Rafael Coutinho, Rafael Cica, DW, LTG, Mateus Acioli, Bruno Maron, Berguer, Pedro D'Apremont, Heron Prado, são caras que desafiam as convenções e impulsionam os quadrinhos a novos rumos, entre outros que com certeza eu deveria ter citado. O que falta para o novo quadrinho é um mercado mais sólido e lucrativo, com mais oportunidade para os envolvidos, o quadrinista deveria poder viver de quadrinhos no Brasil.

Arnaldo, como é trabalhar com o Góes? Gabriel, como é trabalhar com o Arnaldo? O que vocês gostam um no trabalho do outro?
Arnaldo:É tranquilo, é como passar a bola para um jogador fora de série. O que mais gosto é o fato dele não economizar nanquim.
Gabriel: Eu gosto de como o Arnaldo responde entrevistas, gosto de como escreve e até mesmo de como ele desenha.

HQ em um quadro: join the dark side, por Blain e Lanzac

$
0
0


Arthur Vlaminck sonha com seu ministro vestido de Darth Vader (Christophe Blain, Abel Lanzac, 2010): sejamos francos: que interesse poderia haver em um quadrinho hiperrealista sobre a diplomacia francesa? Um quadrinho obcecado com a minúcia e a técnica do ofício, com pouco cartum, pouca narratividade, poucos pontos de virada, excessivamente repetitivo, com personagens que parecem perfeitos exemplos monótonos do que acontece em certos setores do funcionalismo público. Ora, convenhamos que está aí um pouco da graça. Quai d'Orsay (como é conhecido o Ministério das Relações Exteriores francês) teve seu roteiro concebido justamente por um diplomata que lá trabalhou no início dos anos 2000, e foi pensado em cima de vivências reais. E o fato de ser um tipo de história para insiders do mundo da diplomacia o torna um tanto enigmático e desafiador, especialmente considerando-se que a cada página conhece-se mais sobre um universo novo para a maioria das pessoas. O tom blasé (uma certa mistura do humor europeu com Dilbert) do quadrinho produz um tipo de anestesia que contamina como que por uma osmose de escritório: como o funcionário que trabalha ali dia-a-dia, vamos acompanhando reuniões enfastiantes, discursos que são refeitos mil vezes, ações megalomaníacas dos quadros superiores, etc. Acabamos nos juntando a este humor discreto erigido sobre o banal ao nos tornarmos, também, funcionários do Quai d'Orsay.

A HQ trata da trajetória de dois personagens principais: a do jovem diplomata Arthur Vlaminck, que é encarregado de escrever os discursos do Ministro das Relações Exteriores Alexandre Taillard de Vormes (baseado no ex-Ministro francês Dominique de Villepin), e a do próprio Ministro. O primeiro, em princípio acanhado, vai ganhando dimensão na medida em que começa a compreender as contradições e dificuldades hercúleas de seu ofício, sendo "seduzido" cada vez mais pelo "lado negro" da força representado pelo aspecto workaholic, midiático, idealista de fachada e contraditório do Ministro. Um interessante jogo de bastidores políticos e diplomáticos se instaura enquanto vamos acompanhando e conhecendo a maneira com que se decide uma intervenção em algum país africano, ou um discurso na ONU, por exemplo. No final das contas, o que parecia uma monótona narrativa copiosa sobre o cotidiano burocrático da diplomacia ganha ares shakespearianos quando grandes decisões precisam ser tomadas, cada palavra falada precisa ser medida e a vida de pessoas entra em jogo. Obviamente, por efeito cômico, o caso edipiano de Star Wars, em toda sua opulência dentro do pop, serviu mais aos autores do que Shakespeare, e vemos, no final do Volume 1, Vlaminck sonhando com Taillard vestido de Darth Vader (sem perder os trejeitos efusivos), procurando convencê-lo a abandonar sua vida pessoal e a se dedicar integralmente à "causa" da diplomacia. Bastante premiado (inclusive em Angoulême), Quai d'Orsay ganhou uma versão cinematográfica de sucesso em 2013, e é uma das melhores BDs francesas da atualidade. Fiquem de olho aí, editoras. (CIM).   


Apenas um gibi de super-herói

$
0
0


por Ciro I. Marcondes


1 – O paradoxo “super”

Ziraldo foi um dos que percebeu o "kitsch" em todo super-herói
Para um fã de quadrinhos que vá além de ser simplesmente um “fã de super-heróis”, o gênero mais popular deste meio vai sempre lhe parecer, de certa forma, como um tipo de paradoxo. Afinal, os super-heróis serão sempre aquele tipo de quadrinho que ainda persiste na ordem do afetivo, que carece de qualquer racionalidade, mas ainda injeta vitalidade pela energia dos personagens, pelo carisma de seus conceitos ou por pura e simples tradição. Também costumo pensar que continuamos lendo super-heróis (quando isso eventualmente acontece) porque somos quase obrigados a isso pelo bombardeio midiático que doutrina o gosto de hoje em dia a amar essa “mitologia” do impossível, essa exaltação do kitsch, do sem-noção, do ridículo. Afinal, alguns podem até pensar que a figura do nerd tenha alguma coisa de “cool” nesses anos 2000/2010, mas eu prefiro ajuntá-lo nos balaio kitsch dos cultuadores de desenhos animados dos anos 80, dos colecionadores de vinil que não passaram nem pelo CD, ou daqueles que passam 15 horas por dia jogando qualquer videogame banal achando que estão vivenciando alguma grande forma de arte. Enfim, me parece que, se a figura do super-herói de algum jeito virou uma coisa descolada, não é porque ele ficou cool, mas sim porque o mundo ficou kitsch, sem noção e um pouco preso em seus eternos 16 anos de idade (devo essa ao Pedro Brandt).


Moebius
Já discuti a falência do modelo dos supers antes em Raio Laser (aqui e aqui). Então, por que continuar com este assunto? Antes de querer parecer ainda mais blasé e despertar a ira de mais fanboys, melhor dizer na lata: eu ainda leio quadrinhos de super-heróis (de vez em quando). Não apenas porque ache que ainda haja bons profissionais na área (tanto em roteiro quanto em ilustração) como gosto, evidentemente, de reler os clássicos, e entender a relação que faz um assunto abstruso (para mim) gerar obras incríveis como o Demolidor de Miller, Juiz Dredd de Brian Bolland, Thor de Walt Simonson, Conan de Roy Thomas, Rocketeer, Hellboy, etc, etc. Existe, na verdade, um universo de coisas legais feitas dentro deste formato no passado, coisas que mudaram a indústria e a arte dos quadrinhos. Como eu disse, um paradoxo: por mais que você rejeite e considere estes quadrinhos descartáveis e rasteiros, eles continuam voltando, por estes motivos e outros. O adolescente em você persiste, nunca morre. Mais que nostalgia, é um eterno retorno de si mesmo, de um estado de alma essencial ao nosso apego pela vida, algo sem o qual não conseguimos seguir em frente.

Batman: noir + expressionismo
O objetivo deste texto, aliás, caso não tenha percebido, é fazer um elogio a estes quadrinhos. E não estou falando de Watchmen ou Cavaleiro das trevas ou Miraclemen ou Homem Animalou Os invisíveis. Estou falando do quadrinho ordinário de banca, da aventura prosaica, do divertimento semanal sem compromisso com agendas ideológicas (como o caso do quadrinho de banca contemporâneo) ou com a HQ state of art. Vejam, por exemplo, o caso das famosas space-operas francesas (nos moldes de Valerian, O andarilho dos limbos, Lone Sloan, etc), tão famosas por sua “maturidade”, por serem mais “realistas”, embarcarem no mundo “psicodélico” da sci-fi. Lendo estas obras, que são, realmente, incontornáveis, vemos que seus conceitos se aproximam mais do mundo dos super-heróis do que efetivamente de algum tipo hard de ficção científica. São geralmente aventuras engenhosas que se aproveitam de uma ciência que se aproxima da mágica (quando não é mágica de fato) para desfilar perfis de criaturas exóticas, lugares hiperimaginativos e sugestões de sexo (quando não apenas sugestões) e violência. Ora, isso não difere muito de uma boa HQ de super-heróis. Na verdade, em algum momento esquecemos no quão (pseudo) científicoo conceito dos supers sempre foi, no sentido de se aproximar da ficção pulp barata do romance de banca do começo do século (dime novels). O Super-Homem nasceu assim, como uma espécie de ficção-científica pulp com uma órbita meio torta, e dele descende toda geração de ouro da DC (nunca esqueçamos que o Batman, por sua vez, nasceu do noir e do expressionismo, o que talvez justifique sua maior complexidade).

Futuropolis está na origem da coisa toda
O que quero dizer é: talvez exista uma permuta maior do que se pensa entre o quadrinho de sci-fi europeu e o comic book de super-herói americano, não apenas por possuírem esta origem comum (o pulp), mas também porque ambos se ancoram, mais do que num mundo eticamente complexo e cientificamente acurado, no campo da fantasia livre, no apelo eterno ao devaneio juvenil, na nossa insistente incapacidade de largar o sonho como uma possibilidade para a vida. Daí partirmos de coisas grosseiras como o americano Buck Rogers e o francês Futuropolis, na aurora dos quadrinhos, e chegarmos a extremos de sofisticação em Richard Corben e Moebius. Se o quadrinho de super-herói hoje parece uma refração pálida e impotente em relação ao dínamo de vitalidade juvenil que já foi, talvez não seja o caso de culpar certa limitação do gênero mais do que culpar uma indústria estéril e prostituída que continua oferecendo produtos porcos de baixíssima inventividade a uma legião de fãs-zumbis renovados agora pelo gargantuesco sucesso dos filmes de super-heróis, que, convenhamos, caiu do céu para estas editoras à beira da falência. Se a fantasia heroica hoje mostra sinais claros de esgotamento (por “hoje”, talvez devamos entender desde os anos 80), presa a moldes e clichês (e implodida por sua própria inviabilidade), é o mesmo sentido de liberdade de fantasiar que criou estes clichês que permitiu que Moebius atrelasse esta liberdade à forma, e desenvolvesse seu método de criação livre a partir dos anos 70, mudando os processos que conhecíamos nos quadrinhos.

Sci-fi francesa
Super-herói americano




















2 – X-babies e o psicodelismo irracional do quadrinho de super-heróis

Curiosamente, toda este reflexão me veio a partir da leitura de um quadrinho absolutamente banal, cria dos anos 80/90 (na realidade ele é de 89, mas foi publicado no Brasil nos anos 90), que poderia ser facilmente tratado como totalmente descartável e até meio retardado. Trata-se da “edição especial inédita Excalibur e X-Babies” lançada pela Abril que “encantou” tanta gente numa época em que os quadrinhos de super-heróis ainda eram um tanto mais inocentes. Veja você: os X-Babies são uma criação de Mojo, um ser francamente copiado de Jabba The Hutt, que vive em uma dimensão paralela e comanda uma espécie de programa de televisão cujos astros são justamente as cópias mirins dos X-Men. Estas pequenas e adoráveis fofurinhas, que imitam de maneira infantil as características dos X-Men originais (na época daquela equipe com Cristal, Longshot, Destrutor, etc.) passam então a fugir do regime de semiescravidão a que Mojo lhes submete e procuram, em nossa dimensão, a ajuda de Kitty Pride, então no grupo britânico de mutantes Excalibur. Parece uma história imbecil ou no mínimo um tanto amalucada, fora da casinha? Pois eu me perguntava o que me atraiu nesta história nos anos 90 e creio que foi justamente o fato de ela, digamos, “vibrar” numa sintonia mágica um tanto deslocada da preocupação geral dos super-heróis em serem vergonhosamente fantasiosos, mas com uma pretensão realista (daí a esteira infinita de technobabbles destas histórias).

O que atraiu a juventude dos anos 90 a este gibi, expandindo o argumento, tem origem tripla: em primeiro lugar, o próprio apelo “fofo” dos “babies”. Impossível olhar para aquela capa em ação diagonal (posição tão clássica) e não ter curiosidade sobre quem eram e como surgiram aquelas versões mirins, e mais: como elas podiam pertencer a um arco “sério” dos X-Men? Em segundo lugar, o roteiro de Chris Claremont, que, justamente, com todo bom humor e engenhosidade, responde às perguntas do item anterior. O grande inovador dos X-Men obviamente não vem, em história tão despretensiosa, querer reiventar a roda, mas brinca de maneira metalinguística com o processo de criação da Marvel e dos X-Men, criando uma espécie de “centro interdimensional” cheio de portais por onde os X-Babies passam. Cada “portal” leva a uma saga clássica da Marvel (como Guerras secretas ou Ataques Atlantes). Quando os Babies passam por um destes portais, são transformados em suas versões correspondentes a cada saga, ligando o leitor afetivamente não apenas ao universo da Marvel, mas a um continuum inesgotável de histórias dos X-Men, sugerindo já a ideia de que todos os quadrinhos de super-heróis são, na verdade, uma só mitologia.  


Claremont se aproveita do ambiente londrino da história para brincar também com a cena roqueira da cidade, com casamentos reais e outras piadas bem sacadas, dando a ela um tom de aventura tresloucada recheada de citações não tão manjadas. No final das contas, você se sente carregado pela leveza infantojuvenil desta one shot não porque você seja bobo ou porque a história seja particularmente cativante, mas sim pela série de estímulos que todo gibi honesto naturalmente traz: movimento, leveza, humor, cores, desenvoltura, etc. Ou seja: basicamente, o que encantou os primeiros fãs de quadrinhos nas páginas coloridas das sunday strips e também o que encantou os primeiros fãs do comic book quando ele apareceu nos anos 30. Ainda é, acima de todo e qualquer gênero, a cor vibrante, a emulação do movimento, diálogos espirituosos e um mergulho no surreal que nos encantam nos quadrinhos. Sem este estímulo semiótico básico os quadrinhos não existiriam como uma arte que possui suas propriedades específicas. 

Por isso é uma pena que os quadrinhos de super-heróis, cada vez mais sombrios, realistas e obscuros, estejam perdendo esta miríade de estímulos porque, como o gênero não se sustenta por si só, vai acabar se transmutando para um animal diferente e esquizofrênico, se é que já não o é. Pensemos, portanto, no terceiro, último e mais importante fator de apelo de Excalibur e X-Babies: a arte de Arthur Adams. Rica em detalhes mínimos, rostos com expressão forte, lindo modelamento dos personagens, cheia de movimento e angulações – tudo sem parecer a pasteurização grosseira que temos hoje –, esta arte é a síntese do que representou o quadrinho de super-herói desde a “revolução Marvel”. Ou seja, por ao menos quatro décadas. O que nos leva a pensar em como o apelo icônico (ou seja: da plasticidade da imagem) do quadrinho de super-heróis muitas vezes supera a narrativa em si, carregando-nos pelas páginas como num fluxo verdadeiramente psicodélico que, efetivamente, não fica tão longe daquele dos quadrinhos sci-fi europeus.

Percebi isso tudo justamente quando pude ver mais de trezentos originais em uma exposição “A arte dos super-heróis Marvel”, que contava com pranchas de nomes como Kirby, Ditko, Buscema, Romita (pai e filho), Byrne, Adams, entre dezenas de outros. Olhar para aquelas páginas fora de contexto, a maioria sem cores, com pequenas imperfeições, correções, lápis à mostra, títulos recortados e pregados com cola... tudo aquilo ativou um certo senso plástico inativo sobre os super-heróis. Mesmo atrelados a uma indústria desgastante e injusta (Kirby que o diga), trabalhando como operários em busca de um ganha-pão, estes artistas intuíam um senso plástico que não difere, em essência, do de um Michelângelo. O que estes mestres fizeram foram esculturas em quadrinhos, quando o que se ordenou a eles foi que fizessem sabonetes. Quero dizer que, além de resgatar o sonho de voar, há no quadrinho de super-herói uma atração por formas, cores e volumes em movimento que não se distanciaria de uma arte abstrata ideal em duas dimensões prevista pelo filósofo Berkeley – um mundo exclusivo de cores e formas, que existe a não ser para ser isso, de maneira pura. Para além de qualquer sociologia, estes quadrinhos, enfim, se encontram com elementos primevos de qualquer arte: atraem pelo irracional. E foi este impulso (repito: mais do que um sentido nostálgico) que me fez olhar para esta edição de Excalibur e X-Babies e retirá-la da estante puída do sebo sujo na qual ela repousava, pagar cinco reais por ela, lê-la meses depois e mergulhar num turbilhão de reflexões. A mesma irracionalidade que me faz ser ao mesmo tempo um fã idiota e um hater dos super-heróis. 

A psicodelia inerente a todo quadrinho



Duas observações sobre movimento e narratividade em quadrinhos

$
0
0

 por Ciro I. Marcondes

1 – Robin Hood e a “página do movimento perpétuo”

Dê uma boa olhada na página abaixo:


Esta solução simples e elegante (é bom quando as duas coisas vêm juntas) para uma narrativa em quadrinhos foi retirada da adaptação de Robin Hood realizada em 2004 pela dupla Marc Lizano (desenho) e Denis Leroux (roteiro), chamada Robin de Sherwood. Esta HQ em si, ligeira, encantadora, com algumas soluções interessantes e arte charmosa, pode ser despretensiosa e até um tanto esquecível, mas esta página especificamente acabou retida na memória. Por quê?


Vejamos: você já deve ter notado que esta página divide um só espaço (a floresta, o rio, a cachoeira, o tronco caído), a partir de somente uma angulação, em vários quadros. Não há, como podemos ver, nesta página, uma decupagem(que mostraria um mesmo espaço em vários ângulos diferentes, aquilo que em cinema chamamos uma montagem analítica). Ou, se há o corte do espaço, ele divide em várias imagens uma única e mesma imagem, como em um quebra-cabeças. A diferença é que, em um quebra-cabeças, não há movimento porque não há uma sequência ordenada de visualização das imagens. Um quebra-cabeças pode dividir sua imagem em pequenos pedaços ou peças, mas não a divide em quadrinhos. Se há uma imagem em uma paisagem de quebra-cabeças, este movimento interior (na terminologia de Bergson) pertence à imagem antes de sua divisão em peças. O que podemos afirmar, absolutamente, é que não há movimento exterior (ou seja: um movimento sequencial, euclidiano), numa paisagem de quebra-cabeças. Trata-se, apesar de sua divisão em peças, de uma imagem só, uma pose, um instante apenas (ainda que o movimento interior possa indicar mais de um instante, conforme tentou demonstrar a pintura moderna).

Como podemos ver, há movimento (não apenas interior, como o da cachoeira) nesta página. Robin Hood começa sua ação no primeiro quadro superior à esquerda e aparece nos três quadros seguintes, que, em ordem serpenteada, fogem, digamos, à “dicção” comum dos quadrinhos ocidentais, com ordem de leitura esquerda-direita, cima-baixo. O cenário permanece o mesmo em um grande quadro segmentado em quadrinhos, mas o movimento do personagem principal se incide fantasmagoricamente sobre ele: não há mudança de espaço nos quadros, mas há o movimento de seu protagonista por esta floresta “congelada” (vamos lembrar que, em quadrinhos convencionais, quando se muda um quadro, muda-se também o cenário conforme o movimento). Bergson nos alertava sobre não confundir “movimento” com “espaço percorrido”, o que parece uma dica interessante para quem estuda a narratividade em quadrinhos. Já Deleuze atualiza Bergson ao dizer que “o movimento será a passagem reguladora de uma forma a outra, uma ordem de poses ou instantes privilegiados”.

Bem, o que se depreende disso? Primeiro, que o que vemos nesta página é exatamente uma visualização do espaço percorrido, acima de qualquer outra coisa. Logo, para Bergson, não se trata de movimento. Para o pensador francês, o movimento é uma categoria mais fantasmagórica e sutil: “sempre se faz no intervalo entre dois instantes ou duas posições, às nossas costas”. Isso fica claro em algo como o cinema: percebemos o movimento das imagens, mas não o vemos. Quando procuramos o movimento, ele já passou. Um instante já se tornou outro. Por isso cabe resguardar, para o que percebemos do movimento (e para o movimento do cinema especificamente). a ideia de que estes instantes percebidos são privilegiados, ou seja: a percepção do movimento é uma seleção, um slide-showcriado pelo nosso próprio filtro perceptivo, e o cinema seria uma epítome deste processo, pois o denunciaria pela sua artificialidade. Já para Deleuze era muito importante frisar que esta passagem de uma forma a outra é reguladora, ou seja, que provoca um mudança de estado na coisa que é movimentada, algo que ajudaria na produção de significação do cinema.

Uma página de quadrinhos como esta, como podemos ver, funcionaria como um mapa deste tipo de percepção selecionada da realidade muito mais esquemática e resumida. Digamos, um filme com pouquíssimos fotogramas (como sugere Scott McLoud). Até aí nada de novo. Porém, a manutenção do cenário, transformado em suporte para um movimento “fantasmagórico” do personagem implica na criação de um impasse ou até um pequeno paradoxo em relação a se isto constitui, efetivamente, algum tipo de movimento ou não. Afinal, ao contrário do cinema, aonde o movimento é percebido como completo, em uma página como esta a ênfase no tal instante privilegiado é definitiva, não apenas porque literalmente recorta este instante do espaço exterior, como também porque mantém este mesmo espaço lá, sugerindo uma continuidade e ao mesmo tempo uma disjunção. Pequenos filmes em loop, GIFs animados, praxinetoscópios e outras formas de movimento paranoico, repetitivo e que se reporta diretamente à posição estática funcionam mais ou menos sob a mesma lógica: recortam o instante privilegiado, o eternizam com o movimento, mas ao mesmo tempo não provocam a tal mudança de estado sugerida por Deleuze, algo que, nos quadrinhos, vai ocorrer muito mais com a conquista do espaço (logo, pela mudança de cenário) e pela emulação do tempo do que em uma forma como esta.

Esta estranha forma em quadrinhos, em quase tudo paradoxal e alienígena, não é nova e nem tão rara. Vejamos este exemplo clássico, da inesquecível tira Gasoline Alley, obra-prima de Frank King, ainda nos anos 1930:


Aqui, a partir de cada um destes instantes privilegiadosselecionados para promover o percurso do personagem pela praia, podemos entender não apenas como não vemos o movimento, mas sim percebemos sua sombra quântica. Ou seja: em uma página de quadrinhos neste molde, o movimento pode até não existir como uma trajetória única, mas é possível anunciar todas as linhas de movimento possível que unificam este deslocamento no espaço de uma pose a outra. Bergson afirma que o movimento “está sempre às nossas costas”. Em uma página como esta, viramos o espelho para ver o que está às nossas costas. Não vemos o resultado do movimento como no cinema, mas vemos tudo o que foi preciso e possível para que ele ocorresse. Está aí a graça de algo simplese ao mesmo tempo elegante de uma rara especificidade dos quadrinhos.

2 – Cascão e a “página do demiurgo sádico”

Este primeiro modelo de representação em quadrinhos que vimos está associado ao movimento, ao tempo e à conquista (ou manutenção) do espaço em quadrinhos. Podemos pensar que os quadrinhos operam, na maioria das vezes, segundo algumas plataformas estruturais narrativas que orientam a representação e a produção de sentido. Da mesma forma que, por exemplo, o verso alexandrino, o soneto ou o conto são formas que plasmam a produção de sentido em literatura, o mapa de requadros dentro da página (empaginação ou mise-en-page, na terminologia de Thierry Groensteen) serviria de certa forma como camisa-de-força para impulsionar a representação em quadrinhos. Groensteen compreende que os elementos formais dentro de cada requadro, assim como o requadro individual e a história completa constituem padrões formais (encaixados um dentro do outro) que, juntos, sistematizam, em uma profunda relação de mise-en-abîme, a produção de sentido em quadrinhos. Mesmo assim, de maneira um tanto arbitrária, ele elege a página como componente essencial e até o item primário na composição da especificidade dos quadrinhos (um debate já um tanto velho e sem foco, este da especificidade). Enfim, se a empaginação funciona mesmo como item qualitativo que produz a especificidade dos quadrinhos, isto não me interessa aqui. O que me interessa é a sua capacidade de criar modelos formais capazes de determinar uma dicção, um estilo, um vocabulário, um sotaque em quadrinhos.

A página de movimento perpétuo de Robin Hood foi um modelo. Vejamos outro:


Esta singela “historinha de uma página” foi produzida pela equipe de Mauricio de Sousa (eu a li justamente no Almanaque de historinhas de uma página Turma da Mônica publicado em 2014, mas não havia na edição referência nem quanto à data de publicação original e nem aos verdadeiros autores) e me desencadeou algumas reflexões. Em primeiro lugar, pensei sobre as instâncias de narração em quadrinhos. Cascão sai à rua, percebe que vai chover e volta para casa. Quando ele olha pela janela, faz Sol novamente, e ele decide sair. Porém, um trovão o avisa novamente que vai chover. Parece que a natureza está “brincando” com ele. Quando está escondido atrás de casa, ele ouve uma risadinha e, saltando para fora da página, percebe o que está acontecendo (o que é revelado no último quadro): Mauricio de Sousa, claramente representado no papel da própria “natureza” ou de um tipo de demiurgo para o personagem de ficção, está se divertindo ao provocar sua própria criatura.

A história é engenhosa porque justamente lembra a possibilidade de os quadrinhos serem essencialmente um tipo de arte que existe apenas na instância da mise-en-abîme (ou seja, que suas instâncias de representação estão sempre encaixadas uma dentro da outra). É aquela coisa: Cascão está dentro do cenário, o cenário está dentro do requadro, o requadro está dentro da página, a página está dentro da imaginação de Maurício, e, por fim, Maurício retorna, dentro do último requadro, dentro do cenário, etc. Há algo de fractal dentro deste quadro. E isso nos permite pensar, por exemplo, a diferença entre a narratividade em quadrinhos e no cinema, já que se insiste tanto em aproximar estes dois meios de expressão pelo fato de ambos se constituírem como processos sequenciais.

André Gaudreault nos informa, a partir de Christian Metz, as matérias de expressão (ou seja, as instâncias de onde surgem os processos narrativos) do cinema. Elas vêm de sua dupla narratividade (uma visual e outra auditiva): as imagens, as partes escritas, a trilha sonora, os diálogos e os barulhos de um filme. Estas cinco “matérias”, coligadas e coordenadas, seriam responsáveis por produzir a significação de um filme. Gaudreault também anuncia que todo filme seria ao mesmo tempo mostração (o processar da imagem em movimento que se dá a partir da ligação de um fotograma no outro – o teatro, neste sentido, seria uma mostração no mundo real) e narração(o processo de construção de sentido que se dá a partir da junção dos planos – intervalos entre cortes – que são construídos a partir das imagens da mostração). Mostração e narração, isolados, não são suficientes para explicar o processo complexo que é narração de um filme, e, para isto, Gaudreault criou a forma conceitual do meganarrador, que seria uma última instância capaz de cumprir com todos os efeitos produzidos pelas matérias de expressão fílmicas, somados às instâncias da narração e da mostração. O meganarrador dá conta de tudo que um filme é capaz de produzir em suas muito diferentes matérias de expressão. Vale lembrar que o narrador na literatura é mais simples do que no cinema, porque ele opera dentro apenas de uma única matéria de expressão (a língua) e pode ser identificado como a instância que conta a história.

Gotlib
Bem, mas como isso ocorre nos quadrinhos? Mauricio é realmente o narrador de Cascão na historinha que vimos? Mas, se ele é o narrador, quem narra o Maurício que aparece no último quadro? Este é um processo que Gaudreault chama de subnarração: quando um personagem aparece, dentro de uma narração (literária, fílmica ou em quadrinhos), narrando uma segunda coisa, ou o narrador principal é substituído por este narrador segundo (como na Literatura), ou o meganarrador se dispõe a narrar este narrador narrando. Quando Cascão diz “Humf” no último requadro, este “Humf” é uma narração feita por ele, que está dentro da página narrada pelo Mauricio desenhado e representado neste mesmo requadro, que está, por sua vez, representado dentro da página, que é narrada por um meganarrador em quadrinhos. O fato de a página (ou até a tira) estar sempre evidente em uma narrativa em quadrinhos transmite, de maneira muito intensa, a impressão de narratividade em abismo. De fato, quando lemos quadrinhos, temos esta impressão de que os personagens estão “presos” dentro dos requadros, algo que é frequentemente ironizado em tiras e histórias que flertam com a metalinguagem, caso da própria Turma da Mônica ou Krazy Kat. Ou como neste quadrinho de Gotlib onde o meganarrador mostra um personagem contando uma piada e a própria representação da piada é mostrada no fundo do plano, com o fator adicional de que, quando o narrador da piada ri da piada, isso interfere na própria representação, e os protagonistas da piada caem da escada com o barulho da risada. Ou seja: na intenção de fazer uma gag metalinguística, Gotlib ri da piada que inventou, fazendo o cara que conta a piada rir também, fazendo os personagens da piada ouvirem os ecos desta cadeia narrativa de piadas e se desconcertarem. De certa forma isso me lembra aquele estranho filme Entrevista, de Fellini: um filme de Fellini que entrevista Fellini falando sobre Fellini tentando fazer um filme sobre o jovem Fellini tentando fazer um filme.

Os quadrinhos não possuem imagem em movimento e nem uma banda sonora. Então, matérias de expressão como trilha sonora e ruídos não pertencem ao seu modo de representação. No entanto, os quadrinhos não possuem uma matéria de expressão unívoca como a Literatura. Eles são um meio literovisual. Portanto, os letreiros escritos e os diálogos fazem parte das matérias de expressão dos quadrinhos. Assim como as imagens nos requadros e, como vimos, a empaginação. A ideia de que, nos quadrinhos, a subnarração precisa ser coordenada por uma instância superior, capaz de dar conta de todas as matérias de expressão, nos permite inferir que, também neste meio, um meganarradorseja exigido para articular as instâncias literária, icônica (as imagens) e a empaginação. Os quadrinhos podem até não mostrar, como o cinema (pois não se utilizam de imagens fotográficas, e sim imagens representadas, os desenhos), e a articulação entre os planos pode não se dar através de uma decupagem como no cinema (e sim através de uma empaginação), mas, no fundo, o princípio é o mesmo. A diferente complexidade das matérias de expressão, no entanto, faz com que os quadrinhos combinem coisas diferentes em relação ao cinema, produzindo efeitos, temas e modos de representação distintos.

A profunda capacidade que os quadrinhos possuem em tematizar a metalinguagem está ligada a este processo. Assim como a “página de movimento perpétuo”, a “página do demiurgo sádico” que vimos em Mauricio de Sousa também não é rara e nem nova. Há, por exemplo, esta tira dominical de Little Nemo, de Winsor McCay, que, de maneira mais engenhosa e artisticamente desafiadora, produz os mesmos efeitos que a despretensiosa historinha do Cascão. Aqui, em duas cascatas de quadros diagonais que vão ficando mais espichados conforme avançamos na leitura, os três personagens (Nemo, Imp e Flip) vão se espichando junto com os quadros, produzindo um efeito bizarro, de uma beleza surrealista. A questão mais interessante, no entanto, além do efeito estético, desta obra-prima art-nouveau datada de 1909, é que os três personagens percebem em si mesmosos efeitos da deformação do quadro. Nemo, após perceber sua cabeça esticada, afirma: “Estou ficando tonto! Me sinto como uma torta ou uma panqueca!” No que o Imp responde: “Quanto mais longe nós vamos, pior fica!”



A lógica onírica da série de McCay coloca estes personagens na seguinte situação: eles se percebem modelos para a experimentação da forma aplicada pelo seu criador, no caso o cartunista, que se confunde aqui com o meganarrador. É como se, no sonho, pudéssemos nos percebermos como personagens de um demiurgo e entender seus processos de criação, notando as modulações de linguagem aplicadas sobre nós mesmos, e os efeitos (até físicos) disso. A consciência de McCay em relação ao material com que trabalha, neste caso, em tão tênue aurora dos quadrinhos, é absolutamente impressionante. Diferentemente da história do Cascão, em que a “fraude” da representação é denunciada pelo próprio narrador “representado”, McCay ri, digamos, “por dentro”, usando a própria matéria de expressão do formato dos requadros e a deformação de seus conteúdos para denunciar a ação do demiurgo. Também neste caso, simplicidade e elegância apontam para uma cadeia interminável de relações possíveis entre narratividade e modelos de estilo e representação para os quadrinhos. Sendo esta um arte em que a artificialidade de seus processos de composição é claramente anunciada (ao contrário do cinema, que tão frequentemente mascara a sua em meio a uma ilusão de transparência) e em que seus quadros estão sempre dentro de um quadro maior, não surpreende que ela esteja sempre fazendo referência a seus próprios processos, criando inumeráveis tipos de elaboração narrativa, que se plasmam no surreal, no mundo da imaginação, no sonho. 

Sendo assim, resta concluir que talvez os quadrinhos sejam, enfim, o sonho de um personagem que acaba de despertar. 

Mondo Colosso: quadrinhos para um tempo imemorial

$
0
0


por Ciro I. Marcondes*

O Paleolítico é um período fascinante especialmente pelos seus muitos gigantismos. São quase 300 mil anos se considerarmos apenas o Homo sapiens moderno, e muito mais se considerarmos os hominídeos imediatamente anteriores que participaram da nossa evolução. Será possível que de alguma forma ainda resida em nós uma herança mítica destes homens e mulheres que sobreviveram por centenas de milhares de anos como nômades, caçando animais gigantes da megafauna, enfrentando a era do gelo, comendo carne de mamute? A beleza em se pensar a transmissão do pensamento mítico por tantas eras está presente em Mondo Colosso, HQ brasiliense de Mateus Gandara e Vítor Vitali, lançada independentemente em 2014 (selo Vudu Comix), e que coroa a boa fase que o quadrinho do Distrito Federal vem vivendo desde os anos 2000.


Traduzir um pouco do gigantismo da empreitada dos nossos antepassados das cavernas (ainda que, nômades, estes povos nunca tenham efetivamente morado em cavernas) está na intenção da dupla de autores, e de maneira literal: Mondo Colossoé um mundo primitivo, e de criaturas gigantes. Sua história é um relato lírico e selvagem envolvendo grupos rivais, o instinto da sobrevivência e os rituais da natureza. Logo nas primeiras páginas, acompanhamos uma paisagem selvagem e violenta, onde um boi é devorado... por uma águia. Esta águia é capturada por uma mulher gigante, que a oferece a uma ainda maior centopeia, criando um jogo de encaixes em dimensões espaciais cada vez maiores, aproveitando o zoom potencial da “lente” que é a empaginação em quadrinhos – fazendo eco à montagem de “atrações”, fértil em close-ups e planos-detalhe, do cineasta soviético Sergei Eisenstein.

Os desenhos rústicos e sólidos de Gandara – associados a uma distribuição vertiginosa e inventiva dos quadros nas páginas – favorecem uma dupla potencialização da história ancestral de Vitali: por um lado, cria-se uma mitologia de titãs, tal qual na antiguidade clássica, nos aproximando da narrativa oral e do caráter embrionário, metonímico, do mito. Estamos no território do universal. Por outro lado, sendo esta uma narrativa totalmente sem falas, nos aproximamos também, curiosamente, do apuro técnico e da imagem mecânica do cinema mudo. Educados em uma formação naturalmentemista, os autores não se esquivam de fazer valorizar não apenas a inebriante montagem soviética, mas também a qualidade indevassável de uma imagem silenciosa que, longe da palavra, se torna passagem imediata para a nossa ancestralidade. Assim, Mundo Colosso dialoga não apenas com quadrinhos e cinema, mas também com as pinturas das cavernas de Lascaux e Chauvet, nossas imagens primordiais.

Mondo Colossoé uma HQ extremamente rápida de se ler. Basta a agilidade dos olhos e a velocidade do virar das páginas. Mesmo assim, traz à tona uma quantidade respeitável de imagens que se fixam na memória, não ficando atrás de outros projetos recentes e bons que se aproximam do silêncio (como as histórias do Projeto 1000, da Narval) ou do primitivismo ancestral (como a também ótima Piteco – Ingá, de Shiko). Gandara e Vitali ainda não se esquivam de introjetar discreto posicionamento político ao conferir o protagonismo da história a uma mulher de seios fartos, metaforizando a valentia feminina e a abundância de fertilidade presente nas próprias “estatuetas de Vênus” do Paleolítico. A nudez na história, inclusive, honesta e necessária, é também símbolo do desnudamento humano diante de um mundo hostil e sempre colossal, em todas as suas acepções. Vale a pena ficar de olho nesses autores, deve vir mais coisa boa por aí.

* Publicado originalmente no jornal de quadrinhos Suplemento.

Hokusai inventou o mangá?

$
0
0

por Ciro Inácio Marcondes

Antes de propriamente retomar o intenso trabalho que será reformular a nossa querida Raio Laser em 2015, cabe um post que retome um pouco a origem dos quadrinhos. Quero dizer: que busque mais um mito de origem para os quadrinhos do que qualquer outra coisa. Trilhar um caminho vetorial e teleológico para a História nunca é uma opção muito legal, já que tendemos a condensar o mundo numa visão seletiva (logo, impositiva) e simplista, perdendo tudo o que ocorre ao redor (justamente o que há de mais interessante). Porém, um exercício de fantasia histórica não vai nos fazer mal. Há mais, de tudo que envolve nosso hábito de ler quadrinhos em 2015, no imaginário japonês do séc. XIX, do que talvez se costume considerar. Vamos dissecar isso um pouco .

Para os que tiveram a oportunidade de ver a disputadíssima exposição “Hokusai”, nas galerias nacionais do Grand Palais em Paris, ficam algumas impressões e interrogações. Dentre as centenas de desenhos, gravuras e pinturas expostos (produção entre 1778 e 1849), fica na memória um vergalhão de ideias, sketches, imagens, rabiscos, tudo trazido à tona de maneira selvagem e num cenário de difícil contextualização. Afinal, requer-se uma grande expertise em arte japonesa para traçar a real diferença entre um egoyomi (a saber: arte para calendários ilustrados) e um surimono(gravuras para pendurar na parede) dentro do contexto do início da carreira do homem que mundialmente ficou conhecido como Katsushika Hokusai, mas, tal qual um David Bowie de um mundo pré-moderno no Sol Nascente, assumiu várias identidades durante a vida.


A exposição, para a qual tínhamos de enfrentar filas dentro das próprias salas para poder observar as minúcias dos cadernos e desenhos diminutos, tinha essa coisa de causar espanto ao se deparar com uma cultura estrangeira: como realojar aquilo dentro das nossas referências estéticas (de desenho, pintura, quadrinhos) da arte ocidental a partir daquele volume sem freio de produção rotineira e maciça, que não sabemos se chamamos de genial ou banal? Vale citar a anedota sobre os impressionistas, que, seduzidos pelo uso bizarro da perspectiva “renascentista” por Hokusai e outros pintores da época – uma das cópias da famosa gravura da onda está inclusive na casa de Monet (em Giverny), que era colecionador do homem –, pensavam que aqueles desníveis nos tamanhos das figuras nas imagens eram uma reflexão poética sobre o espaço e o tempo. Na verdade, estas imagens eram muito populares justamente porque a perspectiva, utilizada de um modo um tanto grosseiro, parecia absolutamente cômica para o público japonês, que comprava as estampas como forma de piada.
Norakuro: exemplo de uma mangá pré-moderno
Para um fã de quadrinhos, logicamente é interessante pensar a arte de Hokusai não apenas numa certa linhagem “evolutiva” que compreende: a pintura, o desenho e as gravuras japonesas do Séc. XIX; a chegada dos primeiros quadrinhos britânicos no final deste mesmo século; as primeiras imitações que se seguiram nas primeiras décadas do séc. XX (toba-e); e até a completa inovação do mangá empreendida por Tezuka e outros a partir da ocupação americana no pós-guerra (através do contato com o quadrinho moderno). É preciso pensar aquilo tudo que Hokusai empreendeu dentro do caldeirão cultural no qual esteve imerso em cerca de 70 anos de carreira. Vejam bem o tipo sistemático que era: chegou a pedir, tal qual um FHC menos acovardado, que desconsiderassem tudo o que ele fez antes dos 70 anos. E disse que só atingiria o esplendor artístico aos 110 anos, que infelizmente não alcançou. Afinal de contas, o que o século XIX ensinou ao século XX está na matriz do surgimento dos quadrinhos (assim como do cinema, da psicanálise, da antropologia, etc.), e é mais importante pensar estas esferas de possibilidades culturais do que uma linhagem estanque de estilos e movimentos ou uma lista de artistas que se sucedem, cada um assumindo a paternidade dos pontos desta ligadura teleológica. Dito isso, e na forma de uma conclusão, vou destacar três pontos que acho interessantes na relação entre a arte de Hokusai e o mangá como o conhecemos:
Shunga
1 – Uma cultura de imagens: Hokusai ilustrou romances vagabundos e popularescos (kibyoshi), manuais de ilustração para artistas (edehon), romances sofisticados (gokan), calendários (egoyomi), cartas de baralho, cadernos de rascunho, retratos de artistas kabuki, paisagens para paredes, etc, etc. Uma das coisas que certamente o tornaram influente foi a possibilidade de transitar em diferentes mídias, ou seja, diferentes suportes (para diferentes fins) nos quais pudesse expressar todo tipo de conteúdo cultural vigente em sua época, da imagem erótica do shunga até as imagens aleatórias do primeiro manga. Hokusai, num Japão que lentamente se abria à modernidade no Séc. XIX, viveu em um ambiente iconofágico: a imagem estava por toda parte. Desde a reprodução calculada das gravuras e estampas até a modernização da imprensa e a popularização dos jornais em meados deste mesmo século. A obsessão em juntar a palavra e a imagem está, logicamente, na própria escrita (os kanjis), mas data também das pinturas em rolos do séc. XII (Toba). Ela nunca realmente abandonou o imaginário japonês. Talvez não tenha havido de fato uma separação entre uma escrita de superfície (em imagens) e uma escrita em linha (em palavras), como vimos no ocidente. Daí a imaginarmos o porquê de o Japão ser o país que mais produz quadrinhos no mundo, não é tão difícil. Hokusai viveu o esplendor desta cultura. Dentro deste contexto, sua influência é incalculável.

Um mangá de Hokusai
2 – Inventou a palavra mangá: é realmente muito difícil dizer que um sujeito nascido no séc. XVIII inventou uma palavra, mas é possível afirmar com razoável precisão que foi por sua causa que ela se difundiu. Afinal, mangá originalmente quer dizer “imagem diversa”, ou, eventualmente, dependendo da leitura, “imagem irresponsável” (no sentido de “livre”, “sem compromisso”). Basicamente, um mangá, no Séc. XIX, era um caderno de rascunhos livres. Hokusai foi o primeiro a comercializar mangás (da mesma maneira que o ilustrador contemporâneo e gabaritado publica seus sketchbooks hoje em dia). Suas estampas e desenhos eram tão admirados que ele recebeu inúmeras solicitações para publicar seus rascunhos, o que ele começa a fazer em 1810. Depois disso, esses cadernos se organizam em manuais de desenhos para iniciantes em vários volumes, que se tornam extremamente populares. Os desenhos destes cadernos não apenas são um inventário do cotidiano do Japão nesta época, com milhares de variações, como também apresentam poses, movimentos, traços estilísticos e linhas de ação que são, pode-se dizer, puro quadrinhos. Não à toa, havia na exposição duas interessantes montagens em vídeo que animavam estas “imagens livres”, fazendo materializar-se instantaneamente a ponte entre este fenômeno cultural do séc. XIX e os nossos “animês".
3 – Hokusai era um ilustrador de quadrinhos: para além de se pensar a disponibilidade midiática da época ou elocubrações sobre a origem da palavra “mangá”, talvez o fã de quadrinhos simplesmente se sinta tocado, ao entrar em contato com a arte de Hokusai, pelo seu estilo tão gritantemente parecido com o de um quadrinho contemporâneo. Não apenas por suas gravuras mais conhecidas, da série “36 visões do Monte Fuji” (dentre as quais consta sua Mona Lisa, “A grande onda em Kanagawa”), que funcionariam como o esplendor artístico do melhor quadrinista contemporâneo. Não. Trazer à tona o auge de um artista que trabalhou incansavelmente por mais de cinco décadas talvez simplesmente não seja justo com esta proposição. As “36 visões”, de um brilho onírico e de uma potência narrativa inigualáveis, influenciaram de Monet a Winsor McCay; de Kurosawa a Miiazaki. Elas extrapolam os quadrinhos, ainda que estejam na matriz deles.
Também não me refiro aos já citados e pioneiros manuais de desenho. Refiro-me, tão simplesmente, aos desenhos mais ordinários, geralmente os mais desprezados na exposição, de riquíssimo detalhamento em cenas majestosas, carregadas de movimento e ação, e que, apesar de tudo, guardavam a modéstia de serem ilustrações para livros baratos, lidos pela população mais comum. Bater o olho naquilo e ver os quadrinhos é mais ou menos como olhar para um retrato fotográfico muito antigo e reconhecer nele alguém com quem você convive no dia a dia. As ilustrações de livros de Hokusai carregam esta potência: ali reconhecemos o dinamismo de Goseki Kojima; a sobriedade de Yoshihiro Tatsumi; o detalhismo de Masahiko Matsumoto; a qualidade espectral de Shigeru Mizuki; o pessimismo de Kazuichi Hanawa; e até a estética de Frank Miller. Eis o mangá psicografado.                

Puro quadrinhos?

HQ em um quadro: sudeste da Ásia na BD clássica, por Peyo e Delporte

$
0
0

Benoît Brisefer chega em Khben-Nogbang (Peyo, Yvan Delporte, 1968): bem na época em que houve a polêmica a respeito do brasileiro executado na Indonésia, eu estava lendo esta história do personagem Benoît Brisefer, clássico belga criado por Peyo (de "Schtroumps" e "Johann e Pirluit"). Aqui, o simpático mini-herói (edição: "Os doze trabalhos de Benoît Brisefer") precisa recuperar nove pedaços de papel dos títulos de um terreno com petróleo que estão espalhados pelo mundo. Isso o leva até um "certo país no sudeste asiático", descrito no letreiro do quadro aqui destacado desta maneira: "Khben Nogbang, cidadezinha do Sudeste da Ásia, mistura o charme pitoresco do extremo oriente aos benefícios da civilização ocidental...". Ao olharmos para o quadro, vemos não apenas a cidade viva, magnificamente representada no traço gros nez de Peyo, como também as propagandas de Coca-Cola ironicamente emplacadas acima das lojinhas orientais. Ora, longe de querer fazer qualquer análise pseudossociológica que compare a situação sociocultural do sudeste da Ásia com a história da BD francobelga, eu gostaria apenas de apontar algumas curiosidades ao redor deste requadro.

Fuzilamento no sudeste da Ásia...
Peyo já foi chamado de racista e comunista, e creio que neste caso sua intenção era fazer uma discreta denúncia dos "males do capitalismo" chegando de maneira ambígua a "tão bárbaro país". O imaginário sobre a Ásia, e especialmente do sudeste asiático (guerra do Vietnã pegando fogo) no meio dos anos 60 dificilmente seria outro: não apenas Peyo e Delporte não nomeiam o país, tratando-o como alguma substância genérica, como logo à frente o pequeno herói se envolve rapidamente em uma trama militar, mostrando os soldados (amarelos) do sudeste da Ásia prestes a fuzilar (por engano, lógico) um "honesto" arqueólogo europeu. Logo emerge, obviamente, o imaginário do colonialismo "cientificista" belga (e francês), e em plena era das descolonizações. Logicamente, os militares de tal país são mostrados como vilões atrapalhados, que caem na astúcia de Benoìt, mas ao mesmo tempo choca a imposição de suas leis brutais, de suas sanções severas, ditatoriais. Se pensarmos hoje na Coreia do Norte, ou neste caso de execução na Indonésia, etc, de que lado estariam efetivamente Peyo e Delporte? Na denúncia da "praga capitalista" ou no estereótipo racista que constroem a respeito das culturas que eles, de maneira tão colonialmente paternal, querem "proteger"?

A China de Hergé
A resposta reside, obviamente, na ambiguidade. Se hoje estas questões são plurais e apontam para vários lados, imagine nos anos 60, quando um imaginário de identidades sólidas e iluministas ainda vigorava com força em países como a França e a Bélgica. Isso tudo poderia levar a mais um debate inútil sobre Charlie Hedbo, mas eu prefiro olhar ainda mais para o passado e pensar a HQ de Tintim O lótus azul, de Hergé (1936). Muito criticado pelo viés racista e canhestro de seu Tintim no Congo, Hergé, afetado por uma crise identitária, resolve, na época, fazer da investida do personagem na China uma verdadeira experiência etnográfica e transcultural, consultado um amigo chinês a respeito dos costumes e de maneira de ser dos chineses, à época em um impasse político graças ao imperialismo japonês, retratado na história. O detalhismo cultural perseguido por Hergé aqui é fotográfico: das casas de ópio às cidades, à natureza e aos veículos, a China era processada e representada com respeito, numa trama também militar, mas menos esquemática do que na HQ de Peyo. Há inclusive uma página inteira de desambiguação dos estereótipos chineses, e Tintim e o chinês Tchang desenvolvem terna amizade.

O que quero chamar a atenção é que esta esquizofrenia representacional e de posicionamento político que apontamos em Peyo e Delporte (é sempre um "alvo fácil" mirar uma obra de outro contexto histórico e cultural) também existe no mestre "intocável" Hergé. Qual Hergé preferimos ler: o racista do Congo ou o humanista da China? Seria fácil defender um ou outro dependendo dos propósitos e intenções ideologizantes que construímos a priori. Não se enganem: Os doze trabalhos de Benoît Brisefer é uma ótima história em quadrinhos: é dinâmica, ilustrada e narrada com a excelência da BD clássica, e um lindo inventário sobre o envelhecimento e a maturidade. O personagem é até mais cativante do que a contrapartida mais famosa das criações de Peyo (Schtroumps), além de dar um tabefe irônico na cultura de super-heróis. Até ganhou um filme recentemente. Talvez bons produtos culturais possam (e até devam) ser ambíguos, facilitando o destrinchar da complexidade que envolve nosso posicionamento ético e político nos dias de hoje.

Por fim, escrevi tudo isso para me ajudar a pensar também a capa da última revista Fluide Glacial, que, num movimento (talvez honesto) anti-Tintim (reparem que o desenho faz referência ao quadro de O lótus azul), retrata um "francês típico" carregando um chinês rico (com um loira) em uma Paris completamente dominada pela cultura chinesa, com a seguinte chamada: "Perigo amarelo! E se já for tarde demais?" A capa da tradicionalíssima revista de humor francesa (ops...) já provocou stress diplomático com a China. Enfim, novos tempos, mas a polêmica histórica continua... (CIM)  



Viewing all 170 articles
Browse latest View live