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PIMBA na gorduchinha!

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por Ciro I. Marcondes

Estando no “exílio”, recebo pouco material nacional aqui, e é por isso que a chegada do número dois do Jornal Pimba foi motivo de celebração. Já falamos sobre esta heroica publicação de Brasília aqui. O formato de jornal, que atrai certa nostalgia e ao mesmo tempo impulsiona novo entusiasmo às artes da ilustração e dos quadrinhos, é aquela contradição “do bem”: é barato, dá espaço para os desenhos fazerem vingar seu potencial, e além de tudo possui uma relação afetiva com a história dos quadrinhos. Afinal, os quadrinhos nasceram nos jornais. Aqui na França, a tradição de jornais (ou revistas que começaram como jornais) que publicam quadrinhos (de aventura ou humor) persiste até hoje. Não apenas nas pedras inaugurais belgas (Spirou, Tintin), mas em publicações que mantêm sua essência: Le Canard Enchainé, Fluide Glacial, Pilote, Charlie Hedbo. O Pimba aparece, em meio a estas leituras, em perfeita sintonia.


Felipe Sobreiro
Paradoxal também acabou sendo a leitura do segundo Pimba, já que, tendo lido a vigorosa e em tudo impressionante primeira edição, a sede de que o repeteco viesse na mesma toada era grande. Pois é, meus amigos: posso dizer que conheço o pessoal que faz o Pimba, mas não posso simplesmente me render a uma crítica camarada. Perfeito em diagramação (desta vez rosa e preto), com todo um cuidado de curadoria e franca honestidade artística, o Pimba, além de tudo, ofereceu bons textos de qualidade literária. Meu lado “estudante de Letras” (atrofiado há anos) se despertou com a capacidade que alguns colaboradores ali têm em escrever. O paradoxo, no entanto, veio junto com quadrinhos um tanto abaixo da média, que demonstram talvez uma concepção apressada aqui, um deadline apertado ali, uma escolha temática infeliz acolá. O que terá causado tal deslize?

Vejamos, primeiro, o papel dos mais veteranos: se temos um bom caso de experimentação como o jogo da memória e da imagem em quadrinhos com André Valente (o nosso “Chris Ware encontra Walt Disney”, ainda em processo de amadurecimento), com Eduardo Belgatemos apenas uma tentativa de condensar grandes histórias em poucos quadros (“Mas não presta muito contar assim, só por alto. Um dia eu conto estas histórias direito”, admite). Neste caso, é preciso decidir: fazer o quadrinho narrativo direito, com desenvoltura e, especialmente, muitos quadros, ou o negócio é optar por outro gênero, mais próximo da poesia e dos sincretismos.

André Valente

Daniel Carvalho
A mente fértil de Gomez, esse sim adepto das narrativas, geralmente cíclicas, pequenas parábolas de uma Brasília juvenil, aqui bate ponto, entrega coisas engraçadas, mas causa a impressão de não ter dedicado seu melhor. Estaria Gomez se repetindo? Sim, quando o cara é bom e muito exposto, aumenta-se a cobrança. Ninguém disse que era um mundo justo. O mesmo ocorre com Daniel Carvalho, exímio ilustrador que, no campo narrativo, causou-me a impressão de ter replicado, de certa forma, a história que fez para a edição anterior.

Meus quadrinhos favoritos na edição vão para Felipe Sobreiro e “A caixa”, uma história meio “gangues de Brasília nos anos 90” com um toque surrealista à Robert Silverberg. Despretensioso, eficaz, nada mal. A outra que me agradou foi “O mestre dos muros”, quadrinho hoje póstumo do talentoso Mateus Gandara, uma linda parábola budista contada com a regularidade tântrica dos requadros tabulares, muito bonitos na diagramação do jornal.

Entre os que estrearam, aliás, há ainda arroz com feijão para comer. Pedro D’Apremont (nosso Peter Bagge do black metal), mesmo que tenha a grande vantagem de estar criando um universo e um imaginário comuns aos seus quadrinhos, ainda precisa calibrar melhor as gags e piadas, um tantos canhestras aqui. Já a Gabi LoveLove6 arrisca uma narrativa confessional, mais realista, muito direta. Não me agrada muito quando um discurso engajado parece simplesmente literal. Joga contra. Melhor voltar ao lirismo despojado e transgressor do Garota Siririca. Por fim, vale falar no quadrinho tóxico e mala (no bom sentido, se é que isso existe) do Heron Prado, herdeiro de Gabriel Góes, que dá um bom upgrade no nonsenserabiscado de Futuro do Pretérito.

Mateus Gandara

Literatura

Pedro D'Apremont
Juventude de maloqueiragem anos 90, puberdade sem qualquer romantismo e algum trato experimental, aliás, é o tom nas narrativas literárias do jornal. Pode parecer excesso de nostalgia de tempos mais simples e crus (o que na verdade não é ruim, dado o mundo de merda em que vivemos), mas os autores conseguem verter essas coisas em qualidades, visões de mundo, perspectivas literárias. Afinal, são três ou quatro contos falando de molecagem, 13 punhetas por dia, tesão pela professora, etc. Destas, gostei especialmente de Diário do Timor Leste, escrito por Danylton Penacho, uma série de relatos escrachados, mas carregados de melancolia quase exclusivamente brasiliense, como se fosse um retrato “ame-ou-odeie” de alguém ligado umbilicalmente à sua cidade. Também vale a disposição mais clássica, cômica e cruel de Retrato ao redor de um banheiro, do veterano Milton Sobreiro, além do trato à Murilo Rubião do onírico Colcha de chenile (também de Penacho), além da poesia que trinca os espaços modernistas de Brasília em Espaço é um local cercado de cantos por todos os lados, de Biu.

Heron Prado
A joia da edição, IMHO, no entanto, fica com a qualidade de literatura impressionista do conto O asfalto, de Pedro Menezes, uma jornada febril em discurso indireto livre que parte de uma aula de educação física até o mais irrevogável niilismo. Se o Pimba declaradamente não possui uma linha editorial, a própria geração de quadrinistas e escritores faz questão de trazer naturalmente suas angústias e problemáticas, criando uma massa comum de memórias e experiências com o corpo e com o espaço da cidade, marca profunda e indelével da contemporaneidade. O Pimba, com seu pé no passado, mas com mãos que apontam o futuro, carregado de imperfeições (não podia ser diferente), é talvez a melhor expressão da cultura de Brasília nos dias de hoje. Afinal, do absurdismo dos quadrinistas às trevas de Pedro Menezes, há um substrato comum com o qual qualquer brasiliense se identifica.

PS: e viva Osmar Santos!   

Marco: odisseia em busca da origem dos quadrinhos

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Aproveitando o lançamento da edição "integral" e colorizada da saga espacial publicada por Daniel Lopes ao longo de 2013, deixo aqui o texto que escrevi como introdução para "Marco, o macaco do espaço". A colorização ficou ótima e vale muito a pena garantir seu próprio volume. (CIM)

Marco: odisseia em busca da origem dos quadrinhos

por Ciro I. Marcondes

“O homem não é nada além de um macaco no espaço”. Foi esta frase que eu ingenuamente inseri em um filme amador feito para o colégio nos idos de 1998. A coisa toda incluía uma animação primitiva feita com as próprias mãos (pintadas de preto) e um fundo escuro. Ela mostrava um macaquinho de playmobil saindo de uma nave espacial ao som do famoso poema sinfônico de Strauss Assim falou Zaratustra (a “música de 2001”), seguido de uma narração em voz over que entoava a “impactante” sentença.

Ao ler toda a série Marco, esta ligação entre uma ancestralidade primitiva e um futuro pós-humano (que eu ingenuamente havia tentado expressar na ocasião do filmete) me voltou como uma forma de estética. Explico-me: talvez, para expressar o mundo incognoscível dos nossos alhures passados e relacioná-lo com nossas ambições de buscar a eternidade da espécie por meio da tecnologia, seja necessário misturar alguma sofisticação mágica, criadora de ilusão (no meu caso, a “ambição” da animação) com algo que a sabote instantaneamente, e isso é algo que revela seu próprio artifício (o próprio método “primitivo” de animar mostrando as mãos que mexiam o brinquedo). Somente uma contradição dos procedimentos estéticos poderia revelar a contradição da própria odisseia humana.



É claro que Kubrick, no 2001 mesmo, optou pelo virtuosismo estético, até porque era um artista de quilate maior. Porém, mesmo no livro de Arthur C. Clarke, com uma prosa simples e límpida, muito racional e até um tanto obtusa, encontramos essa contradição sobre a qual estou comentando. O livro é raso. O tema, profundo. Não é preciso dizer que o Planeta dos macacos, mais uma fantasia do que propriamente hard sci-fi(o livro ou os filmes), se aproveita muito desta contradição entre mágica, ciência, primitivismo, futurismo. Nos quadrinhos temos inúmeros exemplos: de Buck Rogers a Storm, de Valerian a Love and Rockets, todo tipo de space-opera se funda da ideia de que o mundo mágico dos “selvagens” ainda persiste no mundo racional dos “evoluídos”.
Digo isto porque me parece que Daniel Lopes, um corajoso quadrinista capaz de questionar a história e o formato da mídia com a qual trabalha, parece ter percebido perfeitamente esta estranha dicotomia, esta incongruência, esta aporia. Desenhado num traço claro, sem gradações e poucas hachuras, econômico sem ser simplório, Marcoé um pequeno tesouro que corre o risco de ficar perdido em meio à sua aparente naïvité. Mas onde exatamente reside esta ingenuidade? Não é difícil encontrá-la. A série Marco foi lançada em pequenas tiras mensais ao longo de 2013 na publicação Mês, e quem a acompanhou de maneira seriada pôde repetir a sensação que tinham os longínquos leitores de quadrinhos de aventura nas tiras diárias dos jornais americanos nos anos 1930. Flash Gordon, na qual Marcoé amplamente baseada, foi publicada desta forma. Este formato, que utiliza pouquíssima decupagem (o adição “cinematográfica” aos quadrinhos que aconteceu sobretudo nos anos 1940, com Spirit e outros), acaba se obrigando a abusar de recursos hoje enfadonhos, como letreiros grandes e um resumo da história no primeiro quadro de cada tira. Estudante da história dos quadrinhos, Daniel resolveu criar seu próprio experimento no que ele entende ser uma junção de um mundo “primitivo” de quadrinhos com o “futuro” incerto desta forma de arte. Daí temos como resultado não apenas um traço simples (mas inegavelmente carismático), como também uma história igualmente simples, space-opera arcaica no talo, cheia de desventuras incongruentes, technobabblea torto e a direito, raças estranhas, civilizações perdidas, arenas galácticas, viagens espaciais impossíveis, etc.
A própria figura do macaco “evoluído” Marco, jogado de um lado a outro por conspiradores, tratantes e revolucionários, simboliza um pouco a grande licença poética que é pensar a humanidade como “apenas um macaco no espaço”. De alguma forma, a série Marco, em sua ingenuidade, é nada mais que aquilo cada um deseja que ela seja: pode ser uma recuperação de uma era romântica nos quadrinhos; um exercício de estilo e forma; uma aventura despretensiosa, mais voltada ao design de criaturas e naves. Ou, como prefiro pensar, uma atualização engenhosa do “mito de origem” dos quadrinhos, as tiras dominicais e semanais, entrando com intensa propriedade na dinâmica deste meio, usando o formato mais “pobre” possível para chegar ao resultado mais longínquo alcançável para o autor, que é provocar a reflexão sobre nosso interior ancestral e nosso exterior longevo.
Assim, se desconfiamos quando, em Marco, conserta-se um teletransportador em ruínas ou uma nave algumas horas, ou quando o macaco confunde Marte com a Terra e aterrisa no planeta errado, estas coisas seguramente podem ser limadas pela licença poética que intui que este quadrinho é uma espécie de narrativa sintética primitiva, mítica, e seu conteúdo é facilmente determinado pela forma, que mantém um olho no passado e outro no futuro. Daniel Lopes marca esta limpidez naïvecom intervenções pontuais extremamente importantes para o sentido todo da série. Em um certo momento, Marco viaja pelo espaço e descobre uma série de planetas com civilizações exóticas, culturalmente e biologicamente desafiadoras, e um claro assentamento filosófico se ilumina dentro dos limites estreitos da tira: passamos a conhecer uma raça hermafrodita, um ser zen de outras dimensões, citações a Carlos Castañeda, Alan Moore, King Kong, etc.

Sem pudores, Daniel sugere a relação sexual interespécies e cria um panteão de personagens volúveis, afeitos a seus próprios egos e objetivos cretinos, algo inimaginável no realismo rembrandtiano de Alex Raymond, mas realizável na limpidez rústica do quadrinista brasiliense. Por estas e outras, temos aqui um quadrinho fora de categorização, com um conceito óbvio e ao mesmo tempo radical, capaz de provocar profunda indiferença ou profunda inquietação, sendo a sua forma a simbolização do paradoxo que a própria história representa. Tudo isso qualifica Daniel Lopes como alguém que possui ao menos a habilidade fundamental exigida para qualquer artista que mereça a alcunha: entender o tempo e o espaço de sua obra. Isso não é pouca coisa. Afinal, os quadrinhos não são nada além de um hominídeo solto na arte do espaço. 

A Era Hiboriana de Conan e suas Nações

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É com satisfação que trazemos mais um colaborador aqui para as fileiras da Raio Laser. Marco Collares vem da área da História e contribui com um texto nada menos que excelente sobre os fundamentos historiográficos da Era Hiboriana de Robert E. Howard (ou seja; CONAN). É um texto que vai além do óbvio e que nos mostra as sutilezas com que a contemporaneidade se infiltra nos discursos de ficção histórica. Quanto ao Marco, deixo ele mesmo se apresentar. Obrigado Marco. (CIM)

Sou professor de história no RS, formado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e mestre em história e cultura política pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Franca/SP. Me especializei em história antiga, mais especificamente em Império Romano, estudando autores latinos do porte de Cícero, César, Tito Lívio, Salústio, etc. Meu gosto pela história antiga é da juventude, da época em que acompanhava de perto as HQs e outras mídias (agora é uma paixão mais esporádica e seleta, mas acompanho boas estórias, e quando falo em outras mídias, falo de cinema, games, RPGs, séries televisivas, animes, etc).

por Marco Collares


Um tema bastante interessante diz respeito aos chamados "usos do passado", mais especificamente, a forma como as sociedades de outros tempos e lugares são representadas no contexto presente, ou melhor, em algum contexto mais contemporâneo, com toda a carga ideológica, conceitual e temática inerentes ao ambiente sócio histórico, político e cultural do referido contexto. Como bem afirmado pelo historiador medievalista da Escola dos Annales, Marc Bloch: "o passado em si não é o objeto do historiador, mas sim a importância do presente para a compreensão do passado e vice versa".

Isso significa que quaisquer fontes, documentos e textos, quaisquer conjunto de enunciados, quaisquer obras da literatura, ou mesmo quaisquer artefatos culturais de naturezas diversas (sejam tais artefatos iconográficos, gráficos ou materiais) que tratam de algum passado, seja histórico ou munido de traços históricos, todos esses documentos dispõem de signos, significantes e significados inerentes ao contexto presente de consecução dos mesmos.

Nesse ponto estamos próximos daquela arrebatadora verdade acerca das obras do Aedo Homero, a Ilíada e a Odisseia. Que verdade seria essa? Ora, os poemas narravam eventos em torno da Guerra de Troia e depois desses eventos, narravam sobre o retorno de um de seus heróis, Odisseu (Ulisses em latim) para sua terra natal, a Ilha de Ítaca, tratando-se assim de eventos que teriam ocorrido por volta do ano 1200 A.C, no final do chamado Período Minoico-Micênicoda história grega. Porém, quase todas as questões sobre os conhecidos poemas não circunda somente na enfadonha Questão Homérica de definição da real autoria dos poemas, mas sim no fato de que o poeta (ou poetas, segundo alguns autores) colocou diversos traços de sua própria época histórica no passado retratado, traços históricos de um período posterior chamado de Período Homérico da Grécia Antiga (e o nome “Período Homérico” não se deve a esse fato?), com elementos culturais, políticos e sociais desse período.

O que depreendemos dessa verdade? Que os brilhantes estudos de historiadores renomados do porte de Jean-Pierre Vernant ou de Pierre Vidal-Naquet sobre o Período Homérico não deixam de lidar com os supracitados "usos do passado", visto que eles procuraram compreender, entre tantas outras coisas interessantes, quais são os elementos históricos do período de compilação e difusão do corpus homérico, quais são os aspectos sociais, políticos e culturais do mundo do autor da obra e os que foram inscritos e misturados, conscientemente ou não, ao passado mítico narrado pelo poeta.

Não se pode deixar de mencionar, claro, que grande parte desse processo ocorreu devido aos aspectos inerentes do que se costuma denominar de tradição oral, tradição essa que usualmente transforma completamente os eventos narrados oralmente, devido às contínuas recitações de poemas e narrativas proferidas de "boca em boca". Em outras palavras: o anacronismo é inerente quando se repassa um fato oralmente, pois cada um conta uma história diferente da original.

É nesse sentido que trato o tema do título deste post, "A Era Hiboriana, de Conan e suas Nações". Isso porque o criador da personagem Conan, da Ciméria, o escritor pulp texano Robert E. Howard, não criou somente um personagem isolado. Ele consolidou igualmente todo um gênero literário e narrativo denominado de Sword and Sorcery (Espada e Feitiçaria), gênero que se difundiu sobremaneira no século XX e que atrai milhões de pessoas aos cinemas no mundo inteiro, com filmes do porte de O Senhor dos Anéis.

Howard criou, para além de tudo isso, um verdadeiro "mundo meta-histórico", ou seja, uma era ficcional com elementos de nosso mundo histórico chamado por ele de Era Hiboriana. Seria na verdade uma espécie de Era Histórica anterior ao nosso período Neolítico da Pré-História, onde haveria um conjunto diversificado e complexo de civilizações e sociedades que, segundo a própria mitologia criada pelo texano, teriam sido destruídas em um grande cataclisma, evento esse que teria sido o marco inicial da história cronológica da humanidade como a conhecemos, munida de sua evolução linear convencional comumente difundida em livros de história e, principalmente, em livros didáticos.

O que chama a atenção, no entanto, é que Howard se utilizou de elementos culturais, políticos, religiosos e sociais de civilizações históricas conhecidas, tanto as ditas civilizações do chamado “Mundo Antigo” quanto as sociedades estruturadas na “Idade Média Europeia” e até oriental, em uma espécie de miscelânea de povos e culturas, com representações de povos que apresentam semelhanças com os gregos e romanos antigos, com os mongóis do medievo, com os árabes e europeus do medievo, os japoneses, os chineses e os egípcios antigos, os persas, os mesopotâmicos, os eslavos, normandos, os magiares e tantos outros.

A Era Hiboriana seria assim uma espécie de “Era de Pré-Civilizações Históricas”, datada mais ou menos em 10.000 A.C, uma espécie de "contexto histórico-ficcional" de diversos povos e culturas que, segundo Howard, teriam sido destruídas e apagadas da memória da história convencional em meio a um fenômeno climático, ainda que tais povos tivessem traços daquelas culturas e civilizações que viriam a surgir a posteriori. Se parece confuso, bem, isso é apenas o começo. Isso porque a Era Hiboriana seria um passado semiesquecido de nossa própria memória histórica, um passado com características das civilizações que viriam a se organizar posteriormente e que, para nós, contemporâneos do século XXI, estão inseridas na chamada História Antiga e Medieval, segundo os matizes convencionais da disciplina da história.

O próprio Howard, em meados da década de 1930, escreveu que seu objetivo de montar e explicar os povos dessa era criada por ele seria o de conceber uma conotação mais realista para as aventuras de Conan, como que um pano de fundo ficcional para uma série de narrativas que teriam uma base realista em termos culturais, comportamentais, sociais e até políticos. Assim, a Era Hiboriana seria como que um parâmetro para as narrativas ficcionais de Conan, sendo que Howard se comprometia a seguir fielmente esse parâmetro previamente concebido por ele, tal como o faria qualquer escritor de um romance histórico em relação à "história convencional" das civilizações históricas. Reinos, civilizações, impérios e nações ficcionais surgiram então nas linhas de Conan, bem como um mapa histórico-geográfico dos continentes da África, Ásia e Europa, unidos em uma espécie de Pangeia, onde estariam inseridos todos esses reinos, nações e civilizações baseadas em elementos mesclados de sociedades da antiguidade e do medievo.

A famosa Aquilônia, onde Conan se tornaria rei ao final de sua trajetória, seria culturalmente e politicamente uma mescla entre o Império Carolíngio com o Império Romano Germanizado dos séculos IV e V D.C. A Ciméria, terra natal do bárbaro, equivaleria a uma Inglaterra Celta com suas tribos bretãs ainda não "civilizadas", ou seja, pré-romanas, enquanto que a Coríntia seria o amálgama ficcional da civilização grega clássica do século V A.C. A Nemédia, por sua vez, apareceria como que uma versão suis generis do Sacro Império Romano Germânico do medievo. A Stygia seria quase que o espelho distorcido do Egito Antigo faraônico, misturado ao período pré-dinástico, ficando a Hiperbórea como o reflexo ainda mais bizarro da Rússia czarista misturada a um totalitarismo soviético anacrônico (ainda que não anacrônico em relação aos anos de consecução da narrativa de Howard), enquanto Khitai apareceria como a China de Marco Polo e Shem como uma nação a integrar os povos semitas que um dia ocuparam a Mesopotâmia, a Síria, a Palestina e a Arábia de nosso mundo histórico convencional.

Howard efetuou todo esse movimento como que em auxílio para suas tramas, de modo a torná-las mais verossímeis aos leitores, o que sugere um alto grau de imaginação histórica da parte dele. Não é descabido explicar aqui que um filósofo da história chamado R.G. Collingwood afirmara, em uma famosa obra teórica, que ao longo do processo linear histórico ocorrera um desenvolvimento gradual do que chamou de imaginação histórica por parte dos homens, principalmente aqueles do Ocidente. Essa apurada imaginação histórica, entendida por ele como o conjunto de ideias gerais que temos acerca dos fatos e eventos do passado das sociedades humanas, teria tornado a dita civilização ocidental cada vez mais consciente de seu papel e de sua identidade no mundo contemporâneo. Para deixar claro, seria como se cada homem e mulher hoje em dia tivessem mais capacidade de compreender o passado com o passar do tempo e isso teria concebido em nós uma identidade histórica mais cristalizada, responsável por definir nosso papel no mundo.

Bem, o fato é que, concordando nós ou não com as premissas da imaginação histórica enquanto imperativo de uma civilização ocidental, uma coisa é certa: enredos narrativos ficcionais que se baseiam na história acontecida costumam gerar identidades nos receptores dessas respectivas narrativas, visto que o passado é um dos elementos mais bem sucedidos para tais fins, sendo coerente e crível uma construção histórica complexa e não totalmente arbitrária para o sucesso dessas narrativas ficcionais. Isso pode ser facilmente comprovado pelo sucesso de romances históricos que, apesar de ficcionais, tomam personagens reais em suas tramas (os sucessos do escritor britânico Bernard Cornwell são prova desse fato).

É nesse ponto que gostaria de tratar o termo "Nações" na Era Hiboriana de Conan e no fato de Howard, conscientemente ou não, se valer de seu próprio contexto histórico, aquele contexto da primeira metade do século XX e especificamente o da Grande Depressão dos anos 1930, para construir seu mundo ficcional. Isso porque o mapa da Era Hiboriana e as narrativas sobre os próprios Reinos e Impérios desse mundo ficcional, possuem características históricas não somente do mundo antigo e medieval, mas igualmente dos Estados-Nações Modernos, principalmente aqueles definidos como Nações Civilizadas por Howard.

Seguindo os princípios tradicionais de que uma nação se constitui pela história em comum, língua, instituições e pela etnicidade dos povos que integram seu território e são assim governados por um Estado enquanto aparelho ou entidade política, Howard deu um caráter moderno para essas nações na obra, visto que, como bem explicado pelo historiador Eric Hobsbawm, todos esses elementos poderiam até pré-existir em quaisquer coletividades do passado, mas a homogeneização de todos eles possuía uma artificialidade inexistente em períodos anteriores ao século XIX. Em outras palavras, Howard executou a constituição de um mundo integrado por fronteiras nacionais ao estilo contemporâneo, um mapa recortado por nações herméticas e de fronteiras definidas, não somente espaciais, como também culturais, linguísticas, políticas e étnicas, o que inexistia no Mundo Antigo e muito menos no Mundo Medieval.

Um dos maiores especialistas brasileiros no que tange às narrativas de Howard e seu mundo ficcional, Renato Amado Peixoto, reitera em dois textos acadêmicos que o autoquestionamento ante a identidade sulista e texana do autor auxiliou em muito na consecução de sua narrativa permeada de verossimilhança, bem como uma identidade familiar que ele se atribuía e reforçava constantemente. Isso porque Howard seria um questionador niilista da moral sulista dos EUA, dando vazão ao mundo selvagem colonizado pela expansão do oeste americano do século XIX, aquele mundo dos índios cheroquis e das demais nações indígenas que foram exterminadas pelos homens brancos.

Por tal motivo observamos a exaltação em sua obra do tipo selvagem e do bárbaro em contraposição ao homem civilizado. Isso também teria sido efetuado com base em sua identidade familiar, visto que ele descendia de ancestrais irlandeses por parte de mãe, levando-o a idealização dos povos celtas que lutaram e enfrentaram os ditos povos civilizadores, tais como os romanos da antiguidade (aliás, seu personagem Bran Mak Morn elucida essa constatação).

Mas existe outro ponto na narrativa de Howard, especificamente aquela em torno da Era Hiboriana, que vai muito além de identidades pessoais, regionais ou familiares, uma identidade vinculada ao seu macrocontexto. O fato é que Howard, tal como a maior parte dos homens da primeira metade do século XX, guardada as proporções, não conseguia conceber o Mundo Antigo e Medieval (ainda que inseridos em seu mundo ficcional) fora dos marcos nacionais usuais do século XIX em diante, dos binômios Nação-Estado, Povo-Território, Entidade Política- Coletividade Social.

Assim sendo, os estígios teriam uma mesma língua, formariam uma mesma nação étnica, seriam governados por um Estado centralizado e eles formariam uma entidade política bastante estável (ainda que houvesse disputas políticas e de poder, claro), o mesmo valendo para quase toda a Aquilônia (com exceção de Pontain e da Gunderlândia, representadas como em feudos semi-independentes), para a Nemédia e tantos outros reinos ou civilizações do mundo ficcional de Conan.

O recorte espacial de sua Era Hiboriana não seria nem aquele do medievo e suas identidades fluídas e feudais e nem aquele do Mundo Antigo, com seus contrastes regionais e seus conflitos endêmicos entre centro e periferias conquistadas, mas sim o espaço delimitado do mundo contemporâneo, ainda que os povos representados nesse espaço se parecessem culturalmente com aqueles da antiguidade e do medievo.

Os estudos em torno dos "usos do passado" demonstram, portanto, o quanto um tempo pregresso, ainda que pretensamente histórico em algumas de suas bases e premissas, acaba tendo ainda mais traços contemporâneos do que aparenta a primeira vista. O lado positivo, em se tratando de uma obra ficcional com traços históricos, é que tal construto, ainda que um tanto arbitrário em relação ao passado histórico da humanidade (pelo menos o passado convencional dos livros de história), mas sincronizado com relação ao presente, gera identidades nos chamados receptores de bens culturais (leitores, telespectadores, etc.). Esses receptores se vinculam ao referido mundo apresentado na narrativa e se deliciam com as tramas, por exemplo, de um bárbaro errante entre fronteiras da civilização e barbárie, tramas essas tão distantes e ao mesmo tempo tão próximas ao nosso mundo contemporâneo.

Teia de aranha em quadrinhos

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por Ciro I. Marcondes*

Uma casa de madeira junto a um farol na praia. Um homem tremendo, em aparente estado de intensa angústia e sofrimento, espera na porta. Uma bela mulher nua o observa da janela. O homem fuma, cospe sangue, o mar bravio se agita. Ele segue neste estado tremeluzente, elétrico, impassível. Um carro sai pela enseada. Uma história de pesadelo tem início. Quem são este homem e esta mulher? O que significam estas cenas? A que tipo de interioridade se conectam? De que inconsciente óptico fazem parte?

Estas imagens fazem parte do começo de Torpor, que o pernambucano Mateus Acioli lançou em 2014 pelo selo Narval para a coleção “Franca”, que é uma espécie de carta branca para os quadrinistas mais talentosos desta geração independente expressarem sua intimidade artística, suas ideias mais livres e radicais. São imagens que anunciam um submundo onírico e oblíquo, de difícil penetração, mas de acesso livre a um fluxo de impressões fortes, revisitando os universos selvagens do sexo e do torpor da vida e da morte. Trata-se de uma história silenciosa e carregada de uma iconografia que varia entre a psicanálise e o ocultismo, sempre com uma ação desconfortável na mente.


A primeira impressão que temos ao nos depararmos com os quadrinhos de Acioly é a de um certo desdém. O nosso, pela frouxidão da narrativa, pelas lacunares arestas abertas, que parecem, de início, um recurso fácil; e o dele, pelo “desleixo” no desenho, bastante simples, minimalista, onde até o traçado dos requadros é tremido e irregular. Avançando em leituras e releituras desta obra cíclica e infernal, percebemos, porém, que esta impressão é um erro. É como acontece com outros quadrinistas de estilo elementar, como Rafael Coutinho ou o francês Johann Sfar: estes quadrinhos estão em função de um olho arquetípico. Não são nem narração, nem documento e nem poesia, mas são todos ao mesmo tempo.

A escolha por uma obra quase inteiramente silenciosa não é por acaso. A jornada de um homem em direção ao segredo do seu desejo e, por fim, à experiência da morte, necessita de um arrojo que as palavras não comportam – a não ser que estejam em estado de poesia, quando aparecem aqui –, e a imagem crua e selvagem, sem referente, aparece como uma solução. Ela liga o torpor febril do protagonista à linguagem do sonho, e a associação livre, por meio da metamorfose destas imagens, se mescla a uma grande variedade de propostas para as páginas e os quadros. O resultado é um mapa de signos de morte e desejo que se apropriam do homem em seu estado limítrofe. Imagens da natureza se mesclam a estes signos para trazer também um sentido fugidio, profano e espectral para a figura feminina, não muito longe do que Lars Von Trier fez em Anticristo.


Através de uma rica cena da experiência de quase-morte, potente como uma martelada, somos definitivamente abatidos por esta história em quadrinhos sintética e intensa. Ela enfim nos domina com seu impressionismo cheio de sinestesias, e qualquer desconfiança inicial se dissipa. As imagens finais (um sino rachado, uma caveira com pinos, um salto feminino), o que significam? Mais do que elaborar um discurso para os personagens, elas cumprem bem a função de hipnotizar e deixar em estado de torpor também o leitor. Em transe, automaticamente recapitulamos os signos do início, reabrimos a revista, voltamos reiteradamente a este entrelugar que a obra nos coloca. Um triunfo milimetricamente calculado, uma teia de aranha em quadrinhos paranoicos. Sejamos vítimas dela. 

*Publicado originalmente no jornal Suplemento Nº 03 

A iniciativa ENQUADRINHOS

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Novidade nos bancos de poeira do planalto central! Eu já venho dizendo que algo acontece na química que constrói os quadrinistas do Distrito Federal. Por aqui, paredes dos túneis das tesourinhas e passarelas por debaixo do eixão são encantadas e coloridas por pôsteres, lambe-lambes, ilustrações, grafites e stencil com poesia vagabunda. Bem ou mal, a linguagem gráfica ganha cada vez mais adeptos e os quadrinhos, enquanto forma de comunicação mais versátil e modelável do séc. 21, se inscrevem como mais uma forma de identidade da nossa jovem capital.

Pois eis que uma inciativa do grupo GIBI (que meigo), integrado por estudantes de pós-graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (incluindo o professor Lima Neto, membro da RAIO LASER), formalizou a criação de um evento que dá um passo além tanto na formulação teórica e científica quanto na criação artística em quadrinhos no território brasileiro. Trata-se do ENQUADRINHOS - 1° ENCONTRO DE QUADRINHOS DE BRASÍLIA (16 a 18 de setembro de 2015). Diferentemente de outros eventos semelhantes que também ajudam a consolidar o estudo dos quadrinhos como campo acadêmico, o Enquadrinhos, despojado, vai se focar em um formato mais breve (o pôster) e apostar no mérito de dar oportunidades iguais de apresentação tanto para o pesquisador quanto para o artista: existem as modalidades de inscrição"acadêmica" e "artística". 

Além dos trabalhos, divididos em quatro abrangentes eixos temáticos, o Encontro contará com quatro pauladas em forma de palestras, realizadas por gente de calibre tanto em produção acadêmica, quanto em editoração, quanto em realização artística: Paulo Ramos, Edgar Silveira Franco, Henrique Magalhães e Rafael Coutinho. Tudo isso ajuda a se pensar uma confluência dialógica entre artistas, pesquisadores e editores, elaborando a única sinergia possível para a continuidade e ampliação do movimento vibrante que ocorre com os quadrinhos no Brasil atualmente, mas que corre (sempre) o risco de morrer na praia graças à marginalização que o meio sofreu em todas as suas áreas de atuação desde... bem, desde sempre.

É hora de consolidar o grande momento dos quadrinhos no Brasil. Não apenas com uma morosa institucionalização e legitimação técnica e intelectual, mas sim com pensamento vigoroso, transformador, capaz de entender e modelar os processos que este meio de comunicação e arte move na sociedade. E isso não é possível sem que mercado, academia e os próprios artistas pensem conjuntamente. É o que o Encontro está propondo. Artista ou pesquisador, vai lá e se inscreve sem medo! É até 13 de julho. (CIM)


NORMAS PARA ELABORAÇÃO DE POSTER

1 – O EnQuadrinhos receberá resumos de trabalhos acadêmicos e projetos de produção em quadrinhos de inscritos ligados ao ensino superior. Os resumos aprovados serão transformados em posters para exibição durante o evento e se dividirão em duas categorias: Poster acadêmico e pôster artístico.

2 - Para que o pôster proposto aprovado seja apresentado é obrigatória a inscrição formal do autor, ou um dos co-autores no site do evento: www.enquadrinhos.net.br

3 - Cada poster poderá ter 01(um) autor principal e até 02 (dois) co-autores;

4 - Os resumos aprovados deverão ser adaptados para o formato de pôster e enviados para confecção até a data prevista (conferir nos informativos do site). O pôster impresso deve ser apresentado ao público por, no mínimo, um de seus responsáveis em um horário pré-determinado para apreciação geral e avaliação por parte da comissão científica;

5 - É obrigatório que o autor responsável pela inscrição forneça os seguintes dados: Título do Trabalho e nome de todos os autores com seus respectivos vínculos institucionais. Importante - Esses dados serão utilizados para confecção do certificado. O preenchimento incorreto é de inteira responsabilidade dos autores, e não implicará em troca de certificados posteriormente;

6- Prazo para sumissão de resumos: impreterivelmente até dia …, através do site www.enquadrinhos.net.br;

7 - Os posters devem obedecer as medidas de 120cm de altura e 80cm de largura, ou seja, obedecendo a orientação de retrato. Deverão estar expostos com clareza no poster: título, autores e instituição de origem na parte superior com o logotipo da respectiva instituição;

8 – O arquivo digital do pôster deve ser enviado no formato PDF atentando para o gerenciamento das cores em CMYK (cores para impressão);

9 - Abaixo do título e da identificação deve constar, em letra de tamanho inferior à utilizada no texto, a forma de contato com os autores;

10 - A área de apresentação deve conter as informações referentes aos objetivos da pesquisa, processo metodológico, corpo da pesquisa, discussão e referências bibliográficas (no caso de poster científico);

11- Deverá ser reservado 15 cm de altura na parte inferior do poster onde será colocada a identificação do Encontro (logotipo do encontro e das agências de fomento participantes assim como os apoiadores privados);

12 - Cada trabalho exposto receberá um certificado.

13 - Os certificados estarão disponíveis no site do evento em data que ainda será determinada.

  

Mundos de Aldebaran: dainbaía de hâmbrios

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A história de vida do amigo Marcos Maciel de Almeida se confunde com a história dos quadrinhos em Brasília. Ávido leitor de comics, este fã de Beatles, Monstro do Pântano e Warriors – Os selvagens da Noite foi fundador, junto com Nonato Natinho, da Kingdom Comics, primeira loja especializada em quadrinhos da capital brasileira. Marcos foi sócio da Kingdom até 2007, quando vendeu sua parte no negócio. A paixão pelos quadrinhos, entretanto, nunca diminuiu. Apresentei Aldebaranpara o Marcos como uma das séries mais impressionantes que eu li recentemente. Ele foi atrás da obra, leu e teve a mesma percepção sobre a HQ. Aproveitei o entusiasmo do Marcos e perguntei se ele gostaria de escrever suas impressões sobre Aldebaran. O texto – esperamos que o primeiro de muitos – segue abaixo. (PB)
por Marcos Maciel de Almeida
Dinbaía de Hâmbrios: essa estranha expressão me veio durante um sonho. Não consta nos dicionários. Apesar disso, não consigo deixar de pensar que teria algum significado para mim. É como se já tivesse esquecido o que é, ou talvez seja algo que ainda conhecerei no futuro.Usei esse exemplo para tentar explicar a sensação de familiar estranhamento que a leitura de Mundos de Aldebaran causou em mim. A HQ, escrita e desenhada pelo brasileiro Luiz Eduardo de Oliveira – mais conhecido pelo acrônimo LEO– já é publicada desde 1994 no mercado franco-belga.
Mais que uma história de ficção, o carioca LEO lançou as bases de um novo futuro para humanidade, que enfim logrou colonizar outros planetas. Em um deles, Aldebaran, os colonos foram deixados à própria sorte. Os terráqueos nunca mais retornaram a essa parte do universo, e, por essa razão, os habitantes não tiveram outra alternativa senão caminhar sozinhos.
Nessa HQ singular, os personagens são o pano de fundo para o cenário, e não o contrário. OK, Marc e Kim são dois bons protagonistas, mas parecem coadjuvantes para a geografia e a fauna dos mundos dessa nova realidade. Sobreviventes de uma vila destruída pela Mantrisse – criatura misteriosa cujas aparições servem como fio condutor da saga – a dupla tem uma química interessante, mas que parece ter sido criada somente para permitir o desenrolar de situações que, gradualmente, desvendam os mundos exóticos construídos por LEO. Em busca de respostas para sua catástrofe pessoal, Marc e Kim acabam conhecendo diversas pessoas que também tiveram suas vidas afetadas pela Mantrisse, numa investigação que os levará a outros planetas e a se deparar com seres e provações tão bizarros quanto incomuns.

A primeira aparição da Mantrisse foi bastante traumática para Marc e Kim, habitantes da vila de Arena Blanca em Aldebaran. A cidade natal da dupla foi erradicada após a passagem da criatura. Nada permaneceu de pé, e eles só conseguiram escapar com a roupa do corpo. Familiares e amigos também não foram poupados da onda de destruição. Esse foi o preço pago pelo fato de os habitantes não terem ouvido Driss, forasteiro que os tinha avisado do perigo que se aproximava. Os raros sobreviventes da catástrofe pouco a pouco se encontram, e descobrem que Driss é um homem procurado pelas autoridades de Aldebaran, planeta marcado pelo autoritarismo de líderes religiosos prontos a eliminar qualquer ameaça ao status quo. Outra personagem de destaque, ligada a Driss, é Alexa, que também tem um passado em comum com a Mantrisse. Gradualmente, o autor revela a conexão de ambos com a criatura, a partir de um encontro que mudaria para sempre seus destinos.
O contato de Marc e Kim com Driss os torna procurados pela lei, já que esse último é um fator de instabilidade para o governo, que não consegue compreender e tampouco controlar sua agenda. A baixa cooperação da dupla com as autoridades faz com que eles sejam presos. A precariedade da situação os torna mais suscetíveis a fazer alianças arriscadas, com personagens de índole duvidosa, como o velho Pad, cujo auxílio nunca vem de modo gratuito. Esse personagem mostra-se um mestre da manipulação, sempre hábil a encaminhar as circunstâncias para obter benefício próprio. Sem grandes alternativas, Marc e Kim são compelidos a seguir a orientações de Pad, o que nem sempre se revela uma boa decisão.
Com o passar do tempo, Marc e Kim conseguem reunir um grupo de pessoas interessadas no mistério da Mantrisse. Ou talvez tenha sido a Mantrisse quem os selecionou para seus propósitos secretos. O fato é que todos ficarão cara a cara com a indecifrável criatura, num encontro que marcará o conflito final com os líderes de Aldebaran e trará consequências radicais para cada um dos participantes. Esses fatos marcam o desfecho do primeiro ciclo da história.
O grande mérito de LEO é não economizar na criatividade. Sim, os mundos de Aldebaran são bastante semelhantes à Terra, mas quando o autor decide mostrar a fauna e a vegetação alienígenas, a imaginação viaja longe. Os seres dos outros planetas parecem estranhos não por sua aparência, mas pela autenticidade que parecem transmitir. Assim, pode-se dizer que seriam espécies menos extra-terrestres que comuns, talvez até menos ficcionais que reais. Quem pode dizer em que formas evoluiriam os animais de nosso planeta diante de outras necessidades de adaptação? Talvez essa seja a explicação para a sensação de familiaridade/estranhamento com as criaturas de Aldebaran: perceber que elas poderiam estar aqui em nosso plano de existência, não fossem os desígnios secretos da natureza.
Os cenários também são de tirar o fôlego. Partindo de soluções aparentemente simples, LEO cria uma ambientação inovadora, que inclui despenhadeiros verdejantes no deserto, oceanos gelatinosos e pântanos habitados por seres terríveis. O senso de composição nunca parece exagerado ou inverossímil. É uma realidade coesa e espontânea, que independe de quaisquer outros universos exteriores, como o nosso.
Quanto às ilustrações, LEO revela-se um desenhista apenas regular, que carece de estilo e marcas pessoais. Entretanto, essa deficiência é compensada por sua grande habilidade em criar seres únicos, que poderiam habitar paraísos ou pesadelos. Sua originalidade é decorrente da capacidade de produzir figuras pouco convencionais, como gorilas aquáticos, répteis humanoides e vegetais flutuantes, muitas vezes revestidos por cores inesperadas, o que confere um clima bastante lisérgico ao universo criado. Seu domínio da figura humana é inquestionável, como comprovam as inúmeras cenas de sexo que permeiam a trama.
Um dos pontos altos da narrativa são as pitadas de suspense habilmente despejadas. Aos poucos os leitores vão depositando maior confiança no autor, já que ele entrega o que dele se espera. As migalhas de mistérios são gradualmente solucionadas e prontamente substituídas por outras, para que nosso apetite não seja saciado. Aqui não há espaço para embromações ou cenas desnecessárias. A história já está pronta, bastando degustá-la. Não há o temor de que surgirão soluções previsíveis ou meros tapa buracos. O autor tem algo a contar e vai fazê-lo a seu modo, porque está seguro da qualidade do enredo. Isso não quer dizer que a história não se permita surpresas ou reviravoltas, pelo contrário. O inesperado está ali, na esquina, pronto para derrubar nossas convicções. 
Com 18 álbuns já lançados no mercado franco-belga, pela Editora Dargaud, Aldebaran teve 10 histórias publicadas em 5 edições duplas no Brasil pela Panini, entre 2006 e 2007. Se puder, não hesite em mergulhar nessa dainbaía de hâmbrios. Serão águas não navegadas, mas insolitamente conhecidas.

A fortaleza dos quadrinhos

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por Pedro Brandt

Qualquer colecionador de quadrinhos que se preze frequenta – ou em algum momento da vida frequentou – bancas e livrarias que vendem revistas usadas. É nesses estabelecimentos, popularmente conhecidos como sebos, que o leitor tem a chance de encontrar não apenas aquele quadrinho há muito tempo procurado, mas também conhecer outros tantos que, não fosse a visita a esses locais, provavelmente jamais saberia da existência.

Em tempos de Internet, a compra de quadrinhos ficou muito mais fácil. Achar um gibi antigo, raro, ou mesmo a edição do mês anterior está ao alcance de alguns cliques. Mas num passado não muito distante, “garimpar” revistas nos sebos era a alternativa mais viável. Para não dizer a única. Não foram poucas as surpresas que encontrei nesses lugares, as pechinchas pagas, as trocas honestas.

Uma banca, em especial, tem lugar cativo na minha memória afetiva da pré-adolescência. Localizada na quadra 511 Sul (Brasília), entre uma loja de materiais de construção e uma tradicional loja de colchões, a Banca Fortaleza foi, durante muito tempo, uma das principais referências na cidade para se comprar e trocar revistas.


A Fortal, hoje
A Fortal, como eu e meus amigos a apelidamos, era dividida em três partes: do lado direito ficavam os livrinhos de romance tipo Sabrina, Julia, etc., do lado esquerdo, os quadrinhos e, ao fundo, as revistas de mulher pelada (muita Playboy, Sexy, a saudosa Ele & Elae, eventualmente, até as vintage Homeme Status).

Eu estudava perto da Fortaleza e quando ia a pé ou de ônibus para a colégio era inevitável dar uma passada na banca. Naquela época, completar uma coleção era mais do que ler todas as histórias, era um investimento: ingenuamente, eu e meus amigos pensávamos que algum dia aquelas revistas, especialmente as coleções completas, valeriam uma pequena fortuna.

A Fortal era uma banca poeirenta, com pouca iluminação, e, geralmente, bagunçada. Vi baratas entre os gibis algumas vezes. Mera formalidade. Sujar as mãos é parte da garimpagem. O grande lance – pelo menos para mim sempre foi – era entrar ali sem saber o que poderia ser encontrado. A surpresa do tesouro é parte da graça. Foi assim, quase por acaso, que comprei uma edição encadernada de Batman – O cavaleiro das trevas por módicos R$ 3. E por menos do que isso, incontáveis Heróis da TV, Super Aventuras Marvel, X-Men, Wolverine, Homem-Aranha, DC 2000, Liga da Justiça, Crypta, Ken Parker, Monstro do Pântano, Lobo Solitário, minisséries, edições especiais...

Não achar nada também era comum. Aliás, mais comum do que achar alguma coisa interessante.


Tive a sorte de começar a frequentar a Fortaleza antes de um “acontecimento” que mudaria a forma como o comércio de quadrinhos era praticado no Brasil até então: a chegada, em 1996, da versão brasileira da revista americana Wizard. Quem leu a revista, tanto a gringa, quanto a nacional, deve se lembrar que, além de entrevistas, matérias e resenhas sobre o universo dos quadrinhos, ela também publicava um guia de preços de revistas. Isso fez com que os sebos abrissem os olhos para um potencial até então desconhecido e aumentassem os preços. Isso numa época em que com R$ 10 você comprava pelo menos três revistas em quadrinhos novas.

O interior da Papil
À medida que fui conseguindo os quadrinhos que queria, o acervo da Fortaleza, só renovado sazonalmente (eles vendiam basicamente comics dos anos 80 e 90), foi me afastando de lá. 

Por anos, passei ali, de carro, e pensei em fazer uma visita. E foi numa dessas ocasiões que vi a banca fechada e... chamuscada. A Fortaleza tinha pegado fogo. Fiquei imaginando os super-heróis, as musas desnudas e as mocinhas românticas, todos apertados dentro daquela lata de sardinha gigantesca, desesperados enquanto o fogo consumia as páginas que habitavam. Teria sido um ato de vandalismo? Um acidente? Um incêndio proposital para conseguir o dinheiro do seguro? Ou a Fortaleza nunca pegou fogo e a banca em chamas foi apenas um sonho?

Não foi, como me confirmou Carlos, o homem atualmente por trás do balcão da Fortaleza, quando estive lá, este ano. Em março deste ano, fui até lá perguntar. A banca realmente pegou fogo – não se sabe a causa do incêndio – há alguns anos e ficou muito tempo fechada até reabrir. Carlos me contou que a Fortaleza é uma das bancas mais antigas de Brasília e foi “fundada” há quase 50 anos por seu pai, Seu Antônio, falecido recentemente. A Fortaleza pós-incêndio é igual à sua versão anterior. Provavelmente, mais bagunçada.


A Papil, hoje
Perto dali, mais especificamente na quadra 512 Sul, encontra-se uma outra banca de usados. O vendedor, Romeu, é o mesmo cara que trabalhava na Fortaleza das antigas, da época em que eu a frequentava. Resolvi puxar conversa. Ele me explicou que é dono da Papil, como se chama a banca dele. A Papil tem poucos quadrinhos. Curiosamente, também tem pouco de seu antigo carro-chefe, as revistas de mulher pelada. Tem sim, um pouco de tudo, entre livros, revistas de todos os tipos, DVDs e também discos de vinil. Bagunçada, claro. Mas os preços, ainda bastante convidativos. Procurei, mas não achei nada que eu quisesse. Como tantas outras vezes ali (ou quase ali). Saí de mãos abanando. Por um instante, tive 13 anos outras vez.

Romeu@Papil

HQ em um quadro: Jung, Kafka e Van Gogh no mundo do quadrinho noir silencioso, por Thomas Ott

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Personagem noiado caminha por cenário noir com grana e uma arma (Thomas Ott, 2008): conheci o trabalho do suíço Thomas Ott, surpreendentemente, lendo trabalhos teóricos. Em especial o de Marion Lejeune, que trata especificamente de histórias em quadrinhos sem falas, onde o curioso caso das repetições em deslizamentos gráficos ocorre com frequência na obra de Ott. Talvez não tenha sido tão surpreendente assim, já que o trabalho do suíço tem uma riquíssima elaboração gráfica, intrigante abordagem temática e parece mais desafiador a cada página que viramos. O quadro que vemos aqui pertence ao seu último trabalho, de 2008, chamado simplesmente 73304-23-4153-6-96-8 (precedido por El número na edição argentina que me chegou em mãos, da editora Loco Rabia). Ele mostra um homem enlouquecido por poder, sexo e dinheiro após entrar em uma espiral de sincronicidades jungianas provocadas por um número (sim, o do título) anotado em um papel que ele guardou de um homem condenado à morte. Ott, um perfeccionista que trabalha com a técnica do scratchboard (que consiste em riscar sobre cera pintada de preto), exprime verdadeiro terror alucinatório ao misturar o impressionismo de um Van Gogh (de onde ele tira o delineamento e o preenchimento) com o expressionismo em noir de Billy Wilder ou Robert Siodmak, revelando uma cidade engastada e old-fashioned, com personagens solitários, perdidos e diminuídos em labirintos urbanos que parecem extraídos diretamente dos anos 40. 


Este clima paranoico e labiríntico toma conta não apenas do apelo visual da HQ, inteiramente sem falas - cuja narrativa é francamente impulsionada pelas tais repetições gráficas, que acabam se transformando em um completo vocabulário silencioso -, mas também no tema circular, que vai ganhando doses e doses de surrealismo, fazendo-nos partir da ansiedade de um Kafka para chegar ao insólito de um David Lynch. Afinal, o número 73304-23-4153-6-96-8, a partir do momento em que é adquirido pelo homem soturno, passa a se repetir a cada instante de sua vida, sempre na mesma ordem, como se em coincidências absurdas e inacreditáveis (o que fundamenta uma realidade latente, segundo a teoria da sincronicidade jungiana), levando-o, obviamente, às raias da loucura. Este quadro, já no fim do processo, em contundente splash-page, materializa o aspecto sombrio e repetitivo da HQ, conduzida em silêncio com habilidade de quem tem profunda afinidade com o universo puro das imagens e suas co-ocorrências. Verdadeira obra de arte. (CIM)


Quadrinhos pra incomodar: Belga e Berger

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Quando eu e Pedro Brandt lemos O lobisomem/A múmia  e Chuva de merda, percebemos que, por díspares que possam parecer estas HQs, havia um certo substrato comum que as unificava, e justificava que as suas resenhas fossem publicadas juntas. Estes dois quadrinhos não são apenas igualmente incômodos (em sentidos diferentes), mas trabalham releituras da própria tradição do quadrinho brasileiro. Afinal de contas, se tivemos uma longa tradição de quadrinhos de horror (especialmente nos anos 50 - aquelas coisas de Colonnese, Jayme Cortez, Colin, Shimamoto, etc.), esta geração mais underground contemporânea traz novamente o horror à tona, mas sem as ingenuidades da nossa era de ouro. O corpo, suas purulências e excrescências, se torna aqui o objeto de análise e horror. Se Belga o faz por meio de metáforas doentias, Berger usa o humor punk. É tudo lindo. E incômodo. Seguem os textos, um de minha autoria, e outro do Pedro. (CIM)


Anatomia de um filha da puta nada ordinário

por Ciro I. Marcondes

O quadrinista e artista plástico Eduardo Belga não é um filha da puta qualquer. Digo isso sem fazer qualquer julgamento e sem querer enfiar-lhe uma camisa de força moralista. Digo isso porque, ao que me parece, ele pertence à estirpe dos desgraçados mutarellianos, ou seja, a um universo de infelizes glorificados por suas paixões abstrusas, por sua dedicação implacável aos seus prazeres secretos, pela honestidade brutal com que aceitam, compreendem e reproduzem a natureza de seus próprios corpos, em um processo infinito de expiação de si próprios. Filhas da puta quaisquer somos nós, eu e você que está me lendo agora, com nossos túmulos de recalques e icerbergs de traumas submersos, buscando pequenas portas para perversões dentro de um pesado sistema interno de regras e regulações.

Estas impressões nos marcam após lermos o primeiro trabalho solo de Belga, O lobisomem / A múmia, lançado pela coleção Franca do selo Narval, de Rafael Coutinho, que tem a intenção de explorar com liberdade radical a mais profunda intimidade de seus artistas. Bem, atiçar um artista como Belga com uma proposta dessas é mexer num vespeiro de vespas marinhas, e o resultado não é apenas desconcertante. É estarrecedor. A edição é dupla, e precisa ser virada do avesso para se ler cada “história” alternadamente. Na jaqueta que serve como capa, três rostos do próprio Belga, desenhados com precisão anatômica: um deles esfacelado, atropelado; outro já reconstituído, costurado; e outro de defunto maquiado, pronto para o enterro. É um aviso fúnebre do que está por vir.

As duas histórias representam o próprio Belga como personagem de suas fantasias, ambas em fetiches extremos: em “O lobisomem”, ele parte do mote dos Stooges (“I wanna be your dog”) para, em grandes quadros panorâmicos (sem qualquer decupagem, portanto), levar a fantasia de Iggy Pop a uma literariedade gráfica obviamente perturbadora, e de maneira autorrepresentada: Belga é prefigurado como um cachorro (macho ou fêmea), e, acompanhado de frases como “pra andar por aí cheirando o cu dos outros” e “pra achar uma carniça e me refestelar nela”, ele surge como desejo cru e primitivo, sem qualquer cerimônia, como se fosse a própria antítese do pudor. Na segunda, “A múmia”, ele é espécie de cientista/taxidermista que parte de um esqueleto puro, sentado e olhando-o de frente, e, passo a passo, constrói a sua bizarra boneca erótica em cima dele, para depois consumar o ato necrofílico a partir de uma decupagem seca, desta vem em quadrinhos.


À parte a identificação óbvia com a morbidez e parafilias, em um estilo gótico atualizado (a associação com monstros “clássicos” folclorizados pela literatura vitoriana, como o lobisomem e a múmia, não é à toa), sobressai-se, na arte de Belga, sua visão refinada de anatomista. Como se pode ver em sua mínima preocupação com a decupagem, a narrativa e a mise-en-pageem si, ele não está muito interessado em fazer quadrinhos. Suas dimensões referenciais são ainda mais longínquas. Logicamente, poderíamos parar nas menções a Mutarelli ou Crepax, mas eu gostaria de recuar mesmo às lições de anatomia de Da Vinci, a Courbet, Francis Bacon ou Lucien Freud. Está evidente que, para Belga, a expressão máxima da arte reside na representação do corpo, em sua transubstancialidade, seu eterno estado de metamorfose, casulo para um estado libidinal permanente do qual ele não é mero reflexo, mas sim simetria, duplo consagrado no corpo do próprio mundo. Daí o até mesmo delicado e meticuloso trabalho em ilustrar passo a passo, em “O lobisomem”, a morte do cachorro a partir da evisceração, e a reconstrução do corpo, a partir das dinâmicas do desejo, por meio da taxidermia em “A múmia”. Mesmo o leitor pode fazer as vezes de “Dr. Frankenstein” ao destacar, do encarte, partes de action figures (“bonequinhos”) e construir, por si próprios, suas versões dos corpos do lobisomem e da múmia.


Conversando com Belga sobre sua obra repulsiva e genial, veio a confissão de que havia, neste trabalho, a ideia de dialogar também com o pop, com estes monstros imaginários, com estas imagens dos contos de terror. Repensando o quadrinho após ouvir este relato, percebi o quanto isso fazia sentido se pensarmos que o pop (seja na figura do “lobisomem juvenil” de O garoto do futuro ou na múmia de Brandan Fraser), pudico, anódino e asséptico (tal qual a chamada “cultura nerd” que nos assombra hoje em dia), precisa deste empurrão em direção à filhadaputagem de Eduardo Belga para abrir os seus olhos e perceber que seus ídolos caídos são feitos deste mesmo material espúrio e em putrefação.

Assim, torna-se educativo ver a múmia, originalmente concebida pelos antigos como valise para a vida eterna, se transformar em objeto de necrofilia (ressaltando as pulsões de vida e morte freudianas). Da mesma forma, o cachorro, hoje a coqueluche de brinquedo de uma burguesia assustada demais para encarar sua própria reprodutibilidade, retorna à sua forma instintiva, canibal e incestuosa, num frenesi libidinoso baixo demais para podermos nos recordar que isso também está dentro de nós. Não à toa, isso me lembrou o lobisomem estuprador com que Coppola representou o Drácula em seu filme. Mas Belga foi além. Sua filhadaputagem foi desnudar estas relações literalmente até os ossos, e este ultrajanteé a matéria prima com que ele constrói sua arte.

Gostaria de terminar este texto devolvendo outra canção punk ao Belga, pensando em sua própria hipotética resposta a estas palavras. Vamos de Misfits:

an omelet of disease awaits your noontime meal
her mouth of germicide seducing all your glands
i ain't no goddamn son of a bitch
you better think about it baby



O Lobisomem/A Múmia


De Eduardo Belga. 56 páginas (cor/p&b). Lançamento: Cachalote. R$ 28 

Poesia de banheiro elevada à arte

por Pedro Brandt

Gostar de Chuva de merda não é para qualquer um. Calma! Estou me referindo ao título da coletânea de quadrinhos de Luiz Bergerlançada recentemente em parceria pelas editoras Gordo Seboso e Ugra Press.

São 52 páginas (produzidas entre 2011 e janeiro de 2015) de escatologia nas quais convivem diarreias, caganeiras, flatos, coprofagia, sexo doentio, canibalismo, cocô, doenças venéreas, vômitos, infanticídio, fezes, satanismo, gente feia, demência, zoofilia, excrementos, cerva vagabunda, drogas, sangue, suor e vísceras.

Pode não parecer, mas trata-se de um trabalho fino. Explico: Berger está naquela categoria de autores que conseguem fazer o grotesco palatável, convidativo aos olhos, tal qual Crumb, Marcatti, Ed “Big Daddy” Roth e Basil Wolverton– todos, imagino, referências no trabalho dele. Berger aplica volume e elasticidade com muita destreza em seus desenhos, e consegue deixar tudo muito sujo e carregado na medida. O resultado é visível o suficiente sem parecer limpo e sem nublar a compreensão das páginas, todas muito bem-construídas, com angulações e enquadramentos diversos. A plasticidade dos desenhos e a quase fofura da aparência dos personagens – por mais paradoxal que isso possa parecer – mais atraem do que repelem. Quem se lembra da Gang do Lixo sabe do que estou falando.

Ajuda a digestão o sempre presente alívio cômico das HQs. É quase como se não estivéssemos lidando com assuntos tão intestinais. A sensação é diferente, por exemplo, de quando lemos quadrinhos bizarros e carregados de uma carga psicológica tensa, opressora, que exigem mais estômago, como os mangás deSuehiro Maruo e as obras antigas de Lourenço Mutarelli. Com o grotesco suavizado, por assim dizer, cabe ao leitor se divertir – sem peso na consciência – com as situações repugnantes apresentadas pelo autor.


Como dito anteriormente, a bizarria e o ultraje está por todo lado. Enquanto o carismático Rato Robson se lembra com afeto da gatinha que lhe passou uma DST, o Dr. Zárgov nos apresenta seu plano de dominação mundial. Seu Raimundo, por sua vez, entra numa espiral de loucura, e Juan, o pervertido, nos apresenta uma galeria de freaks. Sobra até para o marinheiro Popeye, Luluzinha e Bolinha. Detalhar as tramas – curtas, de rápida leitura – seria estragar o prazer de quem decidir se aventurar com Chuva de merda.

As histórias funcionam muito bem, especialmente pela arte e pelo domínio da narrativa gráfica. Mas não dá pra não perceber que os argumentos têm algo de lugar comum, como se já tivéssemos lido essas histórias antes ou as escutado na mesa de um bar qualquer. Isso, entretanto, não diminui a qualidade do trabalho de Berger aqui compilado. Pelo contrário. Elevar a poesia de banheiro ao estado de arte é tarefa para os realmente talentosos.

Chuva de merda

De Luiz Berger. 52 páginas (16 coloridas). Lançamento: Gordo Seboso e Ugra Press. Tiragem: 500 exemplares. R$ 18.

Batman e seu pretenso realismo

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por Marco Collares

Em primeiro lugar, gostaria de enfatizar que gosto muito do personagem criado por Bob Kane, e que constantemente leio e releio HQs de Batman, incluindo o arco da Era de Prata escrito por Denis O'Neil, o não menos relevante O cavaleiro das trevas, de Frank Miller, a obra cult A piada mortal, de Alan Moore, como também o igualmente impactante Asilo Arkham, de Grant Morrison.

Considero todas as obras mencionadas verdadeiras referências do gênero super-heróis e não tenho dúvidas de que tais obras auxiliaram na iconização do personagem, conferindo a ele uma tonalidade quase mítica. Essas HQs foram fundamentais na constituição de um rico imaginário para os leitores, não somente pela excelente qualidade das tramas, como também por apresentarem o famoso arquétipo do vigilante detetivesco pulp em um mundo mais próximo ao nosso, mais palpável, mais cotidiano e atual (em seus respectivos contextos), ou seja, por mostrarem ações e relações mais plurais, no sentido de apresentarem os defeitos e as obsessões de Bruce Wayne e uma série de elementos humanos que antes eram camuflados ou suprimidos pelas cenas de sopapos regados a onomatopeias policromáticas, carros góticos bizarros e equipamentos ao estilo Mandrake.

O mesmo vale para o excelente filme O cavaleiro das trevas, de Christopher Nolan, e seu senso de pretenso realismo e pragmatismo em torno do ambiente ficcional e dos coadjuvantes do Batman, incluindo o famoso vilão Coringa e sua lógica hobbesiana no que tange ao instinto de sobrevivência imanente a todos nós. Fora todo o senso estético do filme regado a uma ação e a uma fotografia que deixam de lado o excesso de computação gráfica para dar lugar a cenários, modelos, fios, máscaras, efeitos de câmera e afins, tudo com o propósito de alcançar um impacto mais "realista", segundo palavras do próprio diretor em entrevistas.

Nolan e seu pretenso realismo

Pois bem. A questão que coloco se resume a esse "pretenso realismo inerente" em torno do Batman, um realismo comumente apregoado por artistas, roteiristas, leitores e aficionados, à exaustão. Mais de uma vez perguntei a amigos, conhecidos e fãs do personagem sobre filme de Nolan e a reposta usual se deu em torno da frase: "gostei porque achei realista". O mesmo vale para opiniões de botequim no que concerne ao personagem em si. Quantas opiniões seguiam a cartilha do "eu gosto muito mais do Batman do que do Super porque ele é mais realista, porque não passa de um homem comum".

Em primeiro lugar, o fato de um personagem ser aparentemente próximo a um homem comum não o faz ser necessariamente realista, isso porque "ser humano"é algo que vai além das características fisiológicas de nossa natureza mortal (como daquele sujeito que em todos os sentidos parece um mero mortal, mas que possui um senso moral sobre-humano, no sentido de ser incorruptível em qualquer situação). Em segundo lugar, porque não basta existirem personagens aparentemente comuns para que uma obra seja realista, como bem comprova o conto Alice no país das maravilhas e tantos outros personagens como a gente que visitam lugares completamente míticos, fabulosos e fantasiosos (por acaso um homem comum não ficaria completamente insano no País das Maravilhas, tal como ficou o Chapeleiro Louco?). Em terceiro lugar, porque, apesar de parecer humano, Batman, em todas as mídias onde foi representado (incluindo a caricata série de TV dos anos 1960 estrelada por Adam West) fez coisas que pessoas comuns jamais fariam, tais como lutar com os punhos e diversas bugigangas contra criminosos munidos com armas de fogo, estando envolto em uma capa e travestido de morcego. Desculpem por escrever e acentuar o óbvio, mas sobreviver durante anos esmurrando criminosos pelos becos escuros de uma cidade fictícia chamada Gotham está longe de ser algo palpável e realista segundo critérios válidos e racionais.

Batman seria tão realista quanto James Bond, Sherlock Holmes, Indiana Jones, Rambo e todos os demais personagens que apenas se parecem com pessoas comuns à primeira vista, mas que fazem coisas fisicamente e intelectualmente impossíveis para qualquer um de nós, mortais do mundo real. Se pararmos para pensar um pouco, concluiremos que é mais próximo da realidade um alienígena super-humano vergando uma ridícula cueca por cima das calças (até porque não sabemos como é a moda em Krypton) do que seres humanos sem poderes quaisquer realizarem tudo aquilo que todos os personagens citados acima conseguem.

Rambo: tão realista quanto Batman

Isso sem falar no fato de que nenhum filho de qualquer mega empresário do mundo real se tornaria, sob quaisquer circunstâncias reais, o Batman, mesmo após a morte traumática dos pais em um beco lúgubre e sujo. Isso é facilmente comprovado pela própria realidade que nos cerca: existem milhares de pessoas no mundo real, filhos de empresários ou não, que perderam entes queridos em assaltos e crimes quaisquer e nenhum deles, sob quaisquer circunstâncias ou situação se transformou em algo próximo ao Batman pelo que se sabe. Ou seja, realismo é aquilo que em situações reais acontece e não aquilo que em situações reais não acontece.

This is real life, bitch!
Estou falando aqui de um sujeito trajando roupas de morcego que literalmente sai saltitando pelos arranhas céus de uma grande metrópole ou mesmo que se locomove velozmente pelas vias públicas em um carrão estranho e estilizado. Nem vale argumentar que existem, pelas vielas de alguma grande metrópole, indivíduos fantasiados como o Batman. Caso existam, bem, tais indivíduos devem ser completamente incompetentes no combate ao crime (eu nunca vi no jornal qualquer manchete do tipo, "famoso gângster nova-iorquino foi preso pelo vigilante mascarado denominado Mosca") e provavelmente se tornaram vigilantes após leitura de alguma HQ dessa natureza (casos excepcionais em que a realidade imita a ficção).

Realmente não existe nada de realista no conceito do Batman enquanto personagem ou metáfora da vida urbana mortal das grandes cidades, nada de realista no conceito de alguém vergando um collantcinza de morcego enquanto combate os mais perigosos delinquentes com equipamentos diversos e ultrassofisticados para levá-los à justiça. O que temos é um mero cenário que lembra em alguns aspectos o mundo real, um protagonista ficcional voltado para entreter crianças e adolescentes a partir de aventuras irreais, no máximo passando por situações que lembram alguns aspectos da vida real.

Normalmente obras realistas tratam de pessoas e temas comuns ao extremo, do cotidiano, de relacionamentos e situações usuais, ainda que representem personagens e obras de ficção. Podemos chegar ao mais próximo do realismo em um documentário, uma foto ou sequência de fatos narrados, um texto de cunho puramente descritivo, uma narrativa de acontecimentos, talvez um diário de vida, uma entrevista de história de vida. Mas, mesmo assim, são todas apenas representações da realidade, claro, uma visão que toma certas partes pelo todo, visto que nenhuma obra consegue e nem se pretende abarcar o todo real do mundo e das coisas reais do referido mundo (uma leitura da obra do filósofo Michel Foucaultou mesmo do historiador Roger Chartier poderia auxiliar nas divagações inerentes entre realidade e representação do real).

Batman e a eterna obsessão pelo realismo
Mesmo assim, muitos argumentarão que em paralelo a outros tantos personagens das HQs, o Batman seria um dos mais realistas. Como apontado mais acima, eu já expressei minha opinião que isso não se confirma de fato, que o personagem está longe de qualquer realismo em suas premissas fundamentais, tratando-se sim de um conceito eminentemente infanto-juvenil. O que acho do Batman, e considero que o filme de Nolan fez isso como ninguém, é que ele pode ter um alto grau de verossimilhança se bem estruturado e trabalhado narrativamente com esse propósito e isso não significa ser realista, mas sim ser mais palpável dentro de seu absurdo ficcional, de sua irrealidade inerente.

Em termos conceituais, o termo latino veri similis (de onde advêm a palavra verossimilhança), tratado por retóricos e oradores do porte do político e senador romano do século I a.C, Cícero, significava algo que, em dada situação, poderia ser aproximado ao real, ainda que não fosse a realidade concreta, mas sim um espelho do real, mesmo que a imagem representada não fosse a coisa em si e até pudesse ser distorcida ou invertida. Verossimilhança significava que "se aconteceu tal coisa, em dada situação, poderia acontecer isso ou aquilo a partir do fato e isso após uma análise sobre o que se sabia sobre o assunto em questão, ainda que fosse algo inexistente e irreal".

Assim, o que era verossímil não era necessariamente verdade ou realidade enquanto tal. Como bem afirmou Aristóteles sobre o assunto, "seria verossímil que namorados se amassem e inimigos se odiassem, ainda que não fosse verdadeiro ou real que isso acontecesse em todos os casos ou em algum caso específico, pois existiam namorados que em dadas situações se odiavam e inimigos que se amavam".

Em outras palavras, um sujeito do porte do Batman não seria considerado realista em hipótese alguma na visão de qualquer orador grego ou latino de renome e nem para qualquer um de nós que saiba minimamente a diferença entre realidade e representação, verdade e verossimilhança. O que posso sustentar com tudo isso é que, em algumas obras, principalmente no supracitado filme de Nolan, Batman e seu ambiente ficcional, incluindo muitos de seus coadjuvantes, possuem certa verossimilhança.

Ora, apesar de Batman não ser verdadeiro ou real, apesar de ser irreal qualquer ideia de um sujeito fantasiado de morcego lutando contra o crime, é verossímil na obra de Nolan, que, dada a ideia de que isso seria a tônica de uma obra ficcional, tal personagem irreal faça, em dada situação, coisas palpáveis e verossímeis segundo o que se apresenta na obra. Em outras palavras, o filme do Nolan se utilizou de alguém irreal ao extremo, o Batman, e deu-lhe coisas palpáveis para ele segundo graus elevados de verossimilhança, dando um aspecto apenas pseudo-realista às narrativas, tudo isso auxiliado pelo fato de os espectadores que viram o filme confundirem conceitos como os de verdade, realidade, representação e verossimilhança.


Nolan e outros tantos roteiristas que apresentaram doses de pseudo-realismo ao Batman estavam afirmando que, dado o absurdo de tudo isso, tal conduta ou ação seriam verossímeis em dada situação, ainda que em essência toda a situação envolvendo um sujeito vestido de morcego seja irreal ao extremo. Diversos exemplos podem ser citados a partir do filme de Nolan, como a pretensa realidade de pânico coletivo apresentado ao longo da narrativa ou o experimento sociológico do Coringa ao final do filme, ou mesmo uma entrevista em que um promotor público, Harvey Dent, afirma ser na verdade o Batman.

A partir dessa grande confusão conceitual do que seja realismo e verossimilhança, muitas pessoas passaram a tratar algo irreal como papável sob diversos critérios realistas, esquecendo-se de que se trata de algo palpável apenas sob critérios verossímeis. Mas vejam, por poder ser verossímil, e isso apenas em algumas obras ou arcos, Batman é um personagem bastante interessante, talvez muito mais próximo de arquétipos junguianos do que qualquer outra personagem do universo ficcional de super-heróis.

Ano um, de Miller, é uma das obras mais verossímeis envolvendo Batman
O Batman representado como um sujeito real se tornou uma tradição dos quadrinhos, seguindo a onda dos escritores nerds que passaram a figurar nas grandes editoras de quadrinhos a partir do final da década de 1960. Autores como Roy Thomas, Denis O'Neil, John Byrne, Cris Claremont, Frank Miller, dentre outros, se tornaram famosos e reconhecidos ao trazerem toques de verossimilhança a personagens de quadrinhos mainstreamde super-heróis, ainda que a tradição desses quadrinhos tenha difundido a fórmula de que se tratava de narrativas realistas ou pior, que os personagens eram realistas em essência.

Esse engano se deu por motivos variados e cito aqui algumas conclusões de Grant Morrison sobre o assunto na obra Superdeuses. Por um lado, afirma o roteirista inglês, se trata de uma teimosia do mundo adulto que se nega a aceitar a distinção entre fantasia e realidade (diferentemente das crianças, que brincam de faz de conta sem culpa, sabendo que tais brincadeiras não são reais e nem devem parecer assim). Por outro lado, desvela a vontade de um público adulto que cresceu lendo HQs voltadas para crianças e adolescentes e que quer continuar com seu hobby de leitores assíduos sem a necessidade de explicarem os motivos de ainda serem leitores de um gênero de fantasia. Além disso, tal movimento se deve a diversificação e ampliação do público consumidor das HQs da indústria cultural mainstream ao longo dos anos 1960-1970, visto que as grandes empresas de quadrinhos procuravam maximizar seus lucros vendendo narrativas infantis para adultos que, em razão de trabalharem, tinham mais poder aquisitivo.

Morrison e sua leitura de Batman

O fato é que o ethos do realismo nas narrativas de super-heróis permaneceu, e muitos leitores, espectadores e fãs acreditam piamente nessa premissa, qual seja, de que pessoas de collants contra o crime podem ser realistas se representadas em situações verossímeis. Como uma mera carapaça, o realismo nos super-heróis não passa disso, sugerindo apenas uma fórmula para vender narrativas de um gênero eminentemente infanto-juvenil. De minha parte, saber dessa distinção entre realidade e verossimilhança em nada muda meu gosto pelos quadrinhos de super-heróis, sejam aqueles mais escapistas ou mais verossímeis. Ao contrário.

Tal como afirmado por Mark Waid e Kurt Busiek em diversas entrevistas, eu aceito o gênero de super-heróis em sua natureza eminentemente infanto-juvenil, seu irrealismo inerente ou seu pseudo-realismo regado a verossimilhança. Aceito, me divirto com algumas narrativas e sigo adiante com meu hobby. O que gosto de Batman não é o fato de ele ser real ou de expressar qualquer espelho do mundo real, mas por ser verossímil às vezes em sua irrealidade inerente, por ser eminentemente ficcional e incrivelmente mítico.

Redundância e obsessão: reminiscências sobre Homem Animal de Grant Morrison

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Olá pessoal. Meu nome é Lima e já colaborei com a Raio Laser em alguns textos no passado. Este agora é meu primeiro ensaio de uma nova e promissora fase de intensificada participação na Raio e que pretende ser marcada por uma fronteira bem anuviada quanto as fontes quadrinísticas. Quem já leu meus textos anteriores percebeu que tenho um pé firme no quadrinho “mainstream” e, de fato, considero urgente promover uma leitura crítica do que se passa nas bancas de revista atuais. Há os que prefiram nem passar perto da massa amorfa e sem graça que se fabrica nas grandes editoras do gênero. O que considero uma atitude razoável. Mas a força que estes quadrinhos industriais exercem no imaginário atual, e os problemas que desencadeiam, me fazem ver na Raio Laser um espaço perfeito para escarafunchar este material de maneira crítica contribuindo para que um eventual leitor das “grandes editoras” possa ter despertada uma curiosidade para com outros gêneros e matrizes de produção de HQ’s. Sendo claro, boa parte do meu objeto de discussão vai ser o quadrinho de grande tiragem, o que inclui o gênero super-herói ou o Mangá, entre outros tantos. Aqueles que não suportarem este tipo de quadrinho podem ignorar os textos com a minha benção. Findo esta breve apresentação com um bem-vindo a todos e vamos logo ao que interessa. (LN)


As histórias em quadrinhos nos capturam pelo olhar. É uma obviedade dizer isso, mas é sempre saudável lembrar que, na expressiva dança entre palavra e imagem que transcreve a leitura de uma HQ, é a imagem que toma a dianteira na sedução. É depois que o olhar engole o anzol pictórico que a narrativa encontra a abertura para desfraldar sua trama, seus dramas e acontecimentos. Mesmo que não tenha palavras, uma HQ vai ser formada de uma sequência de imagens que encenam um narrar ordenado que se desfralda da direita para a esquerda (no ocidente). Uma página de quadrinhos é, portanto, uma ou mais imagens que se submetem a uma narrativa que não é própria de seu estatuto. Ou melhor, a narrativa linear impregnada de imagens da página de quadrinhos instaura um estatuto próprio que é fruto de uma síntese entre a linearidade narrativa e a espacialidade visual.

Volto agora alguns 20 anos no passado. As bancas de revistas dos primeiros anos dos anos 90 viviam um momento de glória. O quadrinho nacional encontrava um fôlego econômico para se proliferar e as HQ’s mensais das grandes editoras, sob o monopólio da então soberana editora Abril, chegavam em fases novas e autorais graças à chegada no Brasil da conhecida invasão britânica. Alan Moore se consagrava como respeitado criador do meio. Neil Gaiman já causava frisson com a tessitura narrativa de seu Sandman e uma segunda leva de escritores aportava nas praias brasileiras. Nomes como Jamie Delano, Peter Milligan e um criativo escocês chamado Grant Morrison.

No início dos anos noventa o autor destas linhas estava na sexta série. O hábito de ler quadrinhos me permitia descobrir verdadeiros esconderijos em minha escola para ficar em paz. As HQ’s não prestigiavam deste respeito artificial que pode se ver hoje em dia, e ler um gibi no recreio só era possível longe das pessoas “normais”. Num destes esconderijos, encostado numa grade de ferro e sentado desconfortavelmente no chão de paralelepípedos que separava o pátio do recreio das quadras de educação física, minha relação com as histórias em quadrinhos, e consequentemente com o mundo das imagens, mudou completamente. Lendo uma edição do extinto mix DC 2000, especificamente uma das sempre impressionantes histórias do Homem-Animal de Grant Morrison, fui tomado por uma imagem que era ao mesmo tempo um lugar-comum e uma epifania.


Esta cena do personagem Buddy Baker o retrata no ápice de uma viagem de autoconhecimento regada a peyote ritual. Prometendo respostas para seu passado confuso e seu presente surreal, um Doutor indígena chamado Highwater oferece respostas através de um ritual shamânico. Como resultado deste procedimento, Buddy recebe três revelações, sendo que a terceira é a revelação da existência de uma outra dimensão acima dele que não apenas observa o que se passa em sua vida, como sua vida se revela como um simples entretenimento. Resumindo, naquela manhã, no intervalo da minha escola, um super-herói se tornou ciente da minha presença e do impacto que ela causa em sua vida. O mundo para mim nunca mais foi o mesmo e esta imagem tornou-se uma obsessão.

Cabe aqui uma melhor contextualização deste momento na história do personagem. Afinal, este texto não pertence à seção HQ em um quadro. Conhecido por seus roteiros “viagem”, ao trabalhar para a DC Comics, Morrison escolhe o personagem mais esquisito que estava à disposição. O Homem Animal era um personagem do quinto escalão da editora. O “homem com poderes animais” ganhou seu dom ao ser exposto a uma radiação alienígena e, sem nenhuma história memorável fora a participação em outros títulos como a participação especial do mês, terminou seus dias ao lado dos Heróis Esquecidos, um grupo de heróis de igual celebridade nula. Com a reformulação da editora, durante a saga Crise nas Infinitas Terras, Morrison recebe carta branca para fazer o que desejasse com o personagem e o transforma em um herói ecológico e pai de família que encara a luta contra o crime como um trabalho normal como outro qualquer. Suas aventuras esquisitas o colocavam contra soldados poetas e obras de arte de destruição em massa, gênios do mal suicidas, deuses africanos cancerígenos e messias coiotes que se recusavam a morrer. Era a alucinação da era de prata elevada a níveis concentrados de lisergia. É para dar conta deste cotidiano dadaísta que o Homem Animal decide embarcar no ritual que termina por lhe revelar sua natureza como ficção. Ao se defrontar com o nonsense absoluto que é a morte, o herói adentra neste labirinto da meta-linguagem até encontrar com o responsável por suas desgraças: Grant Morrison.

Retornando à imagem. Algumas páginas antes de olhar para mim, Buddy está discutindo com ele mesmo. Trata-se da versão do Homem-animal de antes de Crise, aquele dos Heróis Esquecidos. Ele revela o segundo segredo para Buddy, o de que houve outro Buddy Baker que foi apagado para que o atual vivesse. É este Homem-Animal, devidamente vestido em seu uniforme adornado com uma gigante letra “A”, que revela minha presença para Buddy. E é a partir da visão de minha presença que o personagem decide ir à busca de seu criador.


Retornando à imagem. A metalinguagem é usada nos quadrinhos desde seus primeiros anos e aparece abundantemente nos quadrinhos de humor até os dias de hoje. De fato é um recurso retórico de efeito fácil, mas, em mãos hábeis, a metalinguagem ainda consegue exercer seu assombro poético. Esta imagem é, como todo requadro de uma página de HQ, uma janela. Mas Morrison abre a janela. Escancara. O olhar de espanto de Baker, representado de maneira honesta pelo artista Chas Truoug, se eleva em direção ao leitor e o puxa para dentro. É um vórtice de identidades, de arbítrios que se querem livres sem saber que seguem um roteiro. Tornamo-nos personagem direto da revista e por uma fração de segundo somos uma criação de Grant Morrison. Muito esperto senhor Morrison. Entretanto, havia algo mais, e, na busca deste algo mais, passei a seguir o senhor Morrison aonde quer que ele fosse. Mas não foi nele que encontrei respostas. Pelo menos não encontrei respostas diretas.

Não foram os limitados componentes estéticos da imagem que repercutiram na minha alma naquele momento. Como desenhista, Truoug é bastante limitado e exerce sua função de maneira bem burocrática e direta. Sua construção pictórica do rosto espantado é pobre quando comparada à imensa miríade de desenhistas que trabalhavam na indústria naquele período pré-Vertigo e esta dobradinha “bons roteiros X arte medíocre” vai ser uma bandeira que viria a se tornar o selo de quadrinhos adultos da DC Comics. A razão de minha obsessão residia no significado daquele momento na narrativa do personagem (o que estava sendo representado nas ações e gestos dos personagens), e a maneira com que este momento é foi passado ao leitor (as escolhas linguísticas que foram tomadas ao criar a cena). Interpretando esta imagem sob a luz das pesquisas empreendidas por Gilbert Durandé possível perceber que o efeito “mágico” da cena é resultado de suas características enquanto imagem simbólica.

A palavra “símbolo” vem do grego sumbolon que, assim como o hebraico mashal e o alemão sinnbild, implica uma reunião de duas metades. No caso do símbolo, uma reunião entre significante e significado. Significante é a parte visível do símbolo e esta possui 3 dimensões concretas: uma dimensão cósmica – que reproduz o que está visível a sua volta; uma dimensão onírica – que constrói sua imagem a partir dos gestos fantásticos de nossos sonhos e fantasias e  esta intimamente ligada à nossa biografia pessoal; e uma dimensão poética – construída com a matéria prima da linguagem em seu momento de maior ímpeto. Se a arte de Truoug corresponde a dimensão cósmica, então a narrativa visual da imagem vai corresponder a dimensão onírica, e a metalinguagem corresponde à dimensão poética deste requadro simbólico. Como se pode ver, o lado significante do símbolo é infinitamente aberto em suas possibilidades figurativas. Mas é próprio do símbolo que este significante só se refira a uma “qualidade” não figurável.

Esta “qualidade” não figurável é o componente do outro lado do símbolo: o significado. Como o significante, o significado também é infinitamente aberto. Por não ser representável, o significado se espalha por todas as ordens de coisas e dimensões. A dimensão do significado é epifânica. No símbolo, significado e significante estão sempre divergindo, sua existência é uma aproximação feliz e fugaz. Esta inadequação só é superada pela redundância. A ação de sempre retornar a imagem simbólica de forma a reinterpretá-la, a corrigi-la e complementá-la. Como o fizemos em parágrafos anteriores. Da mesma forma este texto é a volta mais recente de uma redundância que minha alma executa desde os anos 90 em cima da imagem principal deste texto. Não à toa Durand descreve a redundância da imagem como com a imagem de um solenoide.

Vimos que a redundância exercida sobre a imagem do HA é baseada nas dimensões poética e onírica do símbolo que engendra. Durand estipula que as redundâncias estabelecidas por meio de relações linguísticas são conformam símbolos mitológicos, enquanto que as redundâncias que emergem dos gestuais oníricos e subjetivos prescrevem os símbolos rituais. A dimensão cósmica, a representação dos fenômenos do mundo, engendra múltiplas redundâncias. Quando afirmamos que a arte de Truoug é “pobre” esteticamente é porque são poucas as redundâncias possíveis no espaço que ele encena sua representação em comparação, por exemplo, com uma página de Little Nemo. Os símbolos destas redundâncias são os símbolos iconográficos.
Mas, voltando à imagem, e voltando aos quadrinhos. A complexidade da imagem simbólica é grande. E ainda mais complexo é o simbolismo em uma página de quadrinhos. Na HQ, diferentes tipos de símbolos se revezam na construção da narrativa. O próprio quadrinho pode ser considerado uma narrativa simbólica onde dois lados de propriedades distintas se encontram ligados de maneira indissociável. Mas no que tange à imagem em questão, identifico dois simbolismos originários de redundâncias distintas que exercem seu efeito sobre mim. O símbolo poético que a metalinguagem representa e o símbolo mítico do encontro que a imagem exprime.

Como vimos, Buddy Baker se encontra na imagem no ápice de um encontro epifânico. É uma jornada dentro de sua própria psique. Neste embate ele encontra consigo mesmo em sua versão original de Homem Animal. E este o mostra a verdade de sua condição como ficção. Na obra de Morrison o mito do labirinto é uma imagem persistente. Até em sua recente passagem pelo título de Batman, concluída em 2013, encontramos referências diretas ao mito e seus componentes: 


No mito do Minotauro, o herói Teseu adentra o labirinto para salvar os atenienses mandados para ser pasto para o monstro com cabeça de touro e corpo de homem. Ao se encontrar com o vilão, Teseu usa de uma arma proscrita para matá-lo o que acaba por amaldiçoar seu destino heroico. O que Teseu encontra no fundo do labirinto é a imagem de seu próprio instinto animal reprimido para o subconsciente, mas, ao eliminá-lo, torna-se Minotauro. Seu valor heroico se inverte. O herói vira monstro e o monstro torna-se vítima. Buddy Baker se encontra com seu “eu” em um estado mais primário, original. Um homem com poderes animais. Um Minotauro encarcerado no labirinto à espera de seu libertador. Mas tudo que encontra é Buddy Baker, seu lado humano, sua identidade secreta. A imagem do homem sem sua parte animal. E, sendo vítima do mito, Buddy pouco pode fazer para salvar seu oposto animal. Mas antes de morrer, o Homem Animal clássico aponta para a saída do labirinto. No mito original há apenas duas saídas do labirinto, pelo fio de Ariadne ou por cima, pelos céus. Esta é a estratégia utilizada por Dédalo, o inventor do labirinto, e seu filho para escaparem do encarceramento ao qual foram condenados por ajudar Teseu. Olhando para trás e para cima, Buddy vê não sua liberdade, mas enxerga aqueles entes aos quais sua liberdade é submetida. Em uma indústria onde a qualidade do que é produzido fica em terceiros e quartos lugares, as possibilidades poéticas do personagem são severamente limitadas pelas intenções do público alvo. Neste vislumbre de liberdade, nós leitores nos tornamos personagens da história. Submetemos-nos às mesmas imposições às quais a vida de Buddy sofre. Como Teseu e o Minotauro, nós trocamos de lugar com Buddy Baker.

Esta troca é expressa pelo símbolo poético representado pela metalinguagem. Uma meta linguagem extrema, radical, impetuosa. A metalinguagem é a ação de abrir a cortina. De rasgar a fina película que separa a cena de seu público. É um ato de trazer o leitor para dentro do mecanismo de construção de uma escritura e fazê-lo perceber seu funcionamento. Nesta imagem que analisamos este “trazer para dentro” se torna queda. Torna-se um choque que derruba, pulveriza a fantasia e a espalha pela realidade misturando uma com a outra. E assim permanecem ligados até o final da história, quando Grant Morrison, o próprio Dédalo, entra em cena e revela para Buddy a natureza de sua existência.

A redundância da imagem simbólica, seu padrão circular, vai encontrar paralelo na noção de eterno retorno que a imagem possui. Diferente da palavra, a imagem não tem ordem de leitura. Ao se deparar com uma imagem, o olhar se fixa em um ponto que lhe seja significativo à subjetividade do observador e este passa a construir e ler a imagem a partir de visadas cíclicas que sempre retornam a este ponto determinado, muitas vezes sem razão lógica aparente.

Em uma narrativa em quadrinhos, este eterno retorno se submete à linearidade da leitura aos moldes da palavra. Mas isto não impede que seus símbolos efetuem redundâncias. E Grant Morrison é bem ciente disto. No título que vai trabalhar paralelamente ao Homem-Animal – Patrulha do Destino– Morrison recria o personagem da era de prata, Homem-negativo, na forma de Rebis. Uma entidade andrógina de corpo enfaixado que emite uma versão negativa de si mesmo para fora de seu corpo. Rebis é o nome do casamento alquímico entre dois elementos distintos, processo que é usado por Jung para descrever sua noção de símbolo e que vai ser posteriormente retomado por Durand. O personagem Rebis também é reconhecido como o Ourobouros: imagem da serpente que engole a própria cauda. Símbolo de eternidade e do fluxo circular do eterno retorno. É a imagem e sua redundância encarnados em um único personagem. Também o Ourobouros é um símbolo muito usado por Morrison. Mesmo em sua recente fase em Batman, o escritor insere o conceito de Ourobouros na forma de uma fonte de energia que nunca se esgota, como um moto-perpétuo. 

A propriedade redundante da imagem também vai ser representada, em Patrulha do Destino, na figura de um quadro arcano que suga para dentro tudo o que está fora. No arco “A pintura que engoliu Paris”, o bizarro grupo de desajustados que compõe a Patrulha do Destino se vê sugado para dentro do quadro junto com a cidade de Paris. Dentro o quadro, o grupo pula de uma dimensão para outra, cada uma representando um círculo do intricado labirinto que é a imagem do quadro. Cada círculo é regido por uma escola estética da arte: parte do grupo vai para um mundo futurista, outra parte se vê presa em um mundo impressionista. Há até um circulo dadaísta. Difícil não ver a produção simbólica humana como uma série de redundâncias, das quais as escolas estéticas são voltas em torno deste enigmático símbolo maior: a vida. 








Extra! Extra! Pimba vem aí!

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por Pedro Brandt

“Quadrinho? Jornal? Arte? Entretenimento? Herói? Humor? Que cada um decida como perceber Pimba”, sugere o editor Danylton Penacho em texto de apresentação sobre esta novíssima publicação brasiliense. A Pimbaé tudo isso e um pouco mais e, a julgar por outra parte do release escrito por Danylton, liberdade é palavra de ordem na redação deles: “Não teve pauta, não teve editoria, tema, ideias vetadas. Cada um fez o que quis como quis e que agora assuma a responsabilidade de tocar o seu pandeiro, como diria Francisco da Ciência”.

Ou seja, conceitualmente, a Pimba não é muito diferente de outras tantas publicações independentes de quadrinhos que vêm surgindo a rodo nos últimos anos no Brasil. Ao mesmo tempo, ela não é qualquer publicação, especialmente porque a equipe é formada por ilustradores experientes que garantem um visual imponente e um acabamento gráfico primoroso, que chama a atenção desde a capa até a última página. O fato de a Pimba ser um jornal – formato pouco ou nada usado por quem faz quadrinhos hoje em dia no País – também ajuda na impressão positiva.

Com 32 páginas, tamanho um pouco maior que o tabloide, impressa em duas cores (azul e preto sobre papel branco), vendida por módicos R$ 5, a Pimba apresenta histórias em quadrinhos, tirinhas, crônicas e pinups. O conteúdo tem algumas ótimas sacadas (tanto visuais, quanto de texto) e outras totalmente dispensáveis, mas o resultado, no final das contas, é bastante simpático. É possível perceber um esforço para contar histórias, expor ideias, não ficar apenas na autoindulgência, na preguiça intelectual e no nonsense vazio (ainda que ele também esteja presente). Que venham mais – e melhores – edições.

Às vésperas do lançamento do jornal em Brasília, que será realizado com festa no Sindicato (705 Sul, bloco A, casa 35), a Raio Laser trocou uma ideia com os idealizadores da Pimba, equipe formada pelos craques Caio Gomez, Daniel Carvalho, Felipe Sobreiro, Leandro Mello, o editor de texto e cronista Danylton Penacho e a diagramadora Sarah Sado. Confiram o bate-bola a seguir:


Como surgiu a Pimba? Todos vocês já publicaram em outras revistas/zines, então qual a necessidade que viram em mais um publicação do tipo? Como vocês definem a proposta editorial do jornal?
Gomez: Bem, acho que sentíamos falta de uma publicação legal, com uma periodicidade decente. Eu e o Daniel já conversávamos bastante sobre isso. Daí foi um pulo para juntarmos uns amigos que admiramos pra caralho e que sentiam o mesmo vazio interior. A ideia era fazer um negócio com texto, ilustração, quadrinhos e que fosse barato, logo, abrindo mão de uma impressão refinada, meio que no contrafluxo do quadrinho ostentação atual. Algo que o formato jornal atendeu bem. Mas como produto final, talvez o maior diferencial da Pimba seja a presença de um editor de texto – a bagagem que o Danylton Penacho trouxe deu uma cara bem diferente para o jornal.

Para vocês, o que significa a palavra Pimba?
Gomez: Tem a onomatopeia, tem a melodia fácil ou pouco elaborada (em Portugal é bem popular), tem o mau gosto ou fraca qualidade e tem o Pseudo-Intelectual Metido à Besta Associado, esse último cunhado pelo saudoso Adolar Gangorra.


O formato jornal é inusitado dentro do meio dos quadrinhos independentes. Pensam em manter o formato jornal para as próximas edições?
Sobreiro: A ideia é manter o formato de jornal sim. A gente queria precisamente um tipo de publicação diferente do que é visto normalmente no meio das HQs. E agora que o jornal como meio está morrendo, resolvemos ressuscitar e aproveitar esse grande formato. Uma das diferenças é que o jornal "de notícias" tem uma vida útil de um só dia, o Pimba não tem esse problema, é atemporal.

E por falar em próximas edições, seria possível adiantar alguma coisa do que vocês estão planejando para o futuro da Pimba? Quais autores poderemos ver futuramente na Pimba?
Sobreiro: Ainda é meio cedo pra falar, mas a ideia é que os membros fundadores (Leandro Mello, Caio Gomez, Daniel Carvalho, Danylton Penacho e Felipe Sobreiro) sempre tenham material novo no jornal, mas queremos chamar novamente os convidados que apareceram no número 1, gente como Gabriel Góes, Stêvz, Roberta Ar, André Valente, e ir convidando outros, do Brasil todo, mas dando uma ênfase pro pessoal de Brasília.

Manter a periodicidade de um publicação é um desafio. Acreditam que conseguirão lançar uma nova edição a cada três meses? Quais outros desafios vocês enfrentam/enfrentaram na produção do jornal?
Sobreiro: Olha, a gente demorou muito fechando o primeiro número, resolvendo problemas, definindo a cara do jornal, nos distraindo com eventos, etc. Agora que já estamos com o trem em movimento, a ideia é não perder mais tempo e já fechar o segundo número, e manter religiosamente a periodicidade. O número 1 ainda nem foi lançado oficialmente e nós já lidamos com uma série de problemas que serão evitados nas próximas edições. A expectativa é que cada número vá ficando mais tranquilo de montar que o anterior.

Os encontros, feiras e convenções de quadrinhos estão cada vez mais populares no Brasil, sempre com a participação dos autores independentes (ou “dependentes”, como alguns se chamam). Como vocês enxergam esse movimento, tanto no sentido de articulação, quanto do resultado do que tem sido feito por essa galera?
Mello: Bom, passamos um bom tempo elaborando material, produzindo coisas para participar de eventos. Essas feiras/eventos funcionam como um grande laboratório, é lá que a gente vê como o nosso material se comporta. Lá temos contato com diversas pessoas: autores, produtores, editores e consumidores. E é sempre uma troca de experiência muita intensa, ainda mais quando vamos para outros estados. Penso que as feiras independentes têm um papel fundamental no fortalecimento do cenário nacional. São nessas feiras que você encontra pessoas que estão batalhando pra poder se inserir no mercado. Gente que enfia a mão na massa, sem editora (ou criando a própria editora), e com pouco dinheiro e pouco recurso. São essas feiras que dão a oportunidade de você mostrar seu produto e poder vendê-lo. E pro consumidor também é uma oportunidade única de encontrar coisas que não estão nas prateleiras das livrarias.

Ainda sobre o assunto da pergunta anterior, o que você acham que pode melhorar nesse universo dos autores (in)dependentes?
Mello: Não sei dizer exatamente o que se pode melhorar. Poderia falar em retorno financeiro, mas isso não é o que nos motiva. Claro, queremos retorno, temos contas pra pagar. Mas essa não é nossa principal questão. Não sinto a necessidade de que as coisas devem melhorar. Sinto a necessidade de continuar fazendo. A única coisa que eu quero é manter minha condição para continuar fazendo. Acho que as melhorias virão com o tempo e o amadurecimento de um mercado que é novo. Vai ser natural.

Vocês todos trabalham com artes gráficas (ilustração, design, etc) e, paralelamente, produzem quadrinhos. Viver só (ou principalmente) de quadrinhos é um sonho que alimentam?

Daniel Carvalho: Viver de quadrinho autoral ainda é um pouco custoso, porém o cenário tem mudado e quem sabe num futuro breve poderemos pagar nossas contas se autopublicando.

Chninkel: o grande poder da obra-prima

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por Ciro I. Marcondes

Um Chninkel
Às vezes no deparamos com uma obra-prima assim de supetão, sem qualquer previsão, buscando apenas uma leitura descompromissada. Não que eu não esperasse nada ao abrir O grande poder de Chninkel (Le grand pouvoir de Chninkel), obra em quadrinhos que impressiona já numa breve folheada, graças ao vigor e à robustez dos desenhos barbáricos do grande ilustrador polonês Grzegorz Rosinski. Conhecendo também o trabalho do clássico roteirista belga Jean Van Hamme – que, entre outras coisas, trouxe ao mundo a série de fantasia Thorgal, a detetivesca XIII e as aventuras do bilhardário Largo Winch –, era de se esperar algo refinado, num primeiro escalão de BDs estilo Métal Hurlant, cheio de aventuras prodigiosas e cenários hiperimaginativos. Porém, vale frisar, eu não esperava uma obra-prima.

Mas o que qualifica esta BD como obra-prima? Chninkel foi publicado em 1986 na revista belga (A Suivre), editorada pela Casterman, e, em alguns aspectos, é a típica HQ francobelga dos anos 1980: passa-se em um mundo de fantasia cheio de raças exóticas, guerras intermináveis e déspotas execráveis; além disso, é imersa em um quase interminável ciclo de aventuras e peripécias, num modelo epopeico, que carregam o leitor rumo a uma clássica jornada heroica; por fim, doses generosas de violência e erotismo confirmam a tendência desta HQ em capturar os aspectos mais gerais que definiram esta época como uma das mais vertiginosas da BD.


A exuberante arte de Rosinski
Para além dos clichês já representados no próprio background da história, Chninkel se destaca por ser um tipo de parábola religiosa que é, ao mesmo tempo, uma paródia e uma crítica ao universo do evangelismo. Sua história é a de Daar, um mundo em constante guerra, dominado por três imortais e seus povos, que subjugam e escravizam tantos outros: Zembria, a ciclope, que rege um grupo de ferozes amazonas; Barr-Find, o mão-negra, líder de um grupo barbárico de humanos; e Jargoth, o perfumado, que lidera uma raça de elfos que voam em orquídeas carnívoras. No meio de eterna guerra entre os três imortais, uma raça de escravos chamada Chninkel (uma espécie de ratinho antropomorfo) luta por sua própria sobrevivência. As sete páginas iniciais, que mostram o contexto e os atos sanguinolentos de batalha, são particularmente primorosas – apocalípticas, exuberantes, desoladoras.

Um dos chninkels, J’On, sobrevive a uma batalha avassaladora, e, ao ver-se só em meio a uma multidão de cadáveres, presencia a aparição de um monólito negro (tal qual em 2001) que se apresenta como o Grande U’N, mestre criador de mundos. A figura divinal explica-lhe então a sua insatisfação com o mundo em guerra e confere uma missão ao pobre Chninkel: no curso de cinco cruzamentos de sóis (o “ano” no mundo de Daar) ele deve conseguir acabar com todas as guerras em seu mundo. J’On, percebendo sua pequenez diante de tamanha responsabilidade, questiona o criador de mundos sobre porquê ele ser o escolhido, no que a figura divinal responde: “Eu sou encarregado por uma infinidade de outros mundos e de milhares de milhares de seres que criei. Você pensa que eu tenho tempo de procurar qualquer outro neste mundo aqui? Será, portanto, você, J’On, o escolhido”.


Enquanto U’N parece uma figura divinal tirânica, amarga e opressora tal qual Jeová no Velho Testamento, J’On vai se transformando, pouco a pouco, de uma figura à Moisés (afinal, ele tem de livrar seu povo da escravidão e ouve diretamente um chamado de seu Deus) em uma à Jesus Cristo. Logo percebemos que O grande poder de Chninkel tem uma clara intenção de produzir uma reflexão sobre a ética da Bíblia como um todo. Se, em algum momento, pensamos que há nesta HQ certo proselitismo cristão, percebemos, ao final da leitura, que seu verdadeiro sentido reside em ironizar o monoteísmo como um todo, colocando todas as complexas linhas narrativas e desdobramentos da trama à mercê de um ato egoico, paranoico e vingativo concentrado nas mãos de uma imagem onipotente.

"Doses generosas de violência... e erotismo"

Excelente design de criaturas
J’On, assim, vai viver uma série de peripécias que deflagram sentido claramente mitológico, concentradas em cenas e atos que se configuram como parábolas, e onde rapidamente percebemos figuras e atos presentes nas próprias fileiras dos evangelhos, como Maria Madalena, Judas, os evangelistas, a travessia do deserto, etc. Estas peripécias são narradas com tal desenvoltura, envolvendo-nos em meio a raças particulares, cenários exóticos e coadjuvantes carismáticos, que a linhagem bíblica que parece a todo tempo nortear a história não impede que nos surpreendamos a cada instante. Cada solução pensada por Van Hamme para as armadilhas que a jornada reserva são carregadas de soluções criativas, saídas inesperadas, pequenos milagres que, no contexto da história, não parecem forçados. Cada sincronismo presente na narrativa lembra mais, efetivamente, um evento mitológico do que um deux ex machina, ainda que este recurso seja utilizado no final, mas mergulhado em franca ironia.

Excelente design de máquinas
A arte de Rosinski ajuda tudo a se tornar mais épico, com o amplo uso de splash-pages, megarrequadros e lettering expressivo. Além disso há um aproveitamento do preto-e-branco robusto e sensual, com detalhamento minucioso nas expressões dos personagens e excelente design de criaturas, máquinas e cenários. Seus quadros contêm intensa movimentação, praticamente sem linhas de ação, fazendo-nos supor este movimento, tal qual um Delacroix, a partir de uma cinética inerente à expressão do desenho. Em cada mínimo detalhe, um primor. Chninkel por vezes é tão intenso em seus movimentos que parece que estamos vendo uma animação, ao invés de lendo uma HQ.

Parábola sobre o poder

Por fim, como se tudo isso não fosse suficiente para caracterizar O grande poder de Chninkelcomo uma obra-prima dos quadrinhos, falta falar sobre o próprio poder em si, o que talvez seja a elaboração mais sutil, e ao mesmo tempo a mais importante da HQ. Vamos lembrar, em primeiro lugar, que J’On não sabe exatamente qual a natureza de seu poder “milagroso”, e a todo instante ele questiona se sua “visão” do U’N não foi um sonho ou uma alucinação. Sem qualquer poder que lhe esteja disponível, cabe a ele o tempo inteiro exercer seu poder de dúvida, um pouco como Jesus em A última tentação de Cristo, e se deixar levar pela missão como que por intuição. Assim, o pobre Chninkel é também uma espécie de Forrest Gump, e as coisas vão se sucedendo como que se fossem ao mesmo tempo milagres e coincidências. Esta perspectiva abre um olhar muito interessante sobre a natureza, digamos, gnóstica do mundo, onde existe uma dupla face de acontecimentos, uma na esfera do divino e do sobrenatural, e outra nas leis da física e da materialidade. Os acontecimentos, de qualquer forma, são os mesmos, e o leitor deve escolher qual a percepção que melhor lhe sensibiliza, duvidando junto com o Chninkel e tendo de oscilar entre interpretar a história como uma fábula paródica (no caso do poder ser falso) ou como uma fábula holística (no caso dele ser real). Vivenciar estes acontecimentos, no fim das contas, seja qual fora a sua natureza, é o que parece contar.

A própria natureza do poder em si, bastante tolkeniana (que, por sua vez, é também cristã), é problematizada a partir do momento em que percebemos que J’On não ostenta um poder bélico, ou mesmo sobrenatural, mas sim demarca sua posição política com ideias e uma intervenção não-violenta, tal qual Ghandi, através do diálogo e do poder de arrebanhar seguidores. O poder de O grande poder de Chninkelé, portanto, um poder moral, um poder invisível, presente em qualquer um, e não apenas em um escolhido por Deus. Esta mensagem, a de que as forças motivadoras que transformam a humanidade estão nos indivíduos, ecoa mais em um existencialismo sartreano do que propriamente na doutrina Cristã. A ironia é que, para ser impulsionado a, sozinho, libertar seu povo, J’On precisa ter uma alucinação religiosa. A religião é colocada como uma falsa força-motriz, um poder motivador capaz de mover montanhas não por sua natureza sobrenatural, mas sim por sua força de congregação social, tal qual pensava, por exemplo, Durkheim. Fica a impressão de que J’On poderia realizar toda a sua façanha sem qualquer visão ou “missão” divina, apenas acreditando em sua força individual. Porém, resta também a questão dialética que diz que ele também não poderia fazê-lo, afinal, a religião seria a única motivação capaz de movimentar esforço tão descomunal. Impasses de um texto ambíguo.

A despeito do final sinistro e assombroso, mais afeito a um niilismo hipercínico, parodiando o apocalipse bíblico, todo o caráter épico de O grande poder de Chninkel, associado às suas várias matrizes de interpretação e à sua arte de primeira grandeza, nos levam a pensá-lo como uma das obras definitivas da BD. Obviamente é difícil pensar em uma obra de ficção nas histórias em quadrinhos atuais que levante tantas questões, e ao mesmo tempo com tanta estranheza e tanto impacto estético. Certamente traduzi-lo para o português deveria ser uma prioridade e uma urgência.

Música para sonhos: A pior banda do mundo

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por Ciro I. Marcondes*

O que pode haver em comum entre o kammerspiel (gênero de filmes alemães dos anos 1920, voltado à classe operária), Reinhart Koselleck (historiador da segunda guerra mundial) e Hermann Rorschach (psiquiatra suíço que desenvolveu o famoso teste... e que batizou também um personagem de quadrinhos)? Em princípio, nada – ou tudo. E este é o mote desenvolvido por José Carlos Fernandes na história em quadrinhos portuguesa A pior banda do mundo: os elementos que compõem as fiações do nada. Todos estes nomes são realojados, em algum momento, em personagens obscuros, excêntricos, desvalidos, que habitam uma espécie de cidade de sonhos, onde o descartável e o inútil encontram sua ontologia, onde uma paranormalidade de boteco vai obcecar pessoas acanhadas, onde os ofícios mais inadequados e obsoletos continuam a existir de maneira cíclica, eterna, interminável. Um mundo dentro do nosso próprio mundo, escondido em suas entrelinhas, abafado nas funções ordinativas da nossa realidade.


É assim, redimensionando as proporções com que os elementos do mundo se encontram nas coisas mesmas, que o autor cria um verdadeiro fenômeno de atravessamento em quadrinhos. O sistema é muito simples: a cada duas páginas ocorre na cidade um sketch, espécie de ensaio de algo improvável de acontecer. Em um momento, acompanhamos o esdrúxulo ensaio da pior banda do mundo, que toca junta há 30 anos, mas os músicos não conseguem chegar a um consenso quanto a qual música estão tocando. Em outro sketch, temos a história de uma caixa de correio que recebe as sugestões utópicas dos cidadãos. Em outro, duas velhas irmãs ouvem em suas cabeças a música que o obececado compositor do andar de cima nunca conseguiu realizar após anos de tentativas. Outro ainda, igualmente  fantástico, nos leva a um quarto de hotel em que o hóspede atual sonha os sonhos do hóspede anterior, e ainda há aquele em que um personagem se descobre como sonho de uma outra pessoa.

Para esta miríade de personagens e situações insólitas, que se situam entre a poesia e o conto fantástico, Fernandes vai espalhando nomes de suas referências, sempre de maneira bem humorada, convidando o leitor a uma verdadeira caçada a seus easter eggs: aparecem, por exemplo, os nomes de Roy Lichtenstein, F.W. Murnau, Bela Lugosi, etc. De alguma forma, o autor espalha e compartilha seu mapa de delírios e sonhos tanto através da paisagem surrealista da cidade, quanto em seu universo de influências e subtextos. Este universo se revela no gesto de renomeação e duplicação do nosso mundo, exalando erudição, mas não só isso. O tom modesto do texto, a coloração pastel das páginas e o aspecto encurvado, espremido, dos personagens, denotam equilíbrio entre ambição e simplicidade, deixando a leitura lúdica, curiosa, aguda.

A origem desta mistura entre modéstia, poesia, erudição e um senso de humor muito específico é difícil de determinar. Poderíamos pensar em coisas semelhantes ao vermos os filmes de Wes Anderson, Aki Kaurismäki ou Hong Sang-Soo. Ou lendo as HQs de Lourenço Mutarelli e os contos de Murilo Rubião. Há um DNA que mistura surrealismo, existencialismo e humor que pontualmente aparece em expressões culturais aqui e ali. Porém, é certamente no imaginário de Jorge Luis Borges que encontramos um parentesco mais afinado, unindo certa curiosidade filosófica debochada ao fascínio por mundos adimensionais que ocorrem dentro das mais diminutas manifestações da nossa percepção. Assim, a obsessão do músico Sikorsky – daPior banda… – em escrever a peça musical perfeita para o mais banal cotidiano ecoa na obsessão de Pierre Menard – de Ficções, de Borges – em reescrever, palavra por palavra, o Quixote de Cervantes. Da mesma forma, o peso e a densidade das palavras buscada pelos irmãos Nazca lembra a metafísica que tange a biblioteca de Babel em Borges.


Uma literatura borgeana de boa qualidade já é rara pela própria rarefação indefectível do gênio do autor argentino. Imagine então encontrarmos em quadrinhos algo que encante com a mesma propriedade, ainda mais partindo de um estado lacônico, estatelado no tempo, tipicamente português, como o que encontramos na HQ de José Carlos Fernandes? A pior banda do mundo, lançada originalmente nos anos 1990, pode hoje ser considerada já um clássico, em que a norma é a fragmentação e no qual o punch line das piadas nunca acontece, mergulhando o leitor em uma ansiedade cíclica pela solução de mistérios indecidíveis, de coincidências inalcançáveis. É neste hiato que mora o pensamento poético. É nesta vala que a pior banda do mundo toca sua música.   

* Publicado originalmente no jornal de quadrinhos Suplemento.

Escalpo e o tempo mítico

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por Lima Neto

O quanto devemos ao passado? Não falamos do almoço que foi degustado ontem, mas de ações que foram tomadas há vários anos atrás e que deixam sua marca no presente com muito mais força e brutalidade que o agora. Se o tempo for visto como um fluxo contínuo de decisões e acidentes, então estas ações do passado a que me refiro são como gigantescas pedras que dilaceram e estraçalham o tempo para sempre. Estas rochas são marcos, pessoais ou coletivos, que sempre imporão sua vontade ao tímido e nascituro presente. E a série Escalpo, escrita por Jason Aaron e com arte de R.M. Guéra, gira em torno desta inevitabilidade de um passado que se impõe ao presente. Um passado violento e pessoal e, além disso, um passado ainda mais violento, o passado histórico.


Shunka e Corvo Vermelho cuidando dos negócios do Cassino Cavalo Louco
Em Escalpo, série de crime publicada no Brasil na revista Vertigo da Panini desde seu início e que se concluirá este mês em uma edição especial toda dedicada à série, conhecemos a reserva indígena fictícia de Rosa da Pradaria, e seu amargo povo remanescente dos índios Lakota. A série foca no agente especial do FBI Dashiel Cavalo Ruim e sua missão/punição de retornar à sua terra natal após mais de 15 anos para angariar provas que incriminem Lincoln Corvo Vermelho, um líder tribal às vésperas de inaugurar um cassino na reserva e movimentar milhões em dinheiro sujo. O passado de Corvo Vermelho é uma longa estrada de contravenções e assassinatos que tinham como objetivo manter o grande plano que ele havia pensado para a reserva. Ele se inicia com o duplo assassinato de agentes federais ocorrido nos anos 70, e tem entre os acusados Gina Cavalo Ruim, mãe de Dash. O desfile de personagens e seus passados entrelaçados vão construir uma tapeçaria marcada por uma violência ainda maior: a colonização e extermínio dos povos indígenas pelos invasores europeus.

Lincoln Corvo Vermelho e seu totem animal.
A desolação e a pobreza dão o tom das ruas da Rosa da Pradaria. Como bem coloca um dos personagens, a situação das reservas do centro dos Estados Unidos só pode ser entendida como um país de terceiro mundo no coração dos EUA. Confinados em suas terras, os cidadãos da reserva se afogam no álcool, o que faz das terras indígenas os lugares de maior índice de alcoolismo dos EUA. Os jovens, sem perspectivas ou opções, se dividem entre viciados e traficantes movimentando uma indústria de metanfetamina e heroína que prospera graças aos policiais tribais, muitos corrompidos pelas promessas de dinheiro fácil que os cassinos representam para as reservas. Deste mundo, poucos conseguem escapar. Dash é um deles, mas que agora retorna com uma missão que lhe foi empurrada garganta abaixo pelo agente especial Nitz, um federal veterano obcecado em vingar seus amigos e levar Corvo Vermelho para a cadeia.

Jason Aaron escreve sua saga de crime e sacrifício como um cavalo louco. Superficialmente, Escalpo pode ser descrito como uma mistura de Família Soprano com romances policiais de agentes infiltrados. Porém, a impressionante pesquisa de sua ambientação, a maestria com que tece a trama dos personagens e o ritmo estonteante da narrativa - somada à belíssima arte do sérvio R. M. Guéra – fazem de Escalpo uma espécie de Chemako on drugs. O percurso das personagens é sempre impressionante. Mas uma coisa dá o tom da narrativa: sua complexa e sofrida relação com o passado.  O retorno de Dash à Rosa da Pradaria é apenas uma volta no eterno retorno que a história exerce na narrativa.

Dar más notícias aos filhos de uma prostituta:
um dia de trabalho para Dash Cavalo Ruim
A narrativa quebrada de Aaron remete diretamente a outros autores semelhantes da editora, como o Brian Azzarello ou David Lapham. Entretanto, o quebra cabeça que se monta é sempre duplo: uma situação atual e sua contraparte no passado. Em seus arcos de história iniciais, o olhar do leitor é sempre entrecortado, invadido por uma narrativa que se quer a principal, mas que se passa em um outro tempo. E neste momento a pena de Guéra brilha. Sua caracterização de personagens, com muita influência da escola italiana e francesa de faroeste, é tão precisa que garante que você identifique um personagem 30, 40 anos no passado. Esse passado é tão vivo que deixa o presente para trás. Transforma o presente em frágil memória. Impossível não lembrar do trabalho do pensador romeno Mircéia Eliade. Para Eliade, nas culturas míticas, há um tempo marcado pelo retorno ritual do passado. As datas comemorativas, como São João por exemplo, são um momento em que se sai do tempo mundano e individual e se retorna a um passado coletivo e mítico. É o eterno retorno de Eliade. Este retorno marca o ciclo temporal e a passagem do tempo de forma compartilhada. O ser humano atual não partilha deste eterno retorno da mesma maneira que os povos antigos. O homem moderno está preso ao tempo mundano e sua infinita evolução onde desenrola os dias em direção a um final para o qual não está preparado. O tempo sagrado do eterno retorno, heterogêneo e ditado pelo mito vai ser deixado de lado por um tempo profano, homogêneo e ilusoriamente livre. O homem moderno vai enxergar no tempo profano a possibilidade de escrever sua própria história, sem perceber que de fato é uma peça minúscula dentro de uma história muito maior dominada por uma minoria que impõe sua narrativa ao cotidiano deste homem moderno.


Flashback com Gina Cavalo Ruim e Lincoln Corvo Vermelho.
Esse conflito entre uma forma sagrada e coletiva de agir e uma liberdade profana e ilusória é uma boa metáfora para o grande pano de fundo da Rosa da Pradaria e seus habitantes. Todos os personagens de Escalpo se encontram emaranhados nas cordas que lhes dão a ilusão de movimento. Corvo Vermelho, um personagem de carisma ímpar, esticou as cordas da tradição para que estas se dobrassem à sua vontade. Dash Cavalo Ruim foge de suas cordas apenas para se ver emaranhado por outras ainda mais traiçoeiras. Outros personagens, como Gina Cavalo Ruim e o índio branco Diesel, lutam para que suas cordas não sejam trocadas pelos fios profanos do tempo histórico. Enquanto que personagens como o testa-de-ferro Shunka e Carol Corvo Vermelho sabem o que é preciso para sobreviver em um mundo sem redenção. Esse balé estressante de esforços quase sempre culmina na mais palpável frustração. O passado dos personagens de Escalpo não permite que eles se arrastem para muito longe de Rosa da Pradaria. Nessa realidade pós-faroeste, tempo profano e sagrado sucumbem e se misturam na esmagadora gravidade que a história vai instaurar nesse povo. Em Escalpo não há heróis, nem vilões, só há vermes se contorcendo para se verem livres de seu passado, e falhando miseravelmente. 

Raio Laser's Comics' Quicky #03

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O biênio 2013/14 tem sido uma época boa para os quadrinhos brasileiros. Eventos como o FIQ e a Feira Plana, somados a incontáveis feiras de quadrinhos, pequenas ou grandes, espalhadas pelo País todo, mostram que, se o mercado das grandes editoras ainda é reticente em relação a publicar material nacional, no mundo independente (ou "dependente", conforme ponto de vista) a coisa fervilha. Este material pode aparecer impresso, online, em zines de luxo, publicações requintadas, xerox, em tiragens de milhares de edições ou apenas poucas dezenas, etc. Minha opinião é a de que, para que uma cena se fortaleça, é preciso um volume grande de gente participando. Joio e trigo. Coisa ruim, banal, esquecível, e coisas que ficarão para a história. A quantidade fomenta a qualidade. Com ajuda do amigo quadrinista Pedro D'Apremont, que foi nestes eventos e trouxe dezenas de quadrinhos para que eu pudesse ler (agradeço a cordialidade), selecionei algumas das coisas mais interessantes que apareceram em minhas mãos e escrevi breves comentários. Quase tudo coisa boa. Só peço ao povo dos quadrinhos (muito autolaudatório) que pare de chamar gente que está apenas fazendo um trampo honesto de "gênio", "mestre", "monstro", como vejo tanto por aí nas redes sociais. Menos, pessoal. Afinal, como diz meu amigo Chico Mozart, se vamos chamar qualquer um de gênio, que palavra vamos usar para falar de Beethoven? (CIM)  

Se quiser aparecer nesta seção (a gente tarda, mas não falha), envie seus quadrinhos para (novo endereço!):

RAIO LASER
SQS 212 Bloco G Apto 501.
Brasília-DF
Brasil
CEP: 70275-070

por Ciro I. Marcondes


Samba Nº 3– Gabriel Góes, Gabriel Mesquita e Lucas Gehre (Org., Independente, 2013, 166 p.): A Samba é uma das iniciativas mais significativas da cena dos chamados quadrinhos “dependentes” brasileiros, e este número 3, financiado via Catarse, amplamente aguardado, saiu no ano passado. Novamente temos um trabalho cuidadoso de editoração realizado pelo trio de quadrinistas brasilienses: uma capa arrojada e intrigante, uma história inteiramente “destacável” (“Galaxian”, espécie de souvenir), ótima qualidade de impressão e um louvável trabalho de curadoria (ou ao menos na intenção), já que esta edição reúne, além dos organizadores, alguns dos nomes de maior destaque deste cenário. Gente como Rafael Coutinho, Diego Gerlach, DW Ribastki, Bruno Maron, Stêvz, André Valente, etc, etc. Além disso, há a presença de quadrinistas mais jovens que avançam na publicação, como Pedro D’Apremont e Mateus Gandara. Tudo lindo, não? O problema é que, a despeito da seriedade do trabalho e das boas intenções, o resultado desta terceira Sambaé irregular não pela falta de talento ou calibre nos quadrinistas escalados, mas por um certo desleixo com as histórias mesmo.
Uma quantidade considerável dos trabalhos publicados não passa de gags ou sketches, coisas tolas, esquecíveis, como é o caso do abre (com Stêvz) e do fecha (com Elcerdo) da revista. Dadaísmo e rabiscos, dois sérios problemas dos quadrinhos brasileiros. Mesmo a parte de Rafael Coutinho, grande talento, que “narra” uma história de assassinato com pontos coloridos, se perde no excesso de abstração e experimentalismo. Meio difícil de engolir. Outros trabalhos, como os de Carlos Ferreira (“misterioso” e sem graça), João Lavieri (um delírio à Spain Rodriguez), Mateus Acioly (muito zinesco) e Pedro Cobíaco (boas ilustrações que lembram o estilo de Tardi, mas com roteiro clichezento) são descartáveis e pouco acrescentam no volume que fazem na revista.  Em geral, paira o preguiçoso experimentalismo “vale qualquer coisa” e pouca coesão. Falta, claramente, um conceito que unifique a revista, um propósito que seja mais do que simplesmente juntar uma galera que ilustra pra caralho e botar pra jogo. Se o conceito for a “diversidade” esquizo pós-moderna, tudo bem, eu compreendo, é um sinal dos tempos, mas não me obriguem a gostar.
Nem tudo, porém, são pedras. Algumas das histórias em Samba 3 são mais vigorosas, revelando natural maturidade nos artistas, coisas pensadas de maneira efetivamente mais adulta e profissional. Gerlach (sempre salvando a pátria) traz, em colorido psicodélico, a história psico, histérica, cheia de palas, de um lobisomem punk. Seu traço vem revelando um estilo cada vez mais autoral e autoconsciente, e o roteiro, cada vez menos caótico e largado, ganha força representacional. O mesmo vale para DW Ribatski, cujo estilo mais indie (lacônico, confessional, autobiográfico) dá um tom mais sóbrio à coletânea como um todo. Um alívio narrativo. Também vale destacar a história “muda”, de compleição mais expressionista/leste europeu, de Tulio Caetano, com arrojadas soluções narrativas, uma arte bastante personalizada em branco e preto, e um roteiro satírico, ácido e delirante. Há também o trabalho insólito, sempre inovador e desafiador, de Eduardo Belga, que constrói aqui uma mapa de conceitos visuais em quadrinhos, com pouca aproximação lógica, mas cujo resquício de sentido é o suficiente para ativar uma ação horripilante nos umbrais da mente.
Por fim, o que considero a grande conquista desta edição é a já citada série Galaxian, de Góes e Gehre, publicada ao longo de 2012 no site do coletivo. Trata-se de uma psicodélica saga space-opera não em quadrinhos, mas sim narrada em lindas splash-pagesmulticoloridas e ilustradas com o mais dedicado apuro detalhista, como se fosse uma narração arcaica em vitrais e um livro infantil ao mesmo tempo. O roteiro de Gehre, com seus impérios galácticos, futuros utópicos, fontes inesgotáveis de energia, além de heróis e vilões, é esteira para a arte de Góes florescer carregada de referências pop engraçadas, do UFC a Comandos em ação. De Star Wars a X-Men 2099. Obviamente, a chegada de mais uma Sambaé uma conquista para os quadrinhos tanto de Brasília quanto nacionais. O cenário brasileiro de quadrinhos autorais tem se tornado vigoroso e o talento dos artistas amadurece no compasso das condições de produção. Há que se ter paciência, mas os frutos deste processo até agora progridem visivelmente.
Prego Nº 5– Alex Vieira e Guido Imbroisi (Org., Independente, 2011, 80 p.): o que vale para a Samba, de certa forma vale também para a Prego. Publicação punk de Vila Velha (ES) que reúne não apenas quadrinhos, mas também ilustrações, textos e entrevistas, esta revista indiee selo editorial tem se destacado no cenário nacional pelo design arrojado, pela multiplicidade de publicações e também por orbitar os quadrinistas mais bem relacionados nesta cena. O resultado é uma publicação de verve mais agressiva e chutada que a Samba (que quer ser mais... arté), por mais que as duas compartilhem praticamente os mesmos autores. Nesta edição número 5, já meio velha, todas as histórias giram em torno do som e da música (fazendo parte de uma trilogia “sexo, drogas e rock and roll”). Focar a revista em um tema só é um mérito, permite que se trace uma linha de coesão entre uma história e outra, fica mais fácil de se pensar um comentário a respeito. O problema é que vários dos autores parecem não ter entendido direito o que fazer com o tema, gastando tempo e trabalho com o processamento de qualquer coisa que lhes veio à mente. É o caso do próprio Alex Vieira, de Yuri Moraes e Tom Noise. Gerlach desta vez manda mal com uma história “sensorial” de uma fossa regada a música. Não vai a lugar algum. Cynthia Bonacossa ao menos cria uma história autoirônica, em que confessa não saber o que fazer com o tema. 
Mesmo assim, há um punhado de boas colaborações, como a biografia do crítico musical Lester Bangs (de Chico Félix), num estilo que mistura Peter Bagge com Allan Sieber, quadrinho bem dosado, cheio de referências dentro e fora dos letreiros, com humor preciso, cirúrgico. “Lembrança de quinze anos”, de Fernando Saul e Xablutz, narra a relação da adolescência com a música e o universo afetivo que a circunda, com a solução (meio batida) de colocar letras de canções na caixa de letreiros enquanto a história se desenvolve. É inofensivo, mas a leitura agrada. Ao menos não é “quadrinizar” uma letra de música de Jorge Ben, como foi o caso de Nik Neves (sem comentários).
O universo afetivo da juventude também é explorado na primeira parte da série “Palhaços tristes”, de Gabriel Mesquita, que virou até (um bom) curta-metragem. Aqui, o quadrinista brasiliense desenvolve estilo bastante minimalista, um pouco inocente e pueril, ao colocar um par de patetas completamente ordinários, tristes de tão insignificantes, refletindo sobre sua própria condição numa “festinha” de classe média. A quadrinização é direta, sem firulas, e essa “pobreza” conceitual ajuda na pobreza espiritual dos personagens, ao contrário da atmosfera barroca do filme de Rafael Lobo. A melhor história da edição, porém, fica com o quadrinista português Marcos Farrajota e seu tergiversar free style, altamente ácido, sobre a cultura do punk rock nos dias de hoje. Em cinco páginas, no que parece um surto rabiscado de improviso, ele vai das “demos” podreira (Mukeka de Rato, Leptospirose, DFC, etc.) que recebe pelo correio, à saga de conseguir revendê-las em Portugal, a uma reflexão sobre o solipsismo da cultura punk nos dias de hoje, à comparação entre o som brasileiro e o português, e até a uma árvore genealógica do estilo, partindo de 1976. Finalmente, em talvez um único caso, a música tenha sido relevante na edição “musical” da Prego. O resultado em geral, porém, por irregular que seja, é positivo. Melhor queimar os fusíveis dessa galera de uma vez e deixá-los experimentar do que esperá-los apodrecer procurando fazer obras-primas.


Surfista Calhorda– Fábio Lyra, Pablo Carranza, Porco e Presto (Org., Pula Pirata/Power Fuckers, 2013, 56 p.): Sacanear o Surfista Prateado não é uma má ideia. Quase todos os heróis de Stan Lee trazem consigo uma coisa puritana, de bons costumes e valores – é o filhinho da vovó, a família margarina, o pobre órfão cego, etc. – associados a sofrimentos terríveis, histórias de superação, contos motivacionais. Uma coisa, assim, meio dickensiana, mas, ao invés de cada história ter 700 páginas de densidade justificando essas coisas, tem 24 de puro pulp engana-trouxa. O Surfista chega realmente a ser o melhor e o pior ao mesmo tempo. Lee tinha essa intenção “nobre” de fazer um personagem metafísico, filosófico, exilado no espaço, etc. Mas o cara, lembremos sempre, parece a estátua do Oscar, usa uma prancha de surfe (?) e... não tem piroca.
Um time de depravados e escarninhos da HQ nacional resolveu fazer uma revista em formatinho virando o conceito do Surfista do avesso, provando que comics não é bem um território muito valioso para a galera que está reinventando os quadrinhos nacionais. Não tem como não apoiar. Desde o texto de abertura (de Bruno Azevêdo), que pinta o Surfista como calhorda por rejeitar sua amada Shalla Bal, até as versões de Pablo Carranza (uma coisa sem-noção em que Galactus deixa todas as mulheres do mundo com TPM, e o Surfista e Reed Richards têm de se aliviar com animais e sereias) e Fábio Lyra (em que o Surfista vira zineiro de poesia new age vagabunda), o herói é zoado de todas as maneiras possíveis: vira tema de papel de LSD, surfistinha no Havaii e refugiado do nazismo na Argentina. Galactus, por sua vez, é sempre retratado como um laricado, glutão e obtuso. A revistinha é, como se pode ver, uma mongolice, e, finda a diversão (depois de ler numa cag*da), talvez seu destino (como o de qualquer formatinho) seja o lixo, mas vale a leitura. Isso me lembra de minha ideia de botar a galera da HQ underground brasileira de hoje para fazer paródias/releituras dos abstrusos heróis clássicos brasileiros, como Capitão 7, Raio Negro e Velta. Fik dik.   


Falsidade Ideológica Nº 1 e 2– André Escobar (Anti-Tudo e Todos/Ninho de Vespa Quadrinhos, 2012/13, 48 p. cada): o autor deste fanzine, famigerado Escobar, deixa claro em seu “Manifesto fanzineiro quadrinista”, logo na número 1: isso aqui é “História em Quadrinhos Brasileira de Escracho”. Dentro deste nicho, o cara acerta em cheio. Falsidade ideológicaé uma espécie de zine à moda antiga feito por um punk velho que não se esquiva de sacanear a própria contracultura, o ridículo da luta “contra o sistema”, e a própria condição miserável do fanzineiro como um todo. Sua história principal, contada em quadros grandes e expressivos, meio estilo Bob Cuspe, é “Vida de artista”, em que um quadrinista (ele próprio) sequestra um ator global viciado em heroína pedindo que esse “lixo da indústria cultural” seja substituído por “cultura de qualidade”, ou seja, seus próprios quadrinhos toscos. O final anárquico e ruim pra todos não poderia ser mais clarividente sobre a condição tanto do indie maltrapilho e orgulhoso de suas porcarias quanto do mainstream obtuso e imbecilizante. Escobar dispara também sua metralhadora ambígua em direção a cotas raciais, suicídio, cocaína, Ziraldo e outros tantos temas polêmicos. Escracho de primeira. De fato, Falsidade ideológica merecia esses prêmios todos (HQ Mix, Ângelo Agostini, etc.) que ele faz questão de ironizar neste zine comédia.


Bebê GiganteTiago Elcerdo (Projeto 1000, 0004, Cachalote, 2011, 24 p.): eis mais um bom lançamento de 2011 que havíamos deixado passar. Não custa corrigir aqui. Nesta HQ completamente “silenciosa” (sem falas, como todas do projeto 1000) de Elcerdo – quadrinista de traço um tanto tremido e de alguma forma tristonho (no caso, qualidades) – acompanhamos uma espécie de vila medieval em que um casal de caçadores encontra um bebê enorme, monstruoso e voraz debaixo de uma árvore. As consequências de se levar esta criatura para casa acabam esbarrando na fronteira entre o amor humano e a brutalidade animal. Elcerdo lida muito bem com esta aporia, criando uma excelente metáfora sobre a animalidade em nós mesmos, e sua inevitabilidade em um mundo em que nossos instintos parecem cada vez mais estarem sendo submetidos a todo tipo de regulação técnica. O despojamento visual da HQ, equilibrando bem splash pages com minudências, denota sofisticação narrativa, mesmo que a leiamos em apenas um minuto. E, mesmo com um final muito aberto e um tanto confuso, Bebê Giganteé uma das melhores edições de “1000” que li até agora, mostrando que Elcerdo tem grande desenvoltura não apenas com o humor e o surreal (“Beleléu”), mas também com o drama em quadrinhos.     


Grounfff!!! Histórias estranhas. Quadrinhos malditos Nº 1Koostella (Independente, 2012, 36 p.): Koostella é um quadrinista paranaense que mora na Suíça, um tanto isolado do resto da patota indie nacional. Desde que li uma história dele na Golden Shower, virei fã. O cara tem perfeito timing para bons quadrinhos de humor, sem ser insípido, sem ser somente grosseiro, sem perder sua naturalidade autoral. Além disso, sabe cruzar referências sem que pareçam gratuitas, indo do horror brasileiro dos anos 60/70 até a trajetória completa da música pop, passando pela ficção-científica. Mas não se enganem: não há nada de esquizofrênico em seus quadrinhos. Neste ótimo zine Grounfff!!! há sim uma miscelânia de coisas, mas, como num episódio de Futurama, todas as referências estão submetidas a um mesmo substrato, que neste caso é o traço neurótico e os personagens degenerados de Koostella. Mudam-se os temas, permanece o tom de deboche sagaz em relação à cultura pop e à sociedade contemporânea. Assim, aparece aqui um misto de terror com autobiografia em uma história de estremecer os ossos sobre uma criança sendo assombrada por uma mão fantasma; ou as biografias de bandas absurdas, lunáticas, em tudo excessivas, mas que ao mesmo tempo são distorções febris de artistas reais; e por fim uma história futurista com cenários quase num tom meio arte-naïve, uma coisa assim “fantástica fábrica de chocolate”, que nos apresenta um mendigo que desconfia que as máquinas de teletransporte são, na verdade, copiadoras. Hilário. Koostella pode não reinventar a roda, e certamente está alinhado à frente de quadrinhos ácidos/cínicos/paródicos que meio que esgotaram um pouco o potencial criativo da produção brasileira há algum tempo, mas não se pode negar que, neste ramo, ele é um dos mais carismáticos.


BadonkadonkFelipe Portugal (Independente, 2013, 84 p.): vamos ser justos com Felipe Portugal: qualquer um que se preste a escrever um romance gráfico (ou uma história longa fechada, tanto faz) e lançar na forma de zine merece algum crédito. O esforço de se desenvolver arcos narrativos, solidificar personagens, construir histórias é em si um ato quase político na HQ brasileira, já que nosso cânone é composto quase inteiramente de tiras, charges e excertos satíricos. Badonkadonk procura dialogar ao mesmo tempo com a linguagem do mangá (tem alguns estilemas tezuka-escos, mas as referências primárias são coisas mais rasteiras, como Dragon Balle One Piece) e do videogame, sendo certamente insatisfatória no que tange a ambos. Afinal, somos apresentados a um mundo pouco contextualizado em que os personagens pipocam nas fuças do leitor como se saídos da sarjeta de um jogo de Master System tipo beat’em up, fazendo-nos engolir uma trama absurda (seria boa se fosse surrealista, mas esta qualidade é claramente involuntária), infantil e tosca. O autor, de boa fé, quer que pensemos se tratar de algo à moda antiga (?), “estilo Band Kids”. O que parecia um trunfo (a coragem de produzir o texto longo), quando inspirado em tão “inevitáveis” referências, acaba desembocando em mais um tropeço da nossa produção. De um jeito ou de outro, há ainda um caminho longo a se seguir.


Xula– Luciana Foracipe (Org., Maria Nanquim, 2014, 108 p.): seria fácil confundir a Xula, caçula entre as revistas mix indie brasileiras, com mais uma publicação despudorada, fritona, carregada na putaria e na escatologia, como tantas outras que são evacuadas na nossa cabeça todo dia nesse meio. Afinal, a Xulaé, efetivamente, uma revista muito... chula: é difícil ler alguma história que não fale de cu, de merda, de piroca, de violência grotesca, coisas assim. Até aí, nada de novo no front, apenas a vaga impressão de que o quadrinista brasileiro contemporâneo tem algum problema com a fase anal freudiana. Lendo a revista, porém (que tem excelente editoração e diagramação), percebemos, em sutilezas filigrânicas, que a Xula tem alguns diferenciais. Em primeiro lugar, não são os mesmos nomes de sempre. Publicada por Luciana Foracipe, a moça responsável por um louvável trabalho de formiga de coletar e divulgar as melhores tiras em quadrinhos na Internet, Xula reúne alguns dos mais intrépidos quadrinistas nesse metiê, que agora procuram desenvoltura fora do ambiente virtual. São eles o brutalmente cínico Ricardo Coimbra, o irreversivelmente paródico Bruno Maron, o chocantemente psicótico Bruno Di Chico, e o flagrantemente irracional Calote. É um time de primeira, que procura exoticamente misturar escatologia com política, e putaria com uma visão sobre o Brasil. Por mais que, como toda revista mix, a Xula se manifeste ainda sob alguma irregularidade, é franca a intenção de se fazer quadrinhos, sim, sujos, mas em que a sujeira se revele como substância imprescindível para se compreender que porra é a sociedade em que vivemos. Coimbra e Maron são francamente superiores, ainda que os outros dois guardem suas personalidades e qualidades. O primeiro representa um mundo cinzento em que a cultura pop, o mundo midiático e o universo do consumo são insumos de uma sociedade demente e autodestrutiva. Poucos no Brasil hoje produzem com ironia tão incisiva. O segundo, na mesma linha, escrotiza com o imaginário infantil de uma geração narcísica para trazer à tona uma classe média retardada, inconsequente, oca. Se o universo agressivo de Xula pode parecer indigesto demais para alguns, há que se compreender que essa mistura entre um pensamento punk e uma leitura política do mundo nunca foram excludentes. Angeli sempre esteve aí para ligar uma coisa à outra, e esses caras são claramente seus descendentes.   



SurubotronDavi Calil (Dead Hamster, 2013, 28 p.): uma one-shot com capa à Frank Frazetta, ilustrações estilo BD contemporânea, ótima coloração, misturando temas que vão da (já tradicional) putaria à brasileira com sci-fi B? Parece um bom negócio. E é disso que se trata esta Surubotron, um verdadeiro achado em meio à anarquia de quadrinhos ruins/amadores que compõem boa parte do nosso cenário contemporâneo. Calil conta a história amalucada de um alienígena que cai na Terra e sem querer liberta uma substância (controlada por um cientista maluco) que faz todo mundo cair na suruba. E tome ótimos desenhos de sacanagem engraçada, misturados a sátiras sociais, paródias de filmes, etc. E o melhor: sem usar qualquer palavra (fazendo inveja às edições do projeto 1000). O autor não se esquiva de suas ambições e faz uma quadrinização hiperdetalhada, de leitor experiente, melhor do que muita coisa até no mercado indie americano. E é o primeiro trabalho do cara. Aguardemos mais.


Banhero Selvagem Nº 1 e 2– Pietro Luigi (Org., Independente, 2012/14, 22 p. e 32 p.): quando parecia que não tinha mais pra onde surgir revista de putaria, escatologia e humor doente, chega aqui no escritório da Raio Laser (a.k.a. minha casa) um pacote com a primeira Banheiro Selvagem, barbarizando pra todos os lados. O autor da empreitada fritona, carregada de bundas gigantescas, pin-ups com dinossauros e algum gore (a capa denuncia: “piadas infames, mulher pelada e violência gratuita” ou: “contém 20 mg de coliformes fecais”) é o infame Pietro Luigi, doidão de Londrina afeito a grafismos e uma estética que poderíamos até chamar rockabilly, não fosse tão torta. Há um salto grande entre a número 1 (um apanhado de desenhos histéricos, colagens pornográficas e tiras nem tão engraçadas assim) e a número 2, que se aproxima mais do padrão mix atual, com colaborações interessantes (como Chico Félix), algumas ilustrações shokantes e até uma entrevista com um bom desenhista holandês. Tudo sem perder a premissa zinesca, visceral (literalmente: vísceras aparecem logo na capa), representada especialmente pelos desenhos grosseiros, mas carismáticos, de Luigi. Vale destacar as capas, bem lisérgicas, e o texto do também infame Rogério Skylab (verdadeira peça de literatura marginal) na segunda edição. Não chega a ser state of art (óbvio), não é para ser levado a sério (evidente), mas vale como uma boa injeção de sem-noçãozice na veia. 


That's all, folks!

Geração Q: os novos quadrinistas brasilienses

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por Ciro I. Marcondes
fotos João Luiz Marcondes

Brasília, minha cidade, definitivamente não é para principiantes. Acossada por chuvas violentas e incessantes no verão, que depois dão lugar a uma longa e sufocante seca que dura quase 6 meses, a cidade tem fama de inóspita, pouco prática, com pouca abertura a quem vem de fora, de difícil penetração. De fato, as dificuldades para se tomar contato real com Brasília vão além de um clima pouco convidativo ou dos endereços calculáveis, matemáticos, complicados para quem vem de cidades “orgânicas”. Por mais que recentemente a última geração de brasilienses esteja se mobilizando com grande esforço para tomar conta dos incríveis espaços da cidade, promovendo grandes festas abertas, gratuitas, com vibrante intensidade cultural (até o carnaval, antes insosso e deplorável, ganhou força e levou milhares de pessoas às ruas este ano), algo de misterioso ainda se preserva nos cidadãos brasilienses. Algo que penso pertencer a uma qualidade cultural intrínseca, rarefeita, difícil de detectar, quase somente percebido pelos mesmos, pequeno segredo de uma etnografia ainda por se fazer.


Origens modernas

Falo não apenas de timidez ou de um caráter reservado (o brasiliense tem fama de recluso, antipático, mas creio que seja mais timidez mesmo), mas de todo um universo secreto, que vibra dentro dos apartamentos, das repartições e das instituições culturais da cidade. Trata-se de um universo que não se abre facilmente, autopoiético (isto é: faz sentido somente para si mesmo), o que faz da cidade um lugar paradoxalmente provinciano e ao mesmo tempo cosmopolita: o cidadão brasiliense pode se recolher em seu universo particular, mas viajou o mundo (física ou virtualmente), sabe o que faz sentido política e culturalmente nos tempos atuais, projeta sua expressão numa interface digital que o faz se reconhecer como cidadão de si próprio e ao mesmo tempo de lugar algum. Por mais orgulho que tenha de suas origens modernas, de viver sob a sombra de uma arquitetura arrojada, de se reconhecer em certa identidade geracional, ele é desde sempre cético, ecumênico, até laico.

De fato, o visitante que chegar aqui e procurar a civilização de uma cidade “orgânica” não vai encontrar nada além de frieza e vazio. Vai visitar a esplanada dos ministérios, ver monumentos estéreis, raciocinar qualquer coisa relacionando o poder público à assepsia coletiva, andar um bocado e não chegar a lugar algum. Mas isso não é Brasília assim como um cartão postal não é uma cidade. Como uma mulher à moda antiga (desculpem aí feministas), Brasília se oculta, requer que seja seduzida. O visitante que souber entrar nestes meandros, conhecer os detalhes idiossincráticos dessa maçonaria de brasilienses, vai provar deste cosmopolitismo provinciano, entender a cabeça de seus habitantes, será inevitavelmente convertido. Brasília foi formada, como se sabe, por visitantes de todo o País, e assim continua sendo. Brasília é seus estrangeiros, catequizados. 

Brasília: seca e solidão
Apesar da gentrificação crescente da cidade, motivada por um cartel da especulação imobiliária (tornando-a superpovoada, violenta, vítima de mazelas metropolitanas), Brasília ainda pode ser reconhecida em suas formas culturais. Infiltrar-se no complexo sistema de relações interpessoais que encontramos por aqui requer, por exemplo, conhecer as alteridades da cidade demonstradas em um filme premiado como A cidade é uma só, do ceilandense Adirley Queirós. Ou em extremos musicais que passam longe do imaginário construído nos anos 80, como o rap de Gog ou o college rock do finado Prot(o), que segue vivo no coração dos brasilienses. É preciso entender um pouco como se mobilizam seus artistas plásticos, dramaturgos, atores, produtores culturais, poetas, DJs, pessoas que tracejam uma linha invisível de motivações que atravessam os muitos bares, cafés, cineclubes, galerias, parques e outros espaços que concatenam uma dimensão lúdica para Brasília.

Não surpreende, portanto, que, dos anos 2000 para cá, diante de uma renaissence cultural que vem sendo empreendida especialmente por gente jovem e disposta a chamar a cidade de sua, tenha florescido uma cena de quadrinhos em Brasília. Uma primeira leva, composta de gente que já se pode dizer veterana, acabou formando ao redor do chamado “complexo Laje” (uma casa na W3 Sul que serve de ateliê e escritório aos artistas) um forte de resistência em prol da ilustração e dos quadrinhos, gerando força em torno da marca “Samba”, que já rendeu várias publicações. Além dos três “samba boys” (Gabriel Góes, Lucas Gehre e Gabriel Mesquita), outros nomes interessantes vêm já ralando com quadrinhos há um certo tempo, como Evandro Esfolando e suas resenhas de shows em quadrinhos, André Valente e sua produção mezzo arté, mezzo paródica, ou Caio Gomez e o pessoal que fundou o Pimba, jornal em quadrinhos bem maneiro recém-lançado pelo “Sindicato” (outra “casa de artistas” na W3). O entusiasmo pelos quadrinhos vem de um consumo grande na cidade desde os anos 80 (que formaram essa galera) somado a uma libertação do curso de Artes Visuais da UnB em prol de um conceito mais amplo de arte, dentro do qual se incluem os quadrinhos. Assumir, dentro do curso de artes, o quadrinho como, digamos, uma “categoria primária” foi algo que foi construído de dentro para fora, a partir das demandas novas dos próprios alunos, o que faz com que hoje, por exemplo, um exímio quadrinista saído desta geração (Eduardo Belga) seja professor no Instituto de Artes.

Em 2013 tive a oportunidade de ministrar, dentro do curso de Comunicação na UnB, um curso completo sobre a História das Histórias em Quadrinhos, cujo programa se assemelhava mais ou menos a isso aqui. Poucas coisas em minha carreira como professor e pesquisador foram tão empolgantes quanto ministrar um curso de histórias em quadrinhos. São três as razões principais: primeiro, saber que você está trabalhando com um material cultural que é puro ouro: vasto, complexo, diverso. Em segundo lugar, saber que poucos sabem disso e que, para a maioria dos alunos, tudo apresentado se pareceria com o abrir de portas de universos inteiros de referências. Por fim, o modo alucinado e vívido com que fomos atravessando todas aquelas escolas de quadrinhos me fez não esquecer aquela turma e criar laços de amizade com eles e com sua produção.

Nesta turma, eu tinha alunos de cursos diversos: Cinema, História, Filosofia, Design, etc. Não posso me esquecer dos alunos dos outros cursos, especialmente os muitos de Comunicação, mas foram principalmente os alunos de Artes Visuais que deram caldo especial para aquela turma, por um motivo muito simples: eles faziam e queriam fazer mais quadrinhos. Obviamente seria arrogante eu dizer que minhas aulas deflagraram o processo todo em que mais de dez dentre aqueles alunos passaram a publicar quadrinhos com regularidade, fossem na forma de zines, fosse na Internet, fosse em outras plataformas (publicando com a geração anterior, inclusive). O fato é que as aulas serviram para congregar estes artistas semana após semana em torno do universo dos quadrinhos; serviram para catalisar o entusiasmo pelo ofício; serviram para configurar uma protocena que, hoje, um ano depois, se solidifica através de feiras de quadrinhos (há pelo menos uma por mês na cidade), projetos no Catarse, reportagens em revistas e jornais e, é claro, amadurecimento autoral e empreendimentos mais ambiciosos. Um exemplo disso é a grande popularidade da tira Batata frita murcha, cujos quatro integrantes pertencem a esta “Geração Q” (adoro dar nomes a essas coisas). Todos frequentaram minhas aulas. A tira, difundida via redes sociais, pode pecar por um certo pieguismo (vá negar!), mas é bastante original: cada um dos quadrinistas publica em um dia na semana, com uma cor específica, momentos frustrantes, insightsínfimos, pequenas delicadezas e afecções do dia-a-dia. Apesar do mote comum (que dá liga e unidade ao projeto), cada artista consegue, com histórias mínimas, manter a sua integridade autoral. Já tem mais de 23 mil fãs no Facebook, e contando.




É por isso e por outros motivos que posso dizer que: 1) sim, há uma nova geração de quadrinistas produzindo material autoral em Brasília, e esta geração se mescla com a imediatamente anterior, configurando uma cena que parece sólida (a ver), com certeza uma das mais férteis do Brasil. E, 2) posso afirmar que, diante deste cenário, a partir dos anos 2000, entender Brasília passa também por entender seus quadrinistas e a arte dos quadrinhos em geral, que já afirmei ser a mais importante para o século XXI. O quadrinho tem a virtude exclusiva de configurar o texto literário com a qualidade plástica, indiscernível, das imagens, produzindo um tipo de leitura de um hibridismo que é pura dinamite narrativa (Flusser diria: leitura em linha e de superfície ao mesmo tempo), em que o autor pode reinventar o meio a cada diferente investida. Logicamente, a capacidade que um meio como este tem de expressar a dimensão cultural profunda de uma cidade é muito grande. Brasília, a cidade que se vela, se revela por meio da melancolia, do experimentalismo ou da agressividade destes quadrinhos. Como a cidade que lhes abriga, estes quadrinistas não fazem arte de fácil deglutição, e por vezes se escondem por trás de aparente vacuidade. Para que eles possam se explicar, resolvi então convidar os quadrinistas desta novíssima Geração Q para responder quatro perguntas relativas ao mercado e à arte dos quadrinhos, precedidas por um comentário meu sobre a arte de cada um, ressaltando suas qualidades. Convido o leitor, pois, a conhecê-los. São sete entrevistas. Vá pela sombra.

As perguntas:

1 – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

2 – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

3 – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

4 – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

As respostas:


Lo-Fié o nome da empreitada de Pedro D’Apremont, o mais rabugento, antissocial e irascível quadrinista desta geração. Com um traço carregado de personalidade, indefectível a cada nova produção (influência de indie comics, coisas como Seth e Dan Clowes), seus quadrinhos são os únicos no Brasil a misturar elementos como sátiras de black-metal, pós-música e deuses nórdicos obscuros em histórias de terror, além de putaria e sarcasmo. Pedro tem o mérito de manter um cast fixo em seus gibis, dando continuidade às histórias, com personagens absurdos e carismáticos, como o deus-doidão Shiva, um pé-inchado de moletom sem calça (ou seja: nu na parte de baixo) tocando o terror por onde passa. A segunda edição da Lo-Fié de um primor tão grande que nem parece um zine. Corra atrás. (CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Pedro D’Apremont– Faço quadrinhos independentemente se isso é uma atividade rentável ou não, faço HQs porque sempre amei lê-las e sempre tive vontade de contar historias de um jeito gráfico. Além do mais, quadrinhos são um meio artístico de baixíssima responsabilidade financeira. Os materiais usados nos desenhos são geralmente muito baratos, você não precisa contratar outras pessoas para te auxiliarem, você pode reproduzir seus gibis em “xeroxes” que cobram 10 centavos por impressão... Apesar de você não conseguir viver de quadrinhos, pelo menos é possível você não gastar quase nenhuma grana fazendo-os, ao contrário do que acontece em outras formas de arte como cinema, escultura ou mesmo música. Mesmo quando a sua intenção é fazer um produto mais “profissional”, por assim dizer, o custo desse objeto, seja ele um gibi ou um livro, será muito mais barato do que, digamos, um disco ou um longa-metragem.

Deuses nórdicos e black metal
A trava que enfrentamos no mercado brasileiro agora não se deve a uma falta de qualidade ou variedade de trabalhos que temos aqui dentro do país, mas mais a uma falta de editoras de grande e médio porte que publiquem obras de cartunistas autorais e talentosos em grande tiragem e com boa distribuição. Enquanto contarmos apenas com a Quadrinhos na Cia (da Companhia das Letras), a Zarabatana e a Conrad, não teremos uma catálogo grande de quadrinhos acessíveis ao grande público, disponível em varias lojas distribuídas pelo país inteiro. Da mesma forma, enquanto os quadrinhos publicados em larga escala oferecerem um espectro limitado de temas, gêneros, traços e narrativas, o grosso da população brasileira ainda tratará essa forma de arte como mero entretenimento descartável e serializado.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Shiva: doidão
Pedro D’Apremont– Essa é difícil! Hehehe. Acho que eu tento sempre dialogar com aspectos aparentemente contraditórios nos meus trabalhos: quero que minhas historias sejam bem-humoradas, mas que tratem sobre assuntos pesados ou perturbadores ao mesmo tempo; que sejam simples, mas que possuam algum tipo de informação ou mensagem que não esteja visível se lidas de um jeito superficial. Acho que justamente por causa dessas intenções meu traço fica entre o cartunesco sintético e o realismo, sendo esse realismo bem relativo, hehe.

Talvez por isso eu goste tanto dos quadrinistas americanos independentes, ao estilo do Daniel Clowes, Robert Crumb e outros caras como Joe Matt e o Seth. Eles conseguem balancear todo drama, peso e seriedade dos seus quadrinhos com humor sutil e um pouco de de autoironia. Mesmo quando eles fazem alguma historia escrachada (principalmente o Crumb), eles conseguem dosar o humor no nível certo pra que o resultado não seja um besteirol tosco. O foda é que eles fazem isso parecer a coisa mais fácil do mundo! 

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Pós-música
Pedro D’Apremont– Dentro dos quadrinhos gosto principalmente da cena independente norte-americana. Parece que desde o final dos anos 80 houve uma onda forte de cartunistas maravilhosos que nunca acabou ou ameaçou entrar em hiato. Adotei o Daniel Clowes como meu mestre supremo já há algum tempo, mas ando lendo muita coisa de gente como Charles Burns, Noah Van Sciver e de alguns canadenses como o Seth (que eu já mencionei) e o Chester Brown. Fora isso, muitos amigos e colegas meus como o Góes e o André Valente, junto com os caras da Gibi Gibi e da Revista Samba têm me influenciado muito e me forçado a trabalhar cada vez mais e melhor. Principalmente a dupla Góes e Valente têm uma qualidade de desenho, traço e humor que eu invejo e aspiro a alcançar. É interessante ver o quanto o quadrinho brasileiro renasceu e adquiriu uma riqueza e refinamento em tão pouco tempo! Acredito que nós temos alguns dos melhores cartunistas e algumas das melhores publicações do mundo hoje em dia, assim como já os tivemos no passado, na geração do Angeli e do Laerte.

Alguns gêneros musicais como Black Metal, Noise, Dark Ambient e Punk também me inspiram e me ajudam a entrar no clima de algumas das minhas historias. A temática tratada nas letras desses estilos (principalmente sexo e violência) e a forma como esses temas são tratados também tem a ver com o que faço nos meus quadrinhos.  Tenho a impressão que grande parte das coisas que fiz nos meus gibis foram movidas por uma tentativa de recaptar um sentimento ou uma sensação que tive quando assisti um filme ou ouvi algum disco. Com música isso ocorre de um jeito quase imediato, pois quase sempre trabalho ouvindo algum álbum no som do escritório aqui de casa, mas lembro, por exemplo, que fiquei vários meses obcecado com Twin Peaks (tanto o seriado quanto o filme, mas principalmente o longa-metragem). Por muito tempo tentei reproduzir as emoções que essa obra me passou, às vezes procurando outras coisas que me trouxessem esse sentimento de volta, às vezes tentando passá-lo para os meus próprios quadrinhos. Isso é só um episódio, mas durante toda a minha vida eu passei por situações onde fui arrebatado por algo que eu não conseguia botar em palavras e tentava resgatar esse algo fazendo um desenho solto ou uma historia. De certa forma é sobre essa relação entre arte e nostalgia que a HQ “Érico”, que eu fiz pra Lo-Fi 2, fala. Se eu consegui me expressar bem ou não, isso já é outra historia, hehehe.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Pedro D’Apremont– Vejo o quadrinho como uma forma de arte como qualquer outra, e não como sub-gênero da literatura ou das artes plásticas. Acho que se os cartunistas, assim como os editores, tratassem as HQs como expressões artísticas autônomas, que não devem nada à prosa, as chamadas “narrativas gráficas” e “romances gráficos” seriam tratados com muito mais respeito, principalmente no Brasil.


É possível que você já conheça o trabalho de Gabriela Masson ou seu codinome, Gabi LoveLove 6. Ela certamente é a garota produzindo quadrinhos mais conhecida de Brasília, já despontando com seu estilo minimalista, de poucos quadros, mensagens subliminares e linguagem onírica abordando o mundo da sexualidade e da afetividade em seus dois volumes do zine A ética do tesão na pós-modernidade. Porém, é com a série Garota Siririca, publicada no portal da Revista Samba, que ela se projetou nacionalmente. Fortemente engajados em um feminismo que procura libertar através de um conhecimento completo do corpo feminino, os quadrinhos dela são monocromáticos, visualmente didáticos, mas charmosos, encantadores. Seus temas demolem tabus, cobrindo cada aspecto da sexualidade feminina, e às vezes resvalando também em pequenas narrativas próximas a Dykes to watch out for, de Alison Bechdel. Seu trabalho mais emocional, cheio de sutilezas, pode ser visto também em Batata Frita Murcha. (CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Gabi LoveLove6– Pessoalmente creio que os quadrinhos sejam uma poderosa ferramente de comunicação e atualmente são o meio pelo qual melhor expresso o que desejo comunicar ao mundo. Percebo que graças à Internet, em especial às redes sociais, o consumo e contato com quadrinhos tem aumentado, possibilitando, por exemplo, cada vez mais projetos a serem financiados coletivamente em plataformas como o Catarse. Essa barreira entre quadrinhos e arte tem se flexibilizado cada vez mais a partir de experimentações narrativas e gráficas dentro do suporte dos quadrinhos. Mais lentamente, o tema tem sido introduzido na academia em áreas de comunicação e artes visuais. Acredito que sejam necessárias mais pesquisas sobre quadrinhos no ambiente acadêmico. Também uma maior produção de quadrinhos independentes e nacionais para maior expressividade do mercado frente à indústria de quadrinhos. Uma formação e mentalidade mais empreendedora dos próprios autores é necessária para que possam articular melhor sua circulação e construção no mercado independente em relação ao público, distribuidores, editores, produtores...

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Gabi LoveLove6– Quadrinhos autobiográficos, sobre sexualidade, relações interpessoais e sentimentos, sob uma perspectiva feminista. Meus quadrinhos orbitam em volta destes temas. Graficamente as experiências variam de acordo com a circulação, público, temática que viso para cada projeto. Escolho abordar estes temas pois acredito que tenham importância política e que possam estimular reflexões acerca das circunstâncias sociais em que estamos submersos.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Gabi LoveLove6– Atualmente consumo especialmente quadrinhos, fanzines e outras publicações independentes e nacionais. Também consumo livros de educação com abordagens feministas ou políticas, como os dos autores Guacira Lopes Louro e Paulo Freire. Os quadrinhos de colegas e autores de possível contato direto me influenciam fortemente especialmente em relação às experiências e métodos gráficos que utilizo na minha produção. As pesquisas em educação e política me ajudam a desenvolver as temáticas que aprecio.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Gabi LoveLove6– Penso que, a depender da narrativa e visualidade de um determinado quadrinho, as barreiras que dividiriam este meio de outros, legitimados pelo mercado de arte, se tornam nebulosas e podem ser ultrapassadas. Porém, os autores não estão especialmente preocupados em serem acolhidos por este mercado específico, uma vez que existe um menos expressivo porém crescente mercado voltado aos quadrinhos e publicações independentes. Creio ainda que possuam preocupações acerca de desenvolver um trabalho artístico que gere reflexão e experiência sensitiva tanto quanto os artistas legitimados pelo mercado.

Lovelove 6: sutilezas

Cesariana– Lucas Marques

Lucas Marques é um caso único na HQ brasiliense de hoje em dia. Ele escreve e desenha um romance gráfico autobiográfico, fortemente influenciado pela escola indie americana (Charles Burns, Craig Thompson, etc.) que vem sendo publicado na forma de um zine muito caprichado em fascículos, Cesariana. Delicada e ao mesmo tempo sombria, a história toca a trajetória de três adolescentes num cenário típico de classe média baixa brasiliense, com surpreendente maturidade narrativa e questionamentos de ordem filosófica (a existência de Deus, o valor do Bem, fronteiras éticas, growing pains, etc.). Lucas pretende concluir a história em 5 edições e estamos prestes a ver nascer a terceira. Esperamos que o ótimo nível se mantenha.(CIM)

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Lucas Marques– Se eu fosse me ater a um retorno econômico certamente eu não escolheria o quadrinho como profissão. Porque além de exigir muita dedicação e tempo no processo, não são muito valorizados no mercado brasileiro e muitas vezes nem em outros países mais culturalmente abrangentes. O que me leva a insistir nessa forma de expressão é uma espécie de sentimento de fidelidade. Os quadrinhos são os responsáveis por me fazer despertar interesse pelo mundo e pela arte. Antes do meu envolvimento com os quadrinhos eu não tinha muitas coisas que me estimulassem a querer fazer algo. Mas nessa forma de linguagem eu encontrei algo muito essencial, algo que se adequava perfeitamente ao que eu julgava ser a minha forma de expressão. Me atrai muito as possibilidades do que posso fazer com imagens e palavras, é como se eu tivesse uma liberdade expressiva ilimitada e isso é muito estimulante para mim. Embora, eu também tenha muito interesse por animação e cinema.

Acho que para que o quadrinho adquira esse status de arte ou uma maior relevância no mercado - que ao que me parece tem acontecido, embora bem ao poucos - é preciso amadurecer o que se entende por essa forma de expressão, tanto o público, quanto os editores e até mesmo os próprios autores.  Aqui em Brasília, onde moro, parece que se você não está estudando para um concurso ou se iniciando numa profissão mais prática e de retorno financeiro imediato, você é uma espécie de idiota. Não estou dizendo que o que essas pessoas pensam a respeito disso não têm qualquer fundamento e que elas fazem isso por pura maldade, isso é apenas um reflexo do que a dinâmica socioeconômica lhes impõe. O fato é que geralmente se tem uma ideia muito limitada do que é cultura e da importância que ela tem na nossa sociedade. Em algum lugar que não me lembro onde ouvi dizer que a etimologia da palavra “cultura” está ligada ao processo de cultivar o plantio, preparar a terra, as sementes e esperar que ela dê frutos. Assim, temos que entender que cultura é algo indissociável de tempo, de amadurecimento. Se o nosso mercado econômico e o nossas políticas entendessem e valorizassem esse processo, acho que os artistas não teriam tantas dificuldades de sobreviver nesse meio.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Lucas Marques– Não sei definir o tipo de quadrinho que faço, consigo identificar algumas influências nele, mas não saberia defini-lo. Acho que essa parte de classificação, definição e identificação de tendências deve vir mais pela crítica e pelo público do que pelo próprio autor. Ao menos eu, em meu processo criativo, busco me desvencilhar de classificações, muitas vezes só vou descobrir depois o porquê do que fiz. Como sou um autor iniciante ainda estou buscando desenvolver e amadurecer meu estilo, acho que ele ainda está em processo.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Juventude brasiliense
Lucas Marques– Busco consumir todo tipo de bem cultural que me leve a um experiência estética interessante. Os que mais tenho acesso são livros, quadrinhos, filmes e música. Geralmente nos livros, quadrinhos e filmes eu vou buscando por meio dos autores e diretores, e na música pelo gêneros e músicos que me agradam. Na literatura eu gosto muito dos clássicos, embora me falte muita coisa para conhecer, tenho um apreço muito grande pela literatura russa. Dos escritores contemporâneos que posso dizer que conheço alguma coisa, gosto muito de Gonçalo M. Tavares: é um escritor que adquiriu um prosa muito concisa e segura e um olhar muito sóbrio para as coisas que descreve. Nos quadrinhos o que mais leio são os formatos graphic novel e autobiográficas, mas procuro conhecer um pouco de tudo, embora tenha um bloqueio muito grande em ler super-heróis. Tanto no cinema, como na literatura e nos quadrinhos que são meios que lidam com a narrativa, o que eu busco é  alguma originalidade ou inovação na forma de se narrar e apresentar eventos ou ideias. Acho que o cinema influenciou muito minha forma de lidar com a narrativa, porque por muito tempo me envolvi de uma forma ou de outra com essa área, fazendo storyboard, direção de arte ou mesmo só assistindo. Aprendi a escrever roteiro no modelo cinematográfico e é o modelo que também venho usando nos quadrinhos, pelo menos os mais longos. E no “Cesariana”, meu quadrinho em produção, me baseei muito em vídeos de skate que via na adolescência.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Lucas Marques– Uma coisa que observei e aprendi durante o meu curso (Artes Plásticas) é que o termo “arte” na forma como utilizamos não é nada além de uma espécie de carimbo para qualificar algo, atribuindo-lhe um status social. É uma palavra que empregamos para legitimar ou não um tipo de material criado dentro de nossa cultura. Penso no quadrinho simplesmente como um meio, um meio de se transmitir algo com uma quantidade de recursos ilimitada, mas com suas especificidades, como em qualquer outro meio. Embora ele também possa ser diversas outras coisas, entre elas arte.


Pequi– Taís Koshino e Lívia Viganó

O trabalho constante e cada vez mais misterioso desta dupla de autoras recebe as recompensas e sofre com as intempéries de se fazer quadrinhos extremamente experimentais. Carregados de non-sense, minimalismo pueril (doodling), tiradas sarcásticas e coisas que se parecem com algo que Liniers faria após um colapso mental, os quadrinhos destas garotas passam por experiências de linguagem, trocas sensoriais, jogos de palavras, ou puro e simples mergulho no absurdo. Podem ser encontrados em vários zines publicados desde 2011 (incluindo Pequi 1 e 2), e também em um site muito maneiro com várias séries online. Para alguns leitores, o tom autista das tiras pode levar desde ao desdém até à mais legítima revolta. Eu, no entanto, recomendo fortemente a tira Vida difícil. Certamente é uma das coisas mais lúdicas produzidas por aqui. (CIM)  

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Taís Koshino e Lívia Viganó– Por que tentar outra carreira? Para nós, seguir fazendo quadrinhos é um risco necessário.

O interesse por quadrinhos no Brasil, com a chegada das graphic novels, tem aumentado, as produções têm crescido, estão surgindo novas feiras e festivais voltados para a produção independente (onde realmente há possibilidades de algo novo). É assim, aos poucos que vamos avançando.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Taís Koshino e Lívia Viganó– Não sei defirnir os quadrinhos que faço, eles surgem a partir de uma angústia de dizer e produzir algo. (Taís) O estilo às vezes se estabelece como uma resposta à narrativa.(Livia)

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Taís Koshino e Lívia Viganó - Recentemente entramos em contato com vários quadrinistas diferentes, variados formatos de zine. É sempre bom estar aberta a novas referências, sejam elas pinturas, quadrinhos, enquadramentos num filme, ou a própria vida. (Taís e Livia)

De quadrinhos, estou pirando mais num finlandês, o Roope Eronen, e no Yuichi Yokoyama, um artista japonês do alternative manga. (Taís)

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Taís Koshino e Lívia Viganó - Quadrinhos são arte.


Pequi: pegada dadaísta

Vudu Comix– Mateus Gandara, Heron Prado, Vitor Vitali

A Vudu Comix é um selo de quadrinhos voltados principalmente para o insólito, o horror, o humor negro e o fantástico. É uma das únicas iniciativa de “gênero” na HQ brasiliense contemporânea. Quem encabeça esta empreitada é Mateus Gandara, um quadrinista de traço vigoroso e sutileza poética, que melhora a cada produção lançada. Há um salto, por exemplo, entre os rascunhos de lirismo intimista em As sessões, o senso de aventura e horror gótico tresloucado em Flagelos Noturnose a dimensão existencial primitiva, quase religiosa, em Mondo Colosso, seu melhor trabalho. Sendo um dos desenhistas de maior personalidade da cidade, ele cada vez mais avança também na sofisticação narrativa, dispensando balões e transformando a leitura de seus quadrinhos em um processo de deslindar as possibilidades visuais de seu trabalho.

Por mais que a Vudu hoje conte apenas com a presença de Gandara, ela já teve outros colaboradores. Heron Prado, dono da tira mais non-sense e ácida do Batata Frita Murcha, é um ilustrador caótico, de desenhos rascunhados e cheios de hachuras, bom para histórias de bas-fond perturbador, caso da recente Breve, ou de suas próprias tiras publicadas no portal da revista Samba, a série Futuro de pretérito, um inventário de situações absurdas e possibilidades surrealistas. Outro nome de destaque que colaborou com a Vudu é o do roteirista Vitor Vitali, um dos mais novos nessa galera. Ele escreveu tanto Breve quanto Mondo Colosso, a primeira com pegada noirterceiromundista, e a segunda com visão mais holística, cheia de recursos de perspectiva e ponto-de-vista, aprofundando-se em possibilidades narrativas. Tem potencial, especialmente pela parca quantidade de roteiristas especializados em quadrinhos hoje em dia no Brasil. (CIM)

A colossal Mondo Colosso
RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Mateus Gandara– Particularmente, não pauto minhas escolhas de acordo com as consequências que elas podem acarretar. Já fiz isso durante um longo tempo, talvez durante toda a minha vida. Não faço isso mais. No ano passado, estive muito próximo de encerrar minha temporada nesse mundo, e isso me fez reavaliar minhas prioridades. Entre elas, quais concessões deveria fazer, no tempo que me restasse, e quais não. Nunca mais abrirei mão de fazer o que eu gosto por qualquer outro motivo que não seja o da sobrevivência, ou da manutenção da minha felicidade. Depois do amor pela vida, pela humanidade e pelo Led Zeppelin, tem o amor aos quadrinhos. Abaixo disso está todo o resto. Tenho tempo, vontade e recursos. O que me impede de só fazer o que eu gosto nessa vida tão breve? O julgamento alheio? Meu próprio julgamento? Foda-se o julgamento! Viver está além disso. E eu estou vivo. “Não me comprometo, nem mesmo em face ao armagedom!”

E tem mais: se os quadrinhos ficarem entre eu e a minha vida, fodam-se os quadrinhos também!

Para que os quadrinhos se estabeleçam no Brasil - cultural e economicamente - é preciso, nesse momento de pioneirismo, que venham à tona o máximo de quadrinistas que for possível. Todos eles, eu diria. E com coragem. É preciso que os desenhistas parem de ficar batendo punheta em casa - com seus caderninhos de desenho geniais que só os amigos veem, com seus blogs que nunca são atualizados, com suas histórias de amor e suas tragédias particulares - e comecem a desenhar aquelas histórias incríveis que eles pensam há anos, escrever aquele roteiro genial que você contou pra teu amigo deixando ele com fogo nas calças, sentar com outros quadrinistas e aprender como se faz um quadrinho, ensinar a fazer, montar um pdf, fazer um orçamento numa gráfica e imprimir um quadrinho! Eu garanto que poucas coisas são tão emocionantes na vida de um desenhista, do que ver uma história tua impressa. Ainda que seja curta. Ainda que você não tenha dado todo o sangue. Mas tá lá. E aí não tem mais volta, você vai querer mais. E então a gente começa a formar um público. Daí, um mercado.

A(o)s punheteir@s, reitero que o que eu disse anteriormente foi dito com todo o amor que posso lhes transmitir, do fundo do meu coração. De um punheteiro para o outro. O primeiro passo para deixar de ser um punheteiro, é reconhecer-se como tal. Sem julgar, só reconhecer. É isso que tu é, um descascador - uma máquina de procrastinação. E está tudo bem. Quem nunca procrastinou que atire a primeira pedra. Mas só que tu sabe desenhar e escrever, e gosta disso. E acha que é bom nisso. Então seja o punheteiro que escreve e desenha. Não julga, só faz. E faz porque gosta, não porque acha que é bom. Isso vem depois. Continua, desenha até o fim, nem que seja uma história de uma página só! Imprime, distribui. Sem nunca julgar, mas ouvindo as críticas com atenção. Vai desenhando, vai fazendo outras histórias, outras maiores. Então o processo começa a te consumir. E aí vai ficando menos deprimente ser um punheteiro. Tu até tira um tempo pra uma punheta, porque então você até precisa de uma! Depois você vai numa gráfica qualquer e imprime umas 100 cópias da tua revista. Nem começa com o papo da grana! Vende tuas revistas. Pronto!

Flagelos Noturnos
E então você passa a ser uma pessoa saudável, que faz o que gosta e que pratica uma atividade sexual perfeitamente saudável e comum, nas horas vagas. Quem sabe não se assume um quadrinista? Quem sabe até não melhora tua vida?

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Mateus Gandara– São quadrinhos narrativos lineares, a princípio, que contam histórias com início meio e fim, e com esmero visual - tendo em vista minhas influências e os mais de dez anos de estudo de desenho.  São quadrinhos com argumento enxuto, que dão maior enfoque às sensações que ao discurso. São dinâmicos e soturnos. Tematicamente, sinto que ainda não me defini completamente, mas seria algo abrangendo fantástico/sci-fi/terror/drama. Tenho vários outros projetos em gêneros diversos, com temas mitológicos, policiais e documentais, mas ainda não os botei na lenha, portanto não posso definir qual seria meu gênero predileto. Isso é até um tanto irrelevante, na verdade. Adoro todos os gêneros narrativos, e pretendo explorar todos eles. Pra mim, uma história tem que ser bem contada, independente do gênero, e que tenha nela algo de vivo, que nos faça sentir vivos, ou que nos atente pra vida. Que pulse por si, como algo vivo.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Mateus Gandara– Minhas maiores inspirações para os quadrinhos, na verdade, estão no cinema. Gosto de quadrinhos que têm aspecto de filme. Gosto de síntese; de questões complexas resolvidas em gestos, situações, imagens ou com poucas palavras. Gosto do charme dos filmes europeus pós segunda guerra, e da intensidade do cinema norte americano dos anos setenta. Atualmente está difícil de gostar de cinema (no que faz referência aos quadrinhos), os EUA estão muito repetitivos! Gosto de filmes românticos. Simplesmente amo tudo do Hayao Miyazaki! Tem o Masamune Shirow (Ghost in the Shell) e o Katsuhiro Otomo. Considero Akira uma leitura obrigatória pra quem pretende fazer quadrinhos. Assistir ele também, várias vezes.

As sessões
Quanto aos quadrinhos, Frank Milleré incontornável; se você não vai a ele, ele vem até você. É uma das minhas primeiras referências em quadrinhos, com o Cavaleiro das Trevas e o Ronin, que eu li pela primeira vez quando tinha uns 14 anos. Alan Moore e Grant Morrison para  aprender a ser prolixo sem ser insuportável, além de suas histórias inesquecíveis – Watchmen e Grandes Astros Superman. Moebius, Dave McKean, David Mazzuchelli, Simon Bisley, Liberatori para inspirar o desenho. Neil Gaiman. Lobo Solitário pra aprender a fazer quadrinhos, e ainda aprender alguma coisa decente para a vida. Acho o Eisner chato, apesar de sua importância para que a linguagem dos quadrinhos fosse elevada a um patamar de seriedade, em um contexto sócio/cultur... CHATO!! A não ser pelo Spirit! Spirit, sim!

A literatura é crucial para quem faz quadrinhos. Alguns autores como o Tolkien e o Asimov engrandecem muito a criatividade de uma pessoa. Adoro os livros do Mutarelli. Um deles, o Miguel e seus Demônios, me deu muita vontade de transformar em quadrinhos. Quem sabe? Tem o Cervantes, que dá uma aula de humor, dentre outras variadas qualidades da narrativa escrita. Saramago tem um estilo original (que é tipo escrever errado) que dá muita fluidez pra sua narrativa, e isso é muito importante nos quadrinhos. Gabriel Garcia Marquez, óbvio. Dashiel Hammett, Edgar Allan Poe, Jonathan Lethem e Chuck Palahniuk como maiores incentivos para os pretendidos romances policiais. Leio muito de mitologia grega e história antiga em geral. Nada é mais inspirador do que ler sobre as civilizações antigas. Sou apaixonado pela pré-história.

Em um primeiro momento, tudo o que um artista (qualquer pessoa, na verdade) consome, que seja de ordem cultural – livros principalmente -, irá ampliar as fronteiras de sua criatividade, irá expandir também sua capacidade imaginativa e apurar seu gosto por tudo quanto existe na vida, caso já não o tenha desperto. O que desperta aí é sua consciência - que é algo liberto e não algo inato. É adquirida por mérito. Uma vez desperta a consciência de um artista, tudo o que há - e muito do que não se sabe ao certo se há realmente - lhe servirá como base para a criação.

Acima de todos, eu tenho como a maior inspiração para a criação artística, quiçá para toda a vida, o filme Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa. Ali está tudo o que eu pretendo enquanto artista, tudo em que eu acredito enquanto ser consciente e tudo o que eu considero importante saber sobre o mundo.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Eu não penso nisso. Mas tenho certeza que deve culminar em um acalorado ensejo intelectual pelo o qual eu não tenho o menor interesse. Não acho que “ser arte” ou não importe muito pra qualquer coisa que “seje”.

A arte de Heron Prado

Mês– Daniel Lopes e Augusto Botelho

Escrever, editar e publicar um zine por mês. Com este foco em mente, Daniel Lopes e Augusto Botelho realizaram o empreendimento laborial mais extenso nos quadrinhos de Brasília em 2013. Mês teve doze edições, cada uma delas com o nome do mês de lançamento. Em 2014, via Catarse, eles reuniram todos os zines em um box-set com coisas extras. A qualidade dos zines cresce a cada edição, sendo muito tímida e amadora no começo, e se tornando mais ambiciosa, experimental e autoral no final. Geralmente Mês traz vários convidados, alguns totalmente dispensáveis e outros que também estão listados neste texto. O que é vital para a identidade e sagacidade do zine, no entanto, é o trabalho de seus editores-quadrinistas. Daniel Lopes, um disciplinado desenhista interessado pela história dos quadrinhos, nos apresenta a ótima série Marco, o macaco do espaço, formatada em tiras à moda da era de ouro, com ecos de Flash Gordon e Planeta dos Macacos, sendo ao mesmo tempo homenagem e revisão destes imaginários. Esta HQ não é apenas space-opera de aventura ligeira, mas também revisão de ideias sobre solipsismo, psiquismo, política, história, etc. Seus desenhos são elegantes e simples, com ótimo design de personagens. Já Botelho, dono de um traço mais barroco, mistura de influência de BD adulta com HQ brasileira dos anos 80, faz transparecer estes aspectos também em seus temas. Sua principal contribuição é a história longa O aguardado, mostrando uma surreal aparição do Rei Sebastião nos dias modernos, como espécie de Ronin (Frank Miller) abrasileirado, ecoando o sentido político manifestado nos protestos de 2013. Uma dupla cuja maturidade artística ainda está em processo, mas que não deve parar de trazer novidades de agora em diante. (CIM)

Daniel Lopes
  
Marco: referência à era de ouro
RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante destas dificuldades, por que tentar esta carreira? O que você acha que tem de acontecer para avançarmos nestes méritos?

Daniel Lopes– Acho que o negócio mesmo é arriscar e fazer o que gosta. Levei muito tempo pra começar a fazer quadrinhos, justamente pela insegurança de arriscar, por não achar que está bom o suficiente, sobre o que é um bom desenho, etc. Aqui em Brasília, conhecia já alguns casos de pessoas fazendo quadrinhos mas acho que quem realmente arriscou foi a galera da Samba, e um somatório de coisas fez o projeto ir pra frente. A qualidade gráfica, das histórias, da impressão, a situação local. Hoje dá pra ver que o público está crescendo, tem mais gente também consumindo quadrinhos, gente que antes não consumia. E tem mais gente arriscando a fazer. Essas coisas já estão acontecendo, e aos poucos vamos avançando.

RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por este estilo?

Daniel Lopes– Faço quadrinhos há um ano apenas, acho cedo pra dizer. Mal comecei a me encontrar no tipo de história que quero fazer, ou o que quero dizer com elas. Na maioria das histórias curtas fico bastante na experimentação, testando a empaginação, adequando o desenho ao clima da história. A história mais longa que fiz foi "Marco, o Macaco do Espaço". Fui fazendo aos moldes das tiras clássicas, como Flash Gordon, e lançando em capítulos mensais. Gostei muito de fazer essa história e pude encher ela de referências, que vão desde desenhos animados e filmes de ficção científica que via quando era criança até teosofia e ufologia. Se pudesse resumir, diria que essa história é um mashup de várias coisas que eu gosto, não há nada de muito novo. Gosto dela também por não ser uma história que se leva muito a sério, acho despretensiosa. Agora no começo do ano participei do 24 horas de quadrinho, uma versão nacional do exercício proposto pelo Scott McCloud. Essa coisa meio louca de ir fazendo sem pensar muito acaba por te denunciar, você expõe suas falhas, fica muito claro pra quem conhece de onde você tá tirando a solução pras coisas. No meu caso, acho muito forte essa questão da referência, o que produzo está muito ligado com o tipo de coisa que consumo, seja no desenho ou no roteiro. Por um lado essa contaminação é produtiva, alimenta as ideias, mas tem de se tomar cuidado com isso e buscar uma autonomia.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Daniel Lopes– Sem dúvida influenciam. Leio majoritariamente quadrinhos, gosto muito de Moebius, Manara, Enki Bilal e esse pessoal da Heavy Metal/Métal Hurlant. Pra mim estão entre os melhores no desenho. Gosto também das histórias da geração britânica de roteiristas da Vertigo no final dos anos 80, Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison. Se pudesse, gostaria de escrever histórias entre essas duas vertentes. Leio também alguns mangás, hoje em dia menos, mas melhor selecionados. O fato de começar a fazer quadrinhos me fez procurar muito os independentes. O contato direto com o trabalho dos colegas sem dúvida é uma grande influência. A gente vai trocando ideia direto, conversando sobre o processo, é bastante motivador. É também uma realidade próxima da nossa, é gente começando também e tentando, testando. O contato com o público ajuda bastante a entender o que funciona ou não. Assisto muitos filmes também e leio alguns livros, a busca pela literatura é uma coisa recente pra mim. Mas pra mim essas referências são mais pro texto. Acho que muito da imagem dos quadrinhos tem essa influência direta do cinema e da televisão, nosso olho é bastante educado por essas imagens. As vezes acho que isso limita um pouco o que podemos fazer com os quadrinhos, por isso tenho tentado buscar mais referências na ilustração, que explorem os recursos gráficos.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Daniel Lopes– Tenho como formação as artes visuais, e dentro da academia há um senso comum de que quadrinhos não é arte. Arte sempre foi essa coisa elitizada, e a instituição acaba por dizer o que é arte ou não. O fato de quadrinhos ser um produto da indústria cultural só agrava as coisas, há sempre esse estigma de ser múltiplo, barato, descartável, e do outro lado todo o fetiche se constrói sobre a aura da obra de arte. Mesmo que na arte contemporânea muitas dessas questões sejam colocadas em cheque, ainda há esse pensamento conservador e segregador em relação ao que está fora e dentro da galeria. Parafraseando uma frase genial do Liniers, "se você faz quadrões é um artista sério".  É muito mais uma ideia fixa do que preconceito, visto que muitos dos professores do departamento consomem quadrinhos regularmente. Lembro de um episódio em que um professor falava sobre Winsor McCay e o colocava como "diferente" dos outros quadrinistas, como um "artista". Realmente McCay foi um autor que praticamente esgotou em termos de recursos gráficos na sua época, mas essencialmente o que faz ainda é quadrinhos, então se ele é um "artista" por que não dizer que faz "arte?". Acho que há sim grande parte da indústria de quadrinhos que considero descartável, como a maioria dos quadrinhos de super heróis e mangás shonen de hoje. É muito delicado fazer esse julgamento pois há várias questões de subjetividade e empatia do leitor com os quadrinhos que lê, e acabamos por repetir o mesmo crivo opressor da instituição. Mas há uma galera mais crítica que realmente explora a linguagem dos quadrinhos, que talvez se aproxime mais dessa discussão autorreferente das artes, como o Chris Ware, com Building Stories e David Mazzucchelli, com Asterios Polyp, pra citar alguns. Talvez esse seja o grande atrativo do mercado alternativo e quadrinhos autorais. Acho que hoje em dia é onde se acha mais coisas diferentes. Tem muita coisa boa surgindo por aqui, muita gente se publicando pela Internet, explorando os recursos gráficos no virtual e no impresso. Acho os zines FABIO, do André Valente e do Gabriel Góes, geniais, foram a minha escola da autopublicação. É interessante ver essa cena do zine ganhar força ao mesmo tempo que se utiliza de alguns recursos que conferem um determinado valor artístico pra coisa, como as impressões em papel diferente ou a tiragem numerada. Acho que gosto de como há um mercado que se sustenta pelas bordas do sistema, parasitando e ao mesmo tempo questionando.


Marco fritando


Augusto Botelho

Augusto Botelho– Antes de começar a responder as perguntas eu gostaria de deixar claro que a minha experiência com os quadrinhos, enquanto meio e enquanto mercado é bem recente, de pouco mais de um ano, e acho que boa parte do que penso a respeito de ambos ainda se encontra em um estágio bem inicial de amadurecimento. Se conversarmos com autores já mais experientes talvez muito dessa minha visão já seja algo passada ou ainda ingênua. De qualquer forma, o processo é esse de ir construindo mesmo e acho que é só trocando ideias que vamos construir uma reflexão maior sobre esses temas, então vamos lá:

RL – Os quadrinhos têm um mercado muito pouco consolidado no Brasil e são muito pouco reconhecidos como arte. Diante dessas dificuldades, por que tentar essa carreira? O que você acha que tem de acontecer pra avançarmos nesses méritos?

Bom, a vontade de trabalhar com quadrinhos vem principalmente de uma paixão pela mídia nutrida desde moleque. Os quadrinhos se encontram entre os principais produtos que consumo e definitivamente são o principal motivo de eu ter continuado desenhando.

Existem vários extratos diferentes dentro do mercado dos quadrinhos. Talvez pra gente entender melhor seja bom fazer algumas distinções e olhar pra cada um separadamente. Existe um mercado comercial, representado principalmente por grandes editoras, que têm os recursos necessários para distribuir revistas por todo o país, ter publicações com regularidade fixa e etc. Essas grandes editoras detêm um certo monopólio do que é publicado e a esmagadora maioria do que lançam nas bancas são os quadrinhos estadunidenses de super-herói, mangás dos mais comerciais e afins.

Botelho: estilo barroco
Dentro desse mercado comercial existe também um pequeno grupo de editoras menores que têm publicado quadrinhos europeus, asiáticos e outros com uma pegada mais autoral, mas geralmente de autores clássicos ou já consolidados. Acredito que principalmente pelo fato dessas editoras não terem condição de distribuir na mesma escala que as maiores, elas têm focado os lançamentos em edições mais caras em capa dura ou de luxo para livrarias, atingindo a um público mais específico que vai de quadrinistas a estudantes universitários e pessoas mais velhas com uma estabilidade financeira maior e que já consomem quadrinhos. Então, apesar de darem uma diversificada no mercado, acabam ficando meio restritas pelo fato de que seus produtos não são muito acessíveis.

Existem também algumas publicações que vêm de editais públicos, mas tenho a impressão que é ainda uma iniciativa bem tímida por parte do poder público e que a maior parte das publicações são adaptações de clássicos literários direcionadas para uso didático em escolas.

E, por fim, existe a cena independente nacional, onde os autores não só fazem suas histórias, como editam a publicam suas revistas, vendem, distribuem e tudo mais. Costumam circular em feiras, organizadas pelos próprios autores ou entusiastas, e têm um contato mais direto com o seu público. Além de criarem redes entre os autores, que realizam trocas e fazem os trabalhos de uns e outros circularem através do País. Essa cena está passando por um momento muito rico, com novos autores e autoras surgindo a toda hora, em um movimento crescente da cena como um todo.

Ufa! Enfim, acho que o caminho mesmo é o de aumentar em todos esses nichos o espaço pra diversidade. Diversidade de autores, propostas, formatos e etc. É difícil furar o bloqueio das editoras, que dificilmente vão publicar autores que já não estejam consolidados, então acho que o caminho é a gente fortalecer cada vez mais essas nossas redes, tentar chegar em públicos diferentes e não se acomodar em pequenas zonas de conforto que possamos ter conseguido, ou venhamos a conseguir. Acho que nesse sentido iniciativas como a zine XXX são extremamente necessárias, para diversificar tanto os autores e trabalhos que circulam nesse meio, quanto o público que o consome. Em poucos meses de existência já deu pra sentir o impacto que foi a zine XXX e como ela realmente responde a uma necessidade que estava ali e que os autores (grifo no O) não estavam dando muita bola.

Talvez valha algum tipo de iniciativa conjunta dos autores para cobrar maior espaço dentro de investimentos públicos e afins, mas não sei quais seriam as perspectivas reais disso.

O aguardado
RL – Como você definiria os quadrinhos que faz? O que te faz optar por esse estilo?

Augusto Botelho– Acho que a minha experiência com quadrinhos ainda é bem pequena então não me sinto muito seguro pra afirmar que os quadrinhos que faço são de determinada forma ou definir um estilo porque não vejo isso como algo já definido neles. Estou ainda experimentando os tipos de desenho; composição; formas narrativas, descobrindo muitas coisas. Acredito que ainda tem muita água pra correr até eu realmente ter um estilo definido. De qualquer forma, desse um ano e pouco trabalhando com quadrinhos, algumas coisas já começaram a aparecer. No âmbito do desenho comecei trabalhando com um traço mais cheio de informação em desenhos com bastante tracejado e hachuras ou trabalhando com o pincel seco e lápis. Enfrentei algumas dificuldades quanto à clareza narrativa com tanta informação e passei por um processo de limpeza do traço. As últimas histórias foram feitas numa desenho mais linha clara, com algumas sombras em preto. No momento estou querendo juntar as duas coisas de alguma forma, voltar pro traço sujo, em especial o de pincel, mas tentar ser mais sintético e deixar áreas maiores de respiro.

Quanto à temática, até o momento meus quadrinhos têm ido por uma linha meio regional, meio fantástica, com alguma coisa de aventura. Inicialmente nos quadrinhos mais curtos fiz coisas relacionadas ao ambiente e à cidade onde vivo, e depois comecei trabalhando com adaptação de um conto do Cyl Gallindo, escritor pernambucano, o que me levou mais pra essa onda regionalista. Acho que estou variando entre essa pegada regional e uma outra de pequenas crônicas urbanas, relativas a essa experiencia da cidade. Coisas de paradas de ônibus, pichação, etc. Acho que o principal motivador dessas temáticas são as coisas que gosto e me influencio e as questões que acho importante trabalhar, eu tenho um envolvimento muito grande com o debate político (político num sentido amplo do termo, não apenas o universo de eleições, cargos políticos, etc) e acho que isso acaba aparecendo, de forma mais ou menos evidente, no meu trabalho.

Uma coisa que já percebi ser característica da minha forma de trabalhar é em geral fazer os desenhos, definir a composição da página antes de ter o texto. E várias ocasiões, em especial nas tiras do Batata frita murcha, eu começo desenhando e o quadrinho vai se definindo a partir do desenho. O que o traço me sugere eu vou dando a forma e de um quadro pro outro o mesmo processo. Mesmo quando tenho uma história mais linear eu costumo ter em mente mais ou menos o rumo de pra onde as coisas vão, definir os thumbnails, desenhar e no final colocar o texto. É legal porque às vezes os desenhos acabam mudando o rumo da história ou ela se constrói a partir deles.

RL – Que tipo de quadrinhos e outros bens culturais (livros, filmes, etc.) você consome? Como eles te influenciam?

Augusto Botelho– Bom, depois dos gibis da Turma da Mônica, as primeiras coisas que peguei para ler foram quadrinhos de super-herói, que consumi durante bom tempo, então eles estão em algum lugar nas minhas referências com certeza. Volta e meio ainda vejo o que sai nesse mercado, mas olhando mais algumas séries fechadas do que as revistas mensais. Acho que um pouco do meu gosto por histórias de aventura e afins, que acabei fazendo, vem em parte daí. Mas, acho que minhas principais referências em quadrinhos são de quadrinhos europeus de autores como Hugo Pratt, Milo Manara e Moebius.   Dentro do cenário do quadrinho americano trabalhos como Sandman, do Neil Gaiman, e O Retorno do Cavaleiro das Trevas, do Frank Miller, foram marcantes. Acho que a maneira como o fantástico é trabalhado em Sandman é algo que me atrai muito, bem como nas histórias do Corto Maltese, do Pratt (em especial nas últimas). Vejo bem claramente n"O Aguardado" (meu primeiro trabalho longo e o que estou finalizando agora) essa pegada de misturar algo do campo das lendas dentro das coisas cotidianas. Tem uma série de quadrinhos do Manara chamda As Aventuras de Giuseppe Bergman (alterego do autor), que são especialmente marcantes por uma pegada bem onírica, fantástica, às vezes até surrealista e ao mesmo tempo uma certa ironia, um sarcasmo com relação ao próprio autor e à cultura ocidental que é um exemplo que tenho sempre em mente de como tratar questões políticas e ao mesmo tempo conciliá-las com uma tendência que é um pouco natural minha ao delírio. Gosto bastante também do trabalho do Oesterheld e do Breccia, na Argentina, mas conheço pouco ainda dos quadrinhos de lá, gostaria de conhecê-los mais.

Estando há um ano e pouco trabalhando e me inserindo dentro desse meio do quadrinho independente estou em um momento de muitas descobertas dentro da produção nacional, principalmente a atual e isso tem sido uma grande influência com certeza. A possibilidade de conversar com os autores, trocar referências, enfim, esse contato direto é muito frutífero. Temos conhecido muita gente massa com trabalhos incríveis nas viagens pra feiras em outros estados e a experiência tá sendo muito boa, muita coisa sendo digerida ainda, mas já dá pra citar aqui os trabalhos do pessoal da SAMBA; Vudu Comix; do Sindicato; várias das autoras que conhecemos através da zine XXX, bem como os coletivos Loki. e Invisible (ex-Libre!). Um autor que volta e meia eu estou olhando é o D'Salete, tenho o quadrinho Encruzilhada dele sempre por perto. Acho que o que quero seguir em termos de desenho depois de terminar "O Aguardado"é bem por ali, o preto e o branco bem contrastados mas com uma sujeira do pincel seco rolando ali pelo meio. A temática das histórias, pequenas crônicas urbanas de pessoas comuns também fala muito pra mim. Acho que não é à toa que quando fiz a "Risco" (história publicada na zine de Julho, cujo personagem principal é um pichador) o traço foi um traço mais sujo, no pincel.

Dentro desse cena nacional sinto que ainda tenho muito o que conhecer e ando buscando, desde o trabalho dessa galera ao de autores já clássicos, como Laerte, Fabio Zimbres e outros. Conheci recentemente através de uma publicação da Ugra o trabalho do Henry Jaepelt, que me atraiu muito pelo desenho e pela pegada surrealista.

As influências se dão de diversas maneiras. Às vezes por querer fazer igual, às vezes tentando fazer igual e vendo que aquela não é a sua pegada também (como é um pouco a minha relação, por exemplo, com o trabalho do Moebius, que já tentei muito copiar até ver que não era por ali).

Fora os quadrinhos, me influenciam bastante filmes em geral e música, brasileira em especial, de hoje e de ontem. Como falei na pergunta anterior acho que um pouco da literatura regionalista e trabalhos de autores como Suassuna também estão em ligação direta com meu trabalho mais recente.

RL – Como você pensa os quadrinhos enquanto arte?

Augusto Botelho– Acho que os quadrinhos são um potente meio de expressão e isso é facilmente constatado simplesmente dando uma olhada no que já foi produzido dentro dessa mídia. No último século não faltam exemplos de quadrinhos que exploram as mais diversas questões, experimentando com formatos, temáticas, estilos, linguagem e afins. Como toda mídia, divide características com outras mídias, mas tem outras características bem próprias. Compara-se muito o quadrinho com o cinema, por exemplo, e as duas mídias realmente têm muito em comum (até por serem ambas fruto da sociedade industrial e por terem em comum o representar do tempo, movimento, etc). Mas mesmo essa representação do tempo e do movimento se dá em cada uma de forma muito diferente. No cinema as imagens se sobrepõem no tempo, causando no olho do espectador a ilusão do movimento, no quadrinho elas estão colocadas espacialmente em sequência. Essa diferença muda muito o modo de fruição da imagem, fazendo com que, no quadrinho, o tempo do leitor seja  infinitamente mais relevante que no tempo do filme. E por conter o elemento visual, esse tempo também não é o mesmo do texto pois o leitor pode se manter em um quadro por conta do elemento visual, e ir e vir pela obra. O Underground, (segundo volume do "Promessas de Amor a Desconhecidos", do Pedro Franz), por exemplo, vem dentro de um envelope e as folhas não estão grampeadas, permitindo que o leitor posse se movimentar pela obra através de múltiplos caminhos e tempos. O trabalho meio que assume de vez que o autor não vai ter o controle sobre o tempo e o processo de leitura do seu público e é um exemplo interessante de como explorar isso.


Botelho em pala à Moebius


O que eu vejo mesmo entre os quadrinhos e os trabalhos que circulam em galerias, museus e outros desses espaços institucionais do mercado de arte é mesmo uma diferença de nicho de mercado. São nichos de mercado diferentes, com funcionamentos específicos, pré-requisitos e exigências diferentes e que atendem também, em parte, públicos diferentes. Lógico que eles possuem intersecções e talvez a tendência é isso só aumentar, à medida que cada vez mais artistas têm se utilizado do múltiplo, do livro objeto ou do zine como forma de aumentar a circulação do seu trabalho para além dos espaços expositivos; e também quadrinistas têm levado seus trabalhos para outros espaços de circulação ou incorporado vários elementos desse campo neles.


Recreio com rock e quadrinhos

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por Pedro Brandt

Rock e histórias em quadrinhos são expressões artísticas que têm caminhado juntas na trajetória recente da banda brasiliense Quebraqueixo. Em 2010, o quarteto lançou seu segundo disco, A banda desenhada, projeto que inclui, além de CD, HQ de acabamento luxuoso, com capa dura, e histórias adaptadas das letras da banda feitas por 14 talentosos quadrinistas de Brasília.

Realizado com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura do GDF, o projeto teve como contrapartida uma série de shows e oficinas de histórias em quadrinhos em escolas da rede pública do Distrito Federal em 2011. Alunos, professores e a banda gostaram da experiência e, em 2014, o Quebraqueixo emplacou o Festival Itinerante Rock e Quadrinhos. Também viabilizado pelo FAC, o projeto rendeu 12 edições no ano passado e, pelos próximos meses, continuará passando por escolas do DF.



Duas atividades são produzidas nos centros de ensino que recebem o festival. Primeiramente, no horário do recreio, os alunos assistem a um show do Quebraqueixo. O grupo, formado por Evandro “Esfolando” Vieira nos vocais, Paulo Mattos na guitarrista, Herman Antunes no baixo e André Bermak na bateria pratica o chamado hardcore crossover (gênero com raízes no punk rock e influências de thrash metal) e reflete em suas letras questionamentos e críticas sociais e comportamentais.


“Algumas vezes, os alunos se empolgam um pouco mais, sobem no palco e pulam lá de cima”, conta Evandro. “A gente fica pedindo calma, coisa que não faríamos em nossos shows fora do projeto”, brinca o vocalista.

Depois da apresentação, é realizada em sala de aula uma oficina de quadrinhos de uma hora de duração. “Como o projeto é direcionado para iniciantes, criei um método de ensino próprio, bem dinâmico. Primeiro, conto um pouco da história das histórias em quadrinhos e sobre mercado de trabalho na área. Depois, utilizo o quadro negro para mostrar as ferramentas básicas para que os alunos possam desenvolver uma HQ de uma página ou uma tirinha na metade final da aula. Daí, faço um acompanhamento individualizado, dando dicas e sugestões”, explica Evandro.

O vocalista do Quebraqueixo é autor de um livro de memórias, Esfolando ouvidos, no qual apresenta causos e histórias vividas no cenário roqueiro de Brasília, e Grosseria refinada, coletânea de contos – um deles acabou virando o filme Um assalto de fé, de Cibele Amaral. Além de A banda desenhada, Evandro também produziu a HQ Rock vs. Comics, na qual apresenta, em formato de quadrinhos, resenhas de shows assistidos em Brasília e no Brasil (e, mais recentemente, também no exterior, como pode ser conferido no blog esfolando.wordpress.com).

As histórias em quadrinhos vivem um bom momento no Brasil, com mais gente produzindo e um reconhecimento mais entusiasmado de seu potencial lúdico e educativo. O Festival Itinerante Rock e Quadrinhos tem percebido isso no contato com os alunos e, principalmente, professores. “Eles são os primeiros a valorizarem nossa iniciativa. Alguns professores participam das oficinas porque querem utilizar os quadrinhos como ferramenta em suas aulas”, conta Evandro.

O “rolê”do Quebraqueixo pelas escolas vai render um videoclipe, dirigido pelo fotógrafo e cineasta Patrick Grosner – diretor do documentário Geração Baré-Cola, que aborda o rock em Brasília nos anos 1990.

Em entrevista, Evandro Esfolando comenta o Festival Itinerante Rock e Quadrinhos:

Os alunos das escolas por onde o projeto passou têm interesse em rock e quadrinhos? Ou recebem essas duas expressões culturais com estranhamento?
Acredito que muitos alunos têm mais acesso às músicas que estão na moda, tipo rap, funk e sertanejo. Penso que é assim em todo Brasil. Claro que eles ouvem rock, mas realmente, o gênero perdeu espaço. Para muitos alunos, esse é o primeiro show de rock que eles viram na vida. Pro Quebraqueixo isso é muito importante, pois estamos investindo na formação de plateia. Talvez essa seja a nossa maior contribuição para a cena. Quanto aos quadrinhos, a grande maioria só conhece Turma da Mônica, Disney e super-heróis da Marvel e DC e mangás – é o que realmente encontram nas bibliotecas das escolas e nas bancas de jornal. Isso é bastante limitador, muitos param de ler gibis porque não se identificam ou acham que já estão velhos para o conteúdo apresentado nesses quadrinhos.


Como funcionam as oficinas de quadrinhos do projeto? Quais modelos didáticos você utiliza para ensinar quadrinhos?
Minha oficina é para iniciantes. A maioria dos alunos tem pouca ou nenhuma experiência no assunto. A primeira coisa que ensino é que pra fazer quadrinhos não é preciso saber desenhar – e que eles poderão fazer uma página de HQ ou uma tirinha usando o bonequinho do joga da forca. Assim, nenhum deles se sente inibido ou excluído. Lógico que não dá pra ensinar muita coisa em uma hora, então minha aula é bem dinâmica. Eu ensino as ferramentas básicas e na segunda metade da aula, deixo que eles desenvolvam as próprias histórias sozinhos ou em grupo. Daí, faço um acompanhamento individualizado dando dicas e sugestões. Sempre utilizo o livro Narrativas Gráficas, do Will Eisner, como referência, também pesquiso em outras fontes que acabo incorporando nas aulas, mas esse livro é um verdadeiro manual pra quem quer fazer quadrinhos. 

O que mais te surpreendeu nas edições do projeto? Algum episódio em particular?
Nas oficinas, sempre dou a opção de tema livre. No ano passado, na época das eleições, muitos alunos se inspiraram com o tema político. O conteúdo nos surpreendeu pela criatividade na abordagem do assunto.


O projeto termina em breve. Alguma chance de continuar futuramente?

Ainda não temos as datas definidas, mas em setembro e outubro finalizaremos o projeto. Queremos continuar com o Festival Itinerante Rock e Quadrinhos, até porque deu super certo. A ideia é fazer de modo diferente. No Distrito Federal há mais de 600 escolas públicas, então existe bastante demanda pra gente trabalhar.

Rapidinhas Raio Laser #04

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E as aguardadas quickies estão de volta, com pouca alteração no formato além do título em português (o que pareceu mais conveniente) e a estreia de resenhas rapidíssimas (para zines e coisas de leitura muito rápida). Lembrem-se: as resenhas são voltadas para o mercado (in)dependente e podem surgir coisas de anos anteriores que estavam encalhadas aqui. Muito do que a gente resenha nos foi enviado pelo correio. Então, não dê mole (se tiver coragem): mande seu material para a Raio Laser no seguinte endereço:


RAIO LASER
SQS 212 Bloco G Apto 501.
Brasília-DF
Brasil
CEP: 70275-070

por Ciro I. Marcondes

Menina Infinito Nº 1Fábio Lyra (Beleléu, 2015, 36 p.): os quadrinhos de Fábio Lyra seguem um certo padrão: são singelos, com seu traço um tanto duro (sem sombras e gradações), entulhados de referências de bandas indie, noise e shoegaze dos anos 80 e 90, e um pouco lacônicos. Menina infinita, sua nova série pela Beleléu, não foge à regra e, em meio a citações a Death From Above, Ride, Eugenius e Jesus and Mary Chain, somos inseridos dentro de uma apática festinha de apartamento marejada por este tipo de referência, com gente (já nem tão) jovem explorando as possibilidades afetivas deste ambiente já desgastado e um tanto melancólico, buscando romance xôxo e umas brejas quentes. Se o resultado não é ruim (há uma delicadeza e um humor sutil – para iniciados – que cativam), também carece de urgência. Muito curtinha, a revista não engrena não apenas pelo tamanho, mas pelo apego excessivo ao banal, algo que não acontece nos dramas íntimos de Adrian Tomine, ou nas tramas rocambolescas de Jayme Hernandez, que são claras inspirações. Menina infinito ainda está longe de seus mestres, peca um pouco por uma quadrinização sem ambição e talvez tenha mais referências que conteúdo, mas ainda está na número 1, e, quando se trata de séries, sabemos que o piloto é sempre um parto difícil. A ver as edições restantes.



Baratão 66– Bruno Azevêdo e Luciano Irrthum (Beleléu, 2013, 193 p.): em termos de romance gráfico, Baratão 66é a grande pedida no quadrinho brasileiro contemporâneo. Não tem pra ninguém. Hilário, cheio de recursos, enraizado num ambiente profundamente brasileiro, esta HQ é tudo que o quadrinho de ativismo ingênuo, o quadrinho blasé/minimalista, o quadrinho punk/doido sem referência e o quadrinho sentimental-vinte-e-poucos-anos não são. Ou seja, o roteiro de Bruno Azevêdo, que gira em torno de uma família de mulheres que gerenciam um puteiro em São Luís, vai contra quase tudo que têm sido as tendências do quadrinho brasileiro. Do delineamento psicológico dos personagens, aos seus nomes, à composição dos coadjuvantes, ao timing do humor, à engenhosidade da trama, e até à multiplicidade de registros multimídia (cartas, fotos, postais), Baratão 66dá o tom exato de como se fazer uma leitura do Brasil em quadrinhos. É o encontro de dois mundos: o da visita à cidadezinha brasileira e seu bestiário de putas, taxistas, michês, policiais e políticos mentecaptos, com uma problematização social do Brasil que está lá como substrato, mas não passa incólume, sempre em chave de ironia. Como se fosse o encontro de Angeli com Érico Veríssimo, ou algo que o valha.  Há baixaria na medida certa, há referências e easter eggs para os que gostam, e há uma arte meio inspirada em cordel, mas sem perder a leveza do pop, que não nos deixa desgrudar os olhos. Uma preciosidade talhada na safadeza e na estultice brasileiras. 




Aerolito Nº 2 e 3– Lucas Marques, Bruno Prosaiko, Túlio Mendes, Cauê Brandão (Semear, 2014 e 2015, 48 p. cada): a Aerolitoé uma nova publicação de jovens quadrinistas brasilienses interessados em narrativas de maior fôlego e histórias mais elaboradas, quase sempre com um pé no insólito e coisas extraordinárias, mas os temas variam bastante. Tive a satisfação de escrever a apresentação da número 1. O acabamento é ótimo, e as capas, paródias de pinturas famosas, são divertidas, cheias de cores e intenções vibrantes. Se na número 1 as histórias ainda careciam de maturidade e traziam um aspecto um tanto amadorístico, nos números seguintes há uma melhora realmente visível, mesmo que pontuada por growing pains, coisa de quem tá começando. O destaque vai para a qualidade autoral do traço carismático de Bruno Prosaiko, que trabalha histórias de verniz mais surrealista. Falta aos roteiros, porém, um equilíbrio entre ambição de (falsa) “profundidade” às histórias e um resultado efetivo nesse sentido. Mesmo “sérias”, estas histórias ainda soam infantis. Melhor partir logo para a fantasia juvenil e desvairada.

Também um tanto desequilibrado, Lucas Marques alterna o traço, o estilo e os temas a cada edição, dando a impressão de ser um artista um pouco desorientado na sua busca por um caminho, sendo confuso e poluído em “Mister Lonely”, mas acertando na mosca no traço limpo, caricatural e despojado na ótima “Rarimish, o messias”, a melhor história de todas as Aerolito. O humor pode ser uma boa. Já Túlio Mendes, atrás dos outros, precisa melhorar a ação e o dinamismo tanto dentro dos quadros quanto entre eles (e soltar o traço!), para fazer as histórias fluírem melhor, além de abandonar quaisquer pretensões de histórias muito “adultas”. Não é um desperdício do seu tempo ler o trabalho destes erráticos quadrinistas, mas há um salto ainda entre o que estas histórias oferecem por trás de sua suposta ousadia e a envergadura do projeto editorial. 



Pigmaleão– Diego Sanchez (Circuito Ambrosia, 2014, 52 p.): e eis que o quadrinista carioca Diego Sanchez, anos depois da “treta de 2012”, retorna às páginas de Raio Laser. Zoações à parte e zero de ressentimento de ambas as partes (o cara é gente boa), temos em mãos este delicado, intuitivo e esotérico Pigmaleão, um salto quântico em relação ao que ele havia apresentado em Peixe fora d’água. Aqui, temos uma história de requadros sem arestas cuidadosamente costurada em torno da iconografia do Tarô de Marselha, a partir de sonhos dentro de sonhos de um jovem processando um relacionamento irreparável em seu inconsciente profundo. Se o tema não é lá dos mais originais (o mito de Pigmaleão para a fantasia masculina da mulher ideal também acabou se tornando um clichê), Sanchez nos conquista com a beleza minimal de seus desenhos (lembra o francês Lewis Trondheim), com o movimento delicado e sinuoso das diagonais de seus quadros, com os intervalos e silêncios que exemplificam sua maturidade narrativa, com o erotismo refinado a partir do qual elabora afetos e mágoas. Memórias inventadas são um bom tema para um tipo de arte que embaralha imagens em diversos níveis e plataformas, e neste ambiente Sanchez encontra porto seguro para expiar seus tormentos e inquietações. 



Coral– Taís Koshino (Selo Piqui, 2015, 22 p.): seria injusto criticar Coral apenas pelo amadorismo de seus desenhos. Certo, Taís Koshino não é uma desenhista profissional, mas, até aí, críticas a um estilo rude e até grosseiro poderiam ser levantadas contra desde Gary Panther, passando por Arnaldo Branco, e até a Henfil ou Wolinski. A questão mesmo é que a excelência nos desenhos deixou de ser pré-requisito para se fazer quadrinhos, goste-se disso ou não. Coralé o trabalho mais maduro da autora, em sua busca silenciosa por autoconhecimento, em sua experimentação com as divisões e cores dos quadros, com a espessura do lápis, tudo eivado com um tom escapista e melancólico. Temos, por exemplo, a bela exploração de um certo discurso indireto livre em quadrinhos, marcado pelos planos em primeira pessoa, que terminam num quadro magritteano. Sem estardalhaço e sem recursos apelativos, a autora vai cavando sua subjetividade radical na cena dos quadrinhos independentes brasileiros, por meio da poesia e da abstração. Mesmo assim, ainda falta a Coral um norte que a livre da esterilidade do teimoso dadaísmo aleatório e da aversão ao próprio leitor no momento em que a produção de sentido se faz mais necessária. E, neste caso, produzir uma arte simplesmente naïf não ajuda. 



Velhaco’s– André Aguiar (TocasTudios, 2013, 14 p.): Velhaco’sé uma aventura bate-pronto cheia de fuleiragem misturando universos do skate, do cyberpunk, do antropomorfismo, do videogame vintage, etc. A coisa é curta e rasante como um esporro, e o desenhista e roteirista André Aguiar não economiza nas tintas rabiscadas, como se se aproveitasse de uma arte-final de improviso, para narrar a história de dois maloqueiros na missão doida de salvar um gatinha de robôs, policiais, coisas assim. É como se o filme Warriorstivesse um spin-off underground na revista Animal. Se o resultado parece tolo e esquecível, é porque não tinha como ser diferente. O punk não pode ser eterno. 



GoróLuiz Berger (Org., Gordo Seboso, 2013, 76 p.): histórias de bebedeira. Esta simples premissa poderia ser motivo de esta publicação de 2013 ser nada mais que pura tosqueira. Porém, um bom punhado dos autores do gibi resolveu usar a birita como gatilho para criar situações pitorescas, histórias policiais e até reflexões existenciais. Editado por Luiz Berger, o rei da escatologia, Goró de certa maneira demonstra como o quadrinista brasileiro contemporâneo consegue se virar em qualquer situação, topar qualquer empreitada, transformar merda em ouro. Abraham Diaz, por exemplo, cria espécie de True Detective dos mendigos birituns numa história, cheia de recursos, de traição, espionagem e morte. Eduardo Belga tem aqui um de seus trabalhos mais impressionantes em quadrinhos, levando o conceito de “porre” para além de qualquer limite, num texto que nada deve a um Pedro Juan Gutiérrez. No final, esmagados pela night de sexo dantesco, pela consciência moral e pelo excesso de “Ph de buceta”, o leitor é esmigalhado junto com autor e personagens.

O quadrinista Victor Bello traz a melhor contribuição da revista, “Mijo de Cristo tem poder”, possivelmente uma das histórias mais profanas jamais publicadas. Com quadrinização minuciosa e bem feita (digna de um Daniel Clowes bananense), o autor conta a história de um padre que faz uma cachaça com o mijo de Cristo. Os detalhes são escrotérrimos, com gagsinfames em timing perfeito. Vale mencionar ainda a boa contribuição do americano Josh Bayer, que, numa história rabiscada e um tanto preguiçosa, recobra aleatoriamente sua relação com festas regadas a bebida e com o álcool em si. Segura o suficiente para trazer mais consistência à revista, que poderia dispensar algumas pin ups e outras histórias curtas e rasas que são puro filer. Mesmo assim, vale tomar uma cerva pra celebrar.



Know-Haole Nº 2Diego Gerlach (Vibe Tronxa, 2013, 14 p.): Gerlach é um quadrinista punk e sua linguagem é a da mais pura malacaiagem das ruas, uma coisa febril e violenta, onde os personagens parecem estar sempre sob efeito de tóxicos estimulantes, noiados e sem rumo. O leque de referências aparece por toda história dos quadrinhos e desenhos, com paródias de Droopy, Dick Tracy e Disney, passando por coisas mais underground. Gosto de dizer que ele dá a mesma pala crackeira do Gabriel Góes e seu irrefreável Kowalski, e também que me lembra a dupla espanhola Gallardo e Mediavilla, de Makoki, algo extraído diretamente da estética alucinada dos anos 80. E esta década é referência para Gerlach. Suas histórias são de encontros fortuitos e desvairados nas ruas, com tipos urbanos bizarros, linguagem de mala e abreviações de internet, e muito de suas qualidades está em embaraçar estas referências todas num estilo inconfundível. Know-Haole 2traz algum do seu melhor material, com as histórias entrecruzadas de Gilso, um cachorro de rua que se fode numa treta com outro mendigo; e a de Charlindo, um pato loser que tem um colapso nervoso ao tomar um choque elétrico. A história funciona como um furacão alucinado de visões turvas e impressões doentias das coisas. Mas atenção: é quadrinho de rua, é quadrinho de doidão. Sem pudores por aqui.



A Última Bailarina– Guilherme de Sousa (Korja dosQuadrinhos, 2014, 52 p.): não é que este seja um trabalho especialmente ruim. Ele tem algum carisma e um conceito: três personagens pitorescos (um ursinho de pelúcia machão – onde eu vi isso? –; uma garota bailarina abobalhada e ingênua; e um unicórnio efeminado) precisam resistir a um apocalipse zumbi. Os desenhos são “fofos” (ainda que muito pobres em composição e cenário) e algumas gags funcionam (ainda que com problemas de ritmo), mas os problemas se sobrepõem: primeiro, QUEM aguenta mais histórias genéricas com zumbis, seja em chave de ironia ou não? Segundo: personagens grosseiramente estereotipados, sem se definirem enquanto adultos ou infantis. Terceiro: cacoetes de animação, com uma história que anda em círculos procurando preencher o espaço de 15 minutos de duração. Enfim, por quê lançar um livro luxuoso, com boa impressão e gramatura, com este material, eu tenho minhas dúvidas. 



 
Rapidíssimas (zines):

GaiolaMorgana Mastrianni (Independente, 2013, 12 p.): misturando influências de expressionismo e teatro kabuki, a autora tece uma intrigante narrativa muda sobre máscaras (literais e metafóricas), tangendo o inconsciente feminino em eficiente simbolismo em quadrinhos.



Re/Forma– Luís Aranguri (Aparato/Independente, 2014, 10 p.): o quadrinho abstrato ainda é uma novidade conceitual no Brasil, mas o trabalho (simples e efetivo) de Luís Aranguri inspira a imaginar (guardadas as proporções) o que Kandinsky ou Mondrian poderiam ter pensado sobre o meio. Aqui, o autor provoca um esfacelamento gradual do espaço em quadrinhos a partir do próprio uso da leitura sequencial e de seus recursos, produzindo um quadrinho que se autossabota, um antiquadrinho.



Pirata Perna Curta Nº 1– Chico, Thiago Fagundes, Lucas Feat, Mayra (Pirate Books/Independente, 2015, 14 p.): à parte um bom conto cáustico de Lucas Feat, o material desse zine parece coisa de iniciante, um tanto insípido, lembrando tiras amadoras de Facebook, com pin-ups dispensáveis e quadrinhos muito destoantes entre si. A intenção é um espírito meio Mad, mas o resultado tá mais pra Will Tirando.



Quer Dançar?– Guilherme de Sousa (Independente, 2013, 32 p.): uma história muda e amalucada que envolve sexo casual, um feto largado no esgoto e a proliferação de uma raça de homens-crocodilo num estilo meio Marcelo Cassaro funciona muito melhor do que a empreitada mais “ambiciosa” do autor (acima). Eis o caminho. 



  

HQ em um quadro: a sensibilidade sinestésica do Demolidor, por Stan Lee e Bill Everett

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Planos-detalhe descrevem a incrível capacidade de Matt Murdock em aguçar seus sentidos (Stan Lee, Bill Everett, 1964): "Do ponto de vista estritamente físico, o olho sente a cor. Experimenta suas propriedades, é fascinado por sua beleza. A alegria penetra na alma do espectador, que a saboreia como um gourmet, uma iguaria. O olho recebe uma excitação semelhante à ação que tem sobre o paladar uma comida picante. Mas também pode ser acalmado ou refrescado como um dedo quando toca uma pedra de gelo. Portanto, uma impressão inteiramente física, como toda sensação, de curta duração e superficial. Ela se apaga sem deixar vestígios, mal a alma se fecha."

Quem escreveu estas palavras foi o lendário Wassily Kandinsky, pintor fundador do Der Blaue Reiter expressionista e pioneiro (além de mestre absoluto) da arte abstrata. Kandinsky era sinestésico, e tinha uma visão profundamente espiritual, além de técnica, da arte. Para ele, um quadrado, um círculo, uma cor, um ponto, etc., possuíam uma vibração originária, um tipo de comungação natural com aspectos não-visíveis da realidade, e a combinação entre estes elementos produz poderosas novas vibrações, e cabe à arte o controle destes efeitos. A sinestesia é uma condição neurológica em que diferentes estímulos são misturados nas vias neurais até chegar aos seus respectivos córtex (visual, auditivo, etc.), misturando os sentidos. As pessoas sentem gostos e cheiros ao verem cores. Sensações de frio ou calor ao se depararem com determinados nomes ou palavras. Números possuem cores específicas. As possibilidades combinatórios dos sinestésicos são muitas, e os casos são muito diferentes entre si.

Daí o estalo na minha cabeça ao ler a primeiríssima história do Demolidor, "A origem do Demolidor", escrita por Stan Lee e ilustrada por Bill Everett, que contém uma sequência com quatro quadros detalhando minuciosamente a natureza dos super poderes de Matt Murdock: "Meu paladar tornou-se tão altamente desenvolvido, que posso dizer exatamente quantos grãos de sal existem num pedaço de pretzel...". Os super sentidos não são colocados exatamente como sinestésicos (não há entrecruzamento entre eles), mas há de se admirar o ímpeto imaginativo de Stan Lee: o texto que descreve os sentidos beira a elocubração científica, e dá a medida exata, com exemplos muito lúcidos, daquilo que o Demolidor pode fazer: "Até meus dedos tornaram-se incrivelmente sensíveis! Posso dizer quantas balas há numa arma apenas pelo peso do cano...". 

A ideia de que o Demolidor seja um personagem sinestésico, ou hiper-sinestésico, é em si revolucionária não apenas para um super-herói (já que esta condição era praticamente não-documentada pela ciência na época), mas muito interessante para o desenvolvimento das habilidades narrativas em quadrinhos. A partir destes quatro quadros plantados em sua primeira história, toda história do Demolidor passaria pelo mesmo desafio: como representar esta hiper-sensibilidade sinestésica em um meio feito apenas de imagens planas e palavras como os quadrinhos? Quadrinhos não trabalham com cheiros, com sons, com movimento, com o tato que não seja a própria textura rude da página em si. E pior: aquilo que os quadrinhos possuem de mais elaborado, que é a sua concepção visual, está ausente da sensibilidade do Demolidor. Cego, ele pode ser tudo que os quadrinhos não são, mas não pode ser a única coisa que eles são. 


Lee e Everett optaram por uma solução simples: apesar da qualidade quase literária na precisão descritiva do texto, as imagens são elementares. Uma orelha para audição, um nariz para o olfato, dedos para o tato, e a boca para o paladar. Metonímias autoevidentes, mas que bastaram para estabelecer um paradigma: O Demolidor seria um personagem eternamente diferente, enclausurado, amaldiçoado pela incongruência de seus poderes (um cego tão ágil quanto o Batman) e pela ineficácia de seu meio (os quadrinhos) em transfigurar sua sinestesia. E isso não se restringe aos quadrinhos. Tanto no filme com Ben Affleck quanto na nova série, a única forma de trazer a sinestesia à tona para um contexto audiovisual é fazer o Demolidor "ver" (literalmente, pois imagens emergem) através dos outros sentidos. Paradoxo que é, claramente o Demolidor não se limita isso. 

Miller: virtuoso
Frank Miller, na edição 169 de Daredevil (1980), enfrentando as mesmas dificuldades, mas transformando-as num trunfo de seus quadrinhos virtuosos, com soluções narrativas incrivelmente imaginativas, procurou sofisticar a representação dos efeitos sinestésicos dos poderes do Demolidor. Neste caso, Murdock está atrás de um refém capturado pelo Mercenário. Este refém está doente, tosse muito e ainda perdeu suas pastilhas para garganta. Nos balões de pensamento, lemos o Demolidor: "O Mercenário fuma e está escondendo alguém com dor de garganta... uma situação que só tende a piorar sem as pastilhas. É uma pista fugaz, mas é tudo que tenho." Na página seguinte, vemos três meta-requadros com uma imagem do Demolidor sentado, na penumbra, no topo de um prédio, escutando. No primeiro plano de cada um destes requadros, três pequenos outros quadros mostram o que ele ouve: um pneu freando, uma buzina de carro, uma chaleira, um despertador, uma goteira. "O demônio se concentra, Sons mais delicados murmuram de milhares de emissões diferentes. Ele os abafa." Miller usa estes delicados quadros com detalhes do que Murdock pode ouvir em transições de aspecto (a famosa "transição número 5" de McCloud), sugerindo que o Demolidor seja capaz de captar a "vibração" (da qual fala Kandinsky) presente em cada som, modulando a audição à mais ínfima sensibilidade, chegando ao paroxismo de ouvir uma tosse em meio a uma metrópole. E o melhor: isso é transferido ao leitor combinando três elementos simples dos quadrinhos: os letreiros recitativos, que dão a dimensão da sensibilidade do herói; os quadros grandes ao fundo com o Demolidor sentado, dotando a cena de temporalidade; e os quadros pequenos em sua aleatoriedade, representando não uma condição temporal, mas uma inteiramente sensitiva, com seus barulhos e imagens representadas. 

Talvez seja por essas e outras que o Demolidor tenha sobrevivido, apesar de sua aparente simplicidade, como um personagem extremamente querido pelo público da Marvel, que sempre recruta seus roteiristas-estrela para repaginá-lo. Afinal, o desafio de reinventar o Demolidor é o desafio eterno de superar seus paradoxos, que, enquanto tais, são naturalmente insuperáveis. Este palíndromo, este vai-e-vem na representação da sensitividade do personagem, é sua caraterística mais "desafiadora", e assim ainda será enquanto os quadrinhos não deixarem de ser uma mídia de limitado potencial sinestésico, mas de enorme recursividade imaginativa. (CIM)        

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