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PRAÇA DO VINIL CONVIDA RAIO LASER!

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Mais um evento da RAIO LASER! Neste sábado dia 15/07.

Curta o evento aqui.

Vejam o que os parceiros da MARCONDES AND CO escreveram:

"O Praça do Vinil, em edição especialíssima, convida um dos maiores sites de quadrinhos do Brasil, a Raio Laser (http://www.raiolaser.net/ ), para fazer a curadoria na feira deste 15 de julho.

E dessa vez, junto com a tradicional feira de vinil, teremos a maior reunião de sebos de HQs do Distrito Federal.

O evento será oportunidade inédita para colecionadores de quadrinhos buscarem raridades, pois trará diferentes bancas para venda e troca. Lojas e editoras, como Kingdom Comics e Dente, além de sebos e acervos particulares de todo Distrito Federal estarão à disposição do visitante.

Não esquecendo, claro, do Vinil, como sempre a estrela da festa, com as melhores coleções de Brasília, como Marcondes & Company, Filial do Rock e Givaldo Discos e outros. Mais de 5 mil bolachões à venda. A Marcondes levará também sua livraria de clássicos da contracultura!

O evento contará com DJ especial focado em cultura pop, roquenrol, hip hop, jazz, blues, reggae, trilhas de filmes e músicas do universo das Histórias em Quadrinhos!"

Quando: 15 de julho, das 10h às 19h
Onde: Venâncio Shopping. Praça de Alimentação.
Brasília-DF
Entrada gratuita

Arte do sensacional Pedro D'Apremont.



UGRA FEST 2017: Pequeno diário de uma grande epopeia

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por Márcio Jr.

Foi-se o tempo que andar de avião estava tranquilo e favorável. Agora, toda vez que precisamos nos deslocar algumas centenas de quilômetros, a velha pesquisa de mercado obrigatoriamente entra em cena, buscando opções minimamente viáveis. Foi o que fizemos eu e Márcia Deretti – minha companheira de trampo e de vida – para participarmos da UGRA FEST 2017. Um livro novo fumegando debaixo do braço e a vontade de rever uma montanha de amigos forneceram o álibi perfeito para a viagem. Resolvemos, inclusive, chegar dois dias antes. É essa jornada que divido agora com você, prezado leitor Raio Laser.

O vôo de ida saía de Goiânia quinta-feira, 06 de julho, às 05:57 da madruga. Questão de preço, óbvio. Depois de passar dias finalizando o livro a ser lançado, além de reunir materiais pra banquinha e afins, consigo fechar as malas por volta de 02:30h. Coloco o despertador para apitar às 04:00h e... é lógico que programei tudo errado! Por sorte, a Márcia acordou às 04:20 e saímos os dois correndo como loucos rumo ao aeroporto. Agradeço publicamente ao SpeedRacer que pilotava nosso Uber.

Douglas e Daniela Utescher; e o Márcio!


Na fila do embarque, damos sequência ao calvário. As novas regras de bagagem me obrigam a fazer um remanejamento entre malas. Estávamos dentro do peso permitido, mas agora existem restrições de volume. Tira uma cueca daqui, passa uns livros pra lá e tá feito o negócio. Uma das malas que iria despachar agora tem que ser levada em mãos.

Com o tempo sempre apertado, vamos para o embarque. Quando a mala passa pelo detector, a funcionária me diz que há ali dentro objetos parecidos com CDs, uma tesoura e algo orgânico não identificado. Ela pede para revistar a bagagem. Os CDs, na verdade, eram os vinis do Mechanics que eu levava para a feira. Entrego para ela a tesoura – que, apesar de pontiaguda, estava dentro do tamanho permitido. Já o tal “orgânico”... Me lembro que a única coisa orgânica que havia colocado naquela mala – que deveria ter sido despachada, lembrem-se bem – eram uns certos cigarrinhos de artista. Sou um artista. Estava a caminho de uma feira de artistas. Me parecia absolutamente razoável portar meus próprios cigarrinhos de artista.


Revira a mala daqui, futrica acolá e eu, anos de Actor’s Studio nas costas, impassível. Num dado momento, fecha a mala. Penso que estou livre. A fulana diz então que irá passar novamente a bagagem pelo detector. Como bom ateu, entreguei pra Deus. Ela olhou pelo equipamento e me mandou essa: “Tem malas que têm algumas coisas orgânicas mesmo, que a gente não consegue identificar. Boa viagem.”

Adrenalina a mil, entro no avião e encontro minha poltrona. De repente, pelos autofalantes da aeronave, ouço o comissário solicitar: “Gostaríamos que se identificasse o Senhor Marc... elo”.Nova descarga de adrenalina. A essa altura do campeonato, barba branca, dois filhos no lombo, passar por esse tipo de emoção barata não é mais tão divertido quanto no passado.

Chegamos ao Tukkkanistão. Nos hospedamos no hotel São Paulo Inn, Largo Santa Ifigênia, centrão. Hotel charmoso, porém decadente. Fachada lindona das antigas, quarto meio baleado. Do jeito que eu gosto, mais do que mereço. Fazem nosso check-in antes do almoço. A sorte começa a mudar.

Rolê básico pela região, almoço de lei no Sujinho. De noite, encontramos o grande Lauro Larsen, que acaba de editar, pela Mino, a pérola Os Morcegos-Cérebro de Vênus e Outras Histórias– aguardem resenha muito em breve aqui no Raio Laser. Numa churrascaria nas imediações do hotel, tomamos umas tantas longnecks e uma cachacinha para espantar o frio, enquanto papeamos sobre mercado editorial brasileiro de HQs, quadrinistas nacionais das antigas, além de avançarmos num projeto para um futuro próximo. Lauro é o cara.

Dia seguinte, peno no purgatório – Rua 25 de março – para chegar ao paraíso – Mercado Municipal. Pastel de bacalhau, sanduíche de mortadela e chope me fazem acreditar que a vida pode ser uma poesia sem fim. E aí não resta alternativa a não ser ir ao cinema conferir o novo filme do gigante dos quadrinhos (entre outras tantas searas) Alejandro Jodorowsky. Muita felicidade ver Jodorowsky em ação, esbanjando vigor aos 88 anos de idade, num filme que poucos teriam colhões e/ou talento para dirigir. Coisa fina. Encerramos a noite na Bella Paulista. Deixo um rim como parte do pagamento por uma salada, um omelete e quatro chopes.

Manhã de sábado, dia 08 de julho. Ouriçados, mala estufada de livros, gibis e quetais, tomamos o caminho da UgraFest 2017. O Sesc Belenzinho, local onde ocorre o evento, é longe do centro. Mas a estrutura do lugar compensa a distância. Gigantesco e maravilhosamente bem-cuidado, recebe o festival de forma pra lá de apropriada.


Procuramos nossa mesa e, felicidade, estamos ao lado do grande chapa (e quadrinista) DW Ribatski. Nesse primeiro instante já era perceptível o cuidado com que o casal Ugra, Douglas e Daniela Utescher, organizaram todo o evento. Os mais de 100 expositores estavam dispostos não de forma aleatória, mas por afinidade. A UgraFest é um evento que se pauta pela diversidade dentro da produção gráfica independente, o que faz com que os mais diversos tipos de propostas estivessem ali representados. Publicações bagaceiras, alternativas, experimentais, sofisticadas, indie, punk, roqueiras, mainstream e o que mais fosse possível – com exceção feita à produção meramente comercial – tiveram guarida nesta edição. E dispor autores e publicações de forma inteligente criou uma cartografia belíssima da produção independente brasileira.

Ribatski logo participaria de um dos primeiros debates do evento. Durante o período, tomamos conta de sua banca.Os debates e palestras foram outro dos diversos pontos fortes da UgraFest 2017. Temas e convidados escolhidos por quem entende do riscado geraram uma discussão absolutamente relevante para o momento que o mercado editorial brasileiro atravessa. Infelizmente, por causa da feira em si, não pude participar de nenhum destes bate-papos, apesar da vontade imensa. Então, como eu sei que foram bons mesmo? Ora, quem foi, comentou. E não sou burro de duvidar da categoria de gente como Laerte Coutinho, Rafa Campos Rocha, Fabio Zimbres, Luiz Gê e Ramon Vitral.

Crazy people: Ribatski, Márcia e Márcio

O público compareceu em peso ao evento, garantindo vendas ao menos razoáveis por ali. Não tenho números, mas estava bonito de se ver, ainda em que nenhum momento as coisas tenham ficado inviáveis pelo excesso de gente. Ou seja, se você é fã de filas (e, consequentemente, super-heróis), provavelmente ficaria decepcionado com a UgraFest. Ali, autores estavam o tempo todo disponíveis, felizes e abertos ao contato direto com seu público. Acho esse papo furado pra cacete, mas não vi nenhum momento de estrelismo durante todo o evento.

Estrela da festa, Marcatti, esbanjando a simpatia que lhe é peculiar, estava felizão com a exposição que montaram em homenagem aos 40 anos de uma carreira que inaugura e é síntese da produção independente brasileira. 40 artistas criaram versões únicas para o Mickey Mouse (ou Fritz, the cat, como queiram) de Marcatti: Frauzio.

Final do primeiro dia, arranco coragem do fundo da alma e atravessamos a cidade rumo à Laje – projeto/espaço cultural pilotado por DW Ribatski em Sampa. Aparece por ali a fina flor dos quadrinhos independentes brasileiros: Zimbres, Pedro Franz, Gerlach, Tiago Elcerdo, Pablo Carranza, Chiquinha e outros tantos. Cerveja rolando forte e um tal Karaokê. Márcia encara Patti Smith, mas o must da noite foi ver Zimbres atacando de bossa nova. Fomos embora antes dele mandar um Nirvana. Melhor assim.

Domingão. Uma leve ressaca faz com que nos atrasemos um pouco para a feira. Nada demais. O dia segue frenético. Lendário, Ota segue com transmissões ao vivo de seu celular podreira, enquanto vende a Garota Bipolar nº 2. Gerlach rouba a cena com Nóia, Uma História de Vingança em parceria com a galera da Escória Comix – que também lança o clássico instantâneo Úlcera Vortex Vol.II. Mas nem só de bagaceirices vive o homem. A Ugra também abarcou o pessoal dos zines gourmet. Belas edições e tiragens limitadíssimas. Impressões risográficas e ideias fervilhando. Muito legal também foi ver editoras como Zarabatana, Veneta, Marsupial, Draco e Mino travando contato direto com o público. Classe.

WAZ, Ota e Marcatti: não é pouca merda!

Pense na CCXP. A UgraFest não tem nada a ver com isso. Em um esforço meio grosseiro, poderíamos situar o evento do casal Utescher entre o experimentalismo da Feira Plana e a “HQ relevante nacional” do FIQ. Não que a feira esteja restrita apenas aos quadrinhos, mas este é, com certeza, seu carro-chefe. Quadrinhos para quem não lê apenas quadrinhos, por assim dizer. E neste sentido a Ugra joga papel fundamental no panorama brasileiro: o de tratar as HQs como uma linguagem madura, sofisticada e não restrita a um leitor incapaz de vivenciar experiências que transcendam o universo Super-Herói/MSP. (Um leitor verdadeiramente adulto, em última instância.)

O público que passou pelo evento está anos-luz de distância daquilo que chamamos de nerd.
Final de feira, correria total. Últimas vendas, trocas, contatos. Voltamos ao hotel com a expectativa de ainda sairmos para comer e beber algo. Ledo engano. Peço uma pizza, taco fogo num daqueles cigarrinhos da mala e fico um tempão na sacada do quarto, observando o Centro de São Paulo, sua arquitetura, o movimento que acontece durante a noite. Bela viagem.

Algumas das "coisas de artista" que estavam na mala do Márcio

O que ficou da UgraFest 2017? Uma onda positiva nos ares do mercado independente nacional. A mesma crise que me fez comprar um vôo de madrugada é responsável pelos golpes que editores e autores estão enfrentando no Brasil de agora. Vi a esmagadora maioria dos participantes saírem dali renovados, baterias recarregadas, não só pelas vendas – que muitas vezes não justificam o investimento financeiro de autores que vêm de outros Estados – mas principalmente por participarem deste momento incrivelmente rico que vive a produção independente. Existe uma rede de criatividade e ousadia espalhada por essa tranqueira de país. Existem trabalhos incríveis sendo concretizados. Existe gente do mais alto calibre discutindo e problematizando tudo isso. Em tempos horrorosamente negros como estes, Douglas, Daniela e a UgraFest dão a fita: um dos caminhos da resistência está na arte que transgride e não se acomoda.  E no prazer em produzi-la.





Forming: eram os deuses alienígenas?

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por Marcos Maciel de Almeida

Já sabia, há tempos, da existência da Editora A Bolha, do Rio de Janeiro. Nunca tinha, entretanto, adquirido nada que eles haviam publicado. Tudo mudou quando compareci à terceira edição da Dente, feira de publicações independentes, em Brasília. Estava lá um stand da editora cheio de belezinhas prontas para serem degustadas. Eram muitas opções, mas a grana estava curta. Decidido a não deixar a banquinha de mãos vazias, mas perdido em meio a tantas HQs bacanas e desconhecidas, resolvi pedir ajuda a quem manja do assunto. E ninguém melhor para isso que a própria fundadora d'A Bolha, Rachel Gontijo, também presente na feira. Ela me indicou Forming vol 1. O legal foi que já estava de olho no gibi, uma edição capa dura classuda, com cores que berravam psicodelia. Obrigado, Raquel. Você juntou a fome e a vontade de comer.

Alguns momentos antes, ao participar de um debate acerca do mercado de HQ independente no Brasil, Rachel havia falado sobre algumas de suas motivações para criar e continuar trabalhando com A Bolha. Um dos objetivos da editora é mostrar que existem muitos outros autores interessantes na cena quadrinística nacional e internacional, que não chegam ao grande público em razão das condições predatórias do mercado de publicações brasileiro. Dificuldades como obtenção de crédito financeiro, margens extorsivas dos distribuidores (leia-se Amazon) e a própria estrutura do mercado editoral brasileiro - que anda de mãos dadas com as chamadas "livrarias-shopping centers"– impedem o florescimento de uma cena que crie espaço para as variadas formas de expressão artística, especialmente as autorais, dentro e fora do universo dos quadrinhos. A Bolha vai na contramão de tudo isso. Busca, portanto, garantir a existência de áreas de convivência pacífica para todos: sejam grandes, pequenos, azuis, amarelos ou verde-verdinho-marrons.  O esforço de Rachel tem valido muito a pena. Desde sua criação, A Bolha já publicou quadrinhos de diversas vertentes, disponibilizando HQs estranhas, inconformistas, vibrantes, mas – sobretudo – necessárias. São mais de trinta petardos. Formingé um deles.


Criado por Jesse Moyniham, um dos artistas responsáveis pelos storyboards da tresloucada animação Hora da Aventura, Formingé a delirante saga de uma sociedade humanoide oriunda do cruzamento de alienígenas com humanos. O problema é que o patriarca extraterrestre, Mithras, revelou-se um mala sem alça e o restante da família resolveu escorraçá-lo da face da Terra. A narrativa enfoca vários momentos importantes para a formação dos personagens, como os quebra-paus familiares do presente e a chegada dos visitantes das estrelas em priscas eras. Em clima despretensioso, Moyniham vai tecendo uma complexa genealogia de personagens às voltas com destinos ora bizarros, ora prosaicos. Tem de tudo aqui. Viagem no tempo, seres mitológicos, personagens bíblicos, organizações alienígenas com funcionários relapsos, incesto e pancadaria. É aquele gibi que você vai lendo torcendo para não acabar, dando rápidas olhadelas no número de páginas restantes e suando frio quando percebe que o fim está próximo. 

Mithras
Formingé um universo instigante e conta com um elenco surpreendente. Adão e Eva, soldados hermafroditas, gnomos, divindades galáticas e guerreiros de sovaco raspado da quarta dimensão participam de uma epopeia histórica com ares de novela mexicana. E o drama adquire proporções cósmicas quando deuses demasiadamente humanos passam a interagir em pé de igualdade com seus adoradores. Criadores e criaturas passam, então, a dançar uma valsa sórdida que poderá trazer – e trará – consequências desastrosas para todos os envolvidos.  Usando e abusando de grades de 9 quadros, o autor desvela uma aquarela de cores que deixaria Albert Hoffman, criador do LSD, com um sorriso nos lábios.

Um dos grandes temas que perpassa o gibi é o relacionamento humano com a religião. De forma sutil, mas constante, o autor suscita diversos questionamentos de cunho espiritual, como por exemplo o fato de que as entidades destinatárias da adoração humana podem não ser flor que se cheire. Outra questão levantada é a adoração religiosa cega e automática, livre de reflexões, que oprime qualquer tipo de manifestação que aponte novas direções e ideias.

Diagramação com 9 quadros. A mais comum em Forming

Pancadaria divina


Navegando pelas páginas de Forming pude compreender mais claramente a ideia por trás d'A Bolha. Na junção de formatos aparentemente incongruentes, como o independente e o luxuoso, a editora quebra os tabus que tanto restringem a diversidade das produções em uma forma de arte que é – essencialmente – transgressora. A mensagem aqui é que tem pra todos. Pode ter gibi indie com capa dura. Pode ter com papel bom. Pode ser colorido. E se não for assim, ninguém tem nada a ver com isso. 

Forming vol.2 deve ser lançado até o segundo semestre de 2018. Aguardo ansiosamente. Enquanto isso, vou dar uma vasculhada nos outros títulos d'A Bolha Editora. Prevejo novas sessões de entretenimento de alta qualidade. 

Teaser para Forming volume 2. 

A máscara e a tolice fundamental da HQ (e do filme) de super-herói

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por Lima Neto

Muitas vezes, quando escuto algum comentário em uma roda de amigos sobre como seria bom se o ser humano tivesse super poderes, eu costumo responder com o mesmo comentário impaciente: “Ia ser a extinção”. Diante do silêncio que se segue, eu emendo: “Temos um exemplo fácil. Nós usamos todos os dias uma armadura de metal que aumenta nossa velocidade a níveis inacreditáveis; que nos permite nos proteger de alguns elementos; enxergar no escuro e outras vantagens que podemos classificar como super poder, pelo menos dentro do parâmetro de um Homem de Ferro. Mas junto com esse poder, temos também o dado trágico de 6 mortes por hora causados pelo trânsito, somente no Brasil em 2016”. Ok, os dados foram pesquisados para este artigo e computados pelo DATASUS em levantamento realizado este ano. 

Carros e super-poderes

Mas não estou aqui pra falar sobre trânsito, mas sim sobre essa relação nebulosa entre a ficção “super-heroística” e a realidade. Com a onipresença dos super-heróis nos cinemas, essa relação se tornou mais difusa ainda. Quem lê gibi há muito tempo sabe que, nos quadrinhos de indústria, sempre há uma tendência de aproximação ou afastamento do real. Essa relação chega mesmo a moldar uma identidade para as editoras. O drama mais cotidiano das identidades civis dos personagens da Marvel encontram uma resposta do público que é diferente da relação de “deuses na Terra” que costuma a dar o tom da editora DC. Mas em determinados períodos o realismo fica mais patente em ambas editoras, como é claro nos anos 80 e o boom dos quadrinhos de temática adulta. 


Esse flerte criativo ganha tons mais sombrios quando se insere o cinema nessa conta. E a DC saiu perdendo nesse quesito, trocando o fascínio mítico de seus personagens por um realismo dark superficial e sem alma. Super-herói é fantasia. É sonho de poder e ação.  Como todo sonho, pode servir de complemento ou duplo pro real, mas quando se aproxima demais da realidade, a fantasia começa a rachar e o que tem por baixo pode ser bem desagradável. Se o imaginário do automóvel parecer muito mundano, podemos partir de um item de significado arquetípico no mundo, que na cultura pop em geral vai ser alimento de infinitas narrativas, mas que vai assumir um papel definidor nas narrativas industriais: a máscara.


Sem querer academizar, mas apenas ancorando um pouco, concordarmos com o pesquisador Thierry Groensteen e sua descrição da trajetória de mudança dos temas dos gibis durante o final do sec. XIX e decorrer do séc. XX. Se formos para 7 de Fevereiro de 1936 e presenciarmos o lançamento do Fantasma, o primeiro herói mascarado dos quadrinhos, encontraremos uma HQ que se tornou um marco de popularidade e que inaugurou uma categoria dentro do gênero das “histórias de viagem” – o primeiro dos três gêneros fundadores identificados por Groensteen, sendo “fantasia” e “tolice” os outros dois. O tema do deslocamento para lugares longe do alcance dos olhos era a principal fantasia descrita por proto-quadrinistas como Rodolphe Töpffer. 

A frustração de não alcançar o destino, somada à descrição visual livre que o desenho permite, transportou o tema naturalmente para o sonho. Sonho que tem sua selvageria anárquica abrandada na noção de fantasia, que vira terreno para o desenvolvimento da ficção-científica a partir dessa mistura entre viagem e fantástico. A tolice vai ser herança da caricatura e da charge e vai ser complemento quase paralelo aos gêneros de fantasia e viagem. Vai ser juntando o herói viajante, que até os anos 30 era um fora da lei, com a moralidade do herói das tramas policiais e um visual chamativo que pega emprestado das pinturas de guerra tanto quanto dos ambientes excêntricos da vida urbana das metrópoles do séc. XX. Neste ambiente encontraremos o Espírito-Que-Anda e sua máscara.


Depois do Fantasma vieram vários. E antes dele vários mascarados já existiam nas mais diversas formas narrativas e cumprindo os mais variados papéis. Mas no final do séc. XIX e início do séc. XX, a máscara tinha um papel bem claro: impedir a identificação de um criminoso pelos meios legais oficiais, meios estes que contavam com uma ferramenta que revolucionou o processo investigativo: a fotografia. No herói e, posteriormente, no super-herói, a máscara tem uma função que remete à sua origem de “perturbador da lei” como presente na narrativa de viagem, verdadeiro “anti-herói” como defende Groensteen: o criminoso. Esse arquétipo do criminoso é a contraparte do arquétipo do detetive policial, que encontra no Dupin de Poe seu personagem de estreia. O criminoso vai ser aquele que conhece e usa as falhas do complexo sistema urbano nascente com as metrópoles para viver. Na narrativa de viagem, essa mobilidade (ou moralidade) alternativa vai garantir a transição de vilão para o anti-herói que enfrenta o desconhecido com uma artimanha não-civilizada. Anti-herói porque na máscara do Fantasma também está presente a moralidade afiada do detetive que quer proteger o status quo e reestabelecer a ordem.

É essa origem anti-heróica, dos Zorros e Sombras, Lokis e Dionísios, que identifica a máscara como um ato criminoso, não passível de redenção - nem se for o caso de proteger os entes queridos, principal justificativa para os mascarados nos gibis. Protege-se a identidade para não pagar o preço, não sofrer a retaliação, de assumir a responsabilidade pelo erro cometido. O Fantasma jura vingar a família massacrada em um ataque pirata. Protege sua identidade para escapar da responsabilidade moral, e principalmente jurídica, de agir em vingança. No caso dos super-heróis, a identidade disfarçada é uma contravenção que facilita o trabalho evitando que as vidas dos parentes, amigos e amantes se tornem alvo de algum criminoso que quer cobrar respostas pelo responsável por frustrar seus planos (cuidadosamente engendrados a partir de um código moral pessoal muito mais antagônico ao status quo, pelo menos mais antagônico que usar uma máscara, diria um super-herói). Resumindo, um jeito nobre e heroico de abrir mão de uma responsabilidade.

Mas a máscara do herói só vai perder sua ambiguidade quando nos aproximamos da realidade. Ou melhor, ao nos aproximarmos da realidade social como experimentada em boa parte do séc. XX – uma narrativa moral técnico-cientificista marcada pela análise, o corte que isola as partes buscando compreender o todo. Foi um estatístico da polícia francesa, chamado Alphonse Bertillon, que notoriamente desenvolveu a primeira sistematização da análise fotográfica forense. Betillon dividiu a representação do corpo criminoso em partes que eram comparadas entre si e divididas em categorias, gerando um arquivo de identificação de criminosos que não se baseava mais no indivíduo, mas em um traço identificador. É nessa lógica que a máscara entra em cena. A ideia de que cobrir um traço identificador é o suficiente para sumir com o indivíduo procurado. Antes dessa sistematização, a fotografia forense se limitava ao registro individual de cada criminoso no momento do flagrante, gerando toda espécie de careta por parte do afrontador como estratégia de impedir a identificação. Podemos identificar o Coringa e seu sorriso distorcido como um elo perdido entre os momentos citados da foto policial. É o traço particular que é também distorção imagética congelada, que ao mesmo tempo identifica e foge a identificação. A máscara que revela.


O herói, então, vai ser identificado pelo seu crime menor. Essa identificação pelo erro vai permitir transitar pelo sistema moral e decidir, dentre todos os envolvidos em uma narrativa, qual tem o pior crime e como aplicá-lo à justiça. É essa onisciência que justifica o erro cometido pelo mascarado e que pode ser considerado, de fato, um super-poder. Uma ação fantástica e divina que não pode ser replicada pelos mortais. O Fantasma, em suas histórias, sempre age certo. A versão nascente dos super-heróis traz esse “poder” moral amarrado a um misto de conto policial e a narrativa de viagem (na forma como era mais consumida nos anos 30, a ficção científica). Essa certeza do certo é ao mesmo tempo o núcleo infantil, tolo, do super-herói desse período. Quando falo de núcleo infantil, de infantilidade, não falo de maneira pejorativa. Mas me refiro à infância como potência anárquica, fora-da-lei. Aquela infância abissal e constituinte da identidade adulta. É a tolice como confronto à razão. O Tolo místico que não deixa nem um abismo interferir em seu transitar. É movimento puro, trânsito livre pelas frestas do mundo civilizado, mas paradoxalmente atrelado a alguma forma de justiça e manutenção da lei.

Como o super poder da armadura do Homem de Ferro, esta habilidade de saber o que é certo não consegue trazer alento algum ao ser humano, caso existisse no mundo real. A própria concepção de uma comparação dessas resvala no humor ridículo da tolice, o gênero inicial que é reflexo invertido do herói narrativo. “Ridículo um homem usar uma cueca por cima das calças”, essa é a pitada de ridículo que equilibra o ato de se esquivar da responsabilidade do ato justiceiro. É o humor cinematográfico que, quando bem colocado, reforça a presença do herói na história que está sendo mostrada, por mais irreais que sejam as imagens mostradas. A tolice fundamental retira o super herói da dimensão analítica do real ao lembrar de sua origem vestigial como sátira. Retire a tolice, e o peso da realidade esmaga o que sobrar. Um exemplo do que aconteceria se um super-herói que sabe o que é certo existisse no mundo real é o fenômeno das milícias denominadas “Liga da Justiça”. 

Entre 2006 e 2016, dois grupos “paramilitares” denominados “Liga da Justiça” atuaram em estados distintos: Rio de Janeiro e Mato Grosso. A ligação entre os grupos? Apenas a certeza de estar fazendo o certo, e de que o resultado justifica o crime de chacina. O mais notório deles, que atuou entre 2006 e 2010, agia na cidade do Rio de Janeiro e vizinhanças, liderados por Adelmar do Santos e Ricardo Teixeira, respectivamente chamados de Batman e Robin. Esse vigilantismo reacionário e suas implicações morais e sociais foram um tema carro-chefe dos quadrinhos dos anos 80, especialmente no trabalho de Frank Miller, que dava forma particular a um sentimento geral de insegurança no período. Insegurança ao mesmo tempo fantástica (com o pesadelo atômico) e policial (com metrópoles abarrotadas e à beira de um colapso social). 

Como os heróis citados, ambas as milícias atuavam com um elemento em comum: a máscara. Difícil imaginar, antes da popularidade dos filmes de super-heróis, que estes personagens serviriam de inspiração para ações tão reais.  Hoje em dia a internet e as mídias sociais são o meio de divulgação de cada vez mais narrativas reais de ações extremas geradas pela certeza equivocada do que é certo. Entretanto, a máscara vem ficando em segundo lugar, como pode ser ver nas produções de Hollywood que não conseguem se livrar do vício no “star system”, ou sendo substituída pelo baile mascarado mundial que é a internet. Não cabe a este texto elaborar esta questão.

Para usar, então, o poder de estar certo, é preciso arcar com as consequências (o personagem Justiceiro é um exemplo dessa atitude), ou esquivar-se da responsabilidade usando o artifício da máscara (ação que só obtém êxito quando ciente da tolice envolvida). Sem a tolice, sem o lúdico e o e o faz-de-conta juvenil que é fundador do gênero, a bênção da onisciência vira arrogância insensível na história de super-herói. O realismo pode, sim, gerar boas histórias do gênero. Existem vários gibis que conseguem esse êxito. Mas o sucesso dessas HQs se dá graças à herança já secular da “contação de histórias” em quadrinhos. Algo que dificilmente o cinema de super-herói, como meio essencialmente ligado a um mercado quase infinitesimalmente mais caro que o de HQs, vai ter o luxo de desenvolver. E muito provavelmente nem vai precisar desenvolver.

Carros e super-poderes (2)

Cavaleiro da Lua: o herói lunático ainda luta por um lugar ao sol

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 Por Marcos Maciel de Almeida

Werewolf by night # 32 (1975): Primeira aparição do Cavaleiro da Lua
Quem lê quadrinhos há algum tempo certamente já ouviu a clássica pergunta: “Qual é seu personagem favorito?” Costumo responder que o personagem não é o mais importante, mas sim o talento do escritor que vai contar as histórias do dito cujo. Por isso, acredito que leitores inveterados como eu tenham mais fidelidade a autores que a personagens. Digo isso porque mesmo personagens aparentemente sem sal podem se tornar interessantes, quando colocados sob a lupa de um escritor sagaz. Estão aí o Starman de James Robinson e o Homem-Animal do Grant Morrison que não me deixam mentir. A recíproca também é verdadeira. Personagens consagrados não são sinônimo automático de boas histórias. Ainda assim, existem personagens que nos cativam de forma instantânea e incondicional, seja por seu apelo visual, seja pelo tipo de narrativa que costumam inspirar. Por ambos motivos, o Cavaleiro da Lua sempre foi um de meus heróis prediletos. O uniforme maneiro, que lhe conferia uma charmosa aura de mistério, e a temática, envolvendo o submundo bizarro da Marvel, viraram paixão à primeira leitura. Pena que o personagem nunca teve muita longevidade nos títulos que envergaram seu nome, desde sua criação em 1975.

Cavaleiro da Lua, o herói quatro em um.
O Cavaleiro da Lua deve ser um dos personagens do segundo escalão das HQs com recorde na quantidade de edições número 1 lançadas nos Estados Unidos. Só de séries mensais já teve sete, a maioria cancelada prematuramente. O personagem, infelizmente, não costuma ser sucesso de vendas. Sua série mais recente, que teve como argumentista o queridinho do mercado norteamericano, Jeff Lemire, também foi... consegue adivinhar? Cancelada. Melhor sina mereceria o herói encapuzado, apontado por alguns como o Batman da Marvel. Comparação justa? Vejamos. O Cavaleiro também é um combatente do crime desprovido de poderes. Assim como o Morcegão, conta com um arsenal de apetrechos tecnológicos. Seu auxiliar e funcionário, o Francês, é uma espécie de Alfred que mete mais a mão na massa. Mas as semelhanças param por aí. Por incrível que pareça, o Batman – muitas vezes retratado como um maníaco obsessivo não muito diferente de seus inimigos – pode ser considerado um poço de sanidade perto do Cavaleiro da Lua. Enquanto o Cavaleiro (das Trevas) tem uma vida dupla o outro Cavaleiro (da Lua) compartilha sua vida com mais três identidades: o playboy milionário Steven Grant, o taxista Jake Lockley e o mercenário Marc Spector. E os problemas psicológicos de nosso herói não se resumem a isso. Fazendo uma análise da trajetória das publicações do herói, pode-se ver que a grande luta do Cavaleiro da Lua caracteriza-se pelo esforço de manutenção de um mínimo de sanidade. E isso não é de hoje.



Desde a fase clássica de Doug Moench, criador do personagem, e Bill Sienkiewicz, já era patente que o personagem tinha alguns parafusos a menos, fato evidenciado não apenas pela sua divisão em quatro personalidades. Numa minissérie – lindamente desenhada por Tommy Lee Edwards e inédita no Brasil – de 1998, Moench começa a carregar ainda mais nas tintas da esquizofrenia do mascarado. Numa história de alucinação que deixaria Philip K. Dick orgulhoso, o Cavaleiro da Lua é lançado numa realidade de sonho, ilusão e delírio. Outros autores que também exploraram temática semelhante foram Brian Michael Bendis e Alex Maleev, responsáveis pelas doze edições publicadas nos EUA a partir de 2011. Nessa série, o Cavaleiro da Lua sofre nova crise de identidade e passa a acreditar que... Deixa para lá. Não quero dar spoilers. 

Cavaleiro da Lua de Bendis e Maleev

Ironicamente, a fase em que o Cavaleiro volta a apresentar algum sinal de propósito e lucidez ocorre nas seis edições assinadas pelo doidão Warren Ellis que cria, em 2014, novos conceitos, bastante interessantes, para o personagem. Agora ele tem um novo uniforme e um comissário Gordon para chamar de seu. Além disso, passa a se denominar “o viajante noturno”, que seria uma espécie de protetor das almas perdidas na madrugada, vítimas das ameaças de nosso e de outros planos de existência. A fase de Ellis é pura porralouquice. Mostra o Cavaleiro dando porrada em punks fantasmas, descendo até os recônditos do esgoto de Nova York,  e invadindo os sonhos alheios. Aliás, a história do pugilato com punks ectoplásmicos é o suprassumo do que o Cavaleiro da Lua deveria ser: um personagem dividido entre várias personalidades, mas que só encontra a paz quando está às voltas com os becos mais sombrios e sobrenaturais do Universo Marvel. 

Ele seria, portanto, o verdadeiro detetive do impossível, com o perdão da usurpação do epíteto de Martin Mystère. Não que o Cavaleiro deva se restringir a isso. Muito pelo contrário. Ellis sabe disso e utiliza seus vastos recursos narrativos para encerrar sua fase com chave de ouro. Numa história que remete aos grandes momentos de Spirit, intitulada “Espectro”, o Cavaleiro da Lua torna-se mero coadjuvante num conto que revela o efêmero surgimento do novo Espectro Negro, personagem cuja brutalidade só é superada pela própria estupidez. Ah, já ia esquecendo: a fase de Ellis é toda desenhada por Declan Shalvey, que manda bem pra cacete. 


Cavaleiro da Lua: no mundo dos sonhos ou dos pesadelos?”

Bem, tudo que é bom dura pouco e Ellis vazou rapidinho, dando lugar a Brian Wood. E aqui gostaria de abrir um parêntese. É complicado para um personagem evoluir com a frequente mudança de equipes criativas. E para o paciente em questão, o estrago pode ser ainda maior, afinal de contas o Cavaleiro da Lua já não bate muito bem e precisa de um pouco de estabilidade, coitado. Pena que os editores recentes do vigilante nunca sacaram isso e insistiram no troca-troca. A fase de Wood – bastante irregular - durou seis números e, na sequência, o título foi assumido por Cullen Bunn. Também não darei muita moral para a fase deste escritor, que não foi exatamente um primor. Com a honrosa exceção de seu trabalho no conto “Anjos”, ele não conseguiu avançar muito com o personagem. Embora esta história não vá muito além de narrar uma cena de pancadaria urbana entre o Cavaleiro da Lua e bandidos voadores, é importante para mostrar a riqueza de situações em que o personagem pode ser aproveitado.

Pancadaria aérea é o que há

A lua do Cavaleiro, que nessa época estava minguante, volta a brilhar mais forte quando uma dupla de responsa assume a revista: o já citado Jeff Lemire e o talentoso desenhista Greg Smallwood. O resultado foi excelente e comprovou minha teoria lá do começo. Está aqui mais uma demonstração de que são os escritores que fazem o personagem e não o contrário. Os bons autores são capazes, dentre outros feitos, de nos fazer enxergar coisas que estavam bem debaixo dos nossos olhos. Exemplo: o que temos de fazer com pessoas loucas e potencialmente perigosas? Internar num hospício. E esse foi o destino de nosso herói, que lá pôde encontrar seu elenco de apoio original: Marlene, Francês e Crawley, há muito ausentes do gibi. E sim, a luta do vigilante pela sanidade continua árdua, especialmente agora que tentam convencê-lo de que o Cavaleiro da Lua nunca existiu. Outro fator que dificulta sua recuperação é o fato de que ele passa a enxergar uma realidade em que Nova York, agora habitada por divindades e criaturas lendárias, se fundiu com o Egito Antigo. Somente foram lançados os primeiros cinco números da fase de Lemire no Brasil, mas o autor já disse a que veio. Espero que dessa vez a coisa engate e...putz, tinha esquecido: a revista foi... (agora você vai acertar) cancelada, depois de 14 edições. 

Quem quiser dar uma conferida no material acima pode procurar as revistas abaixo, lançadas no Brasil pela Panini:

Cavaleiro da Lua – Recomeço – Vols 1 e 2, 2015. (Fase do Brian Michael Bendis)

Cavaleiro da Lua – Vols 1-4, 2015-2017. (Fase do Ellis, Brian Wood, Cullen Bunn e Lemire. Um gibi para cada escritor). 

O Cavaleiro da Lua não parece ter sorte nos quadrinhos e muito menos em seu histórico de publicações. É uma pena, pois o personagem tem muito potencial, como ficou evidenciado quando teve escritores decentes, como Ellis e Lemire. 

Ah, infelizmente, o Cavaleiro da Lua não pode ser considerado o Batman da Marvel, embora existam semelhanças inegáveis entre ambos. Afirmo isso por uma simples razão. O Cavaleiro da Lua passou bem longe da sombra do sucesso do morcego. Se ele tivesse tido, ao menos, 1% do reconhecimento de seu primo rico, a coisa seria diferente. Mas isso seria uma outra realidade. E só nela o Cavaleiro poderia dizer que nasceu virado para a lua. 

O Cavaleiro da Lua de Stephen Platt. Esta imagem está aqui simplesmente porque é muito foda

Asterix poderia ser a melhor HQ da história? O que os novos álbuns dizem sobre isso.

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por Ciro I. Marcondes

Eu costumava defender que Asterix é a melhor história em quadrinhos de todos os tempos. Hoje, acho que este tipo de categorização não faz o menor sentido, por razões bastante óbvias. Mas, a título de curiosidade, o que eu argumentava? Cabem aqui alguns critérios desta avaliação pessoal. 


Primeiro, a popularidade e a localização providencial na história das HQs. Asterix foi publicado pela primeira vez na revista Pilote, em 1959. Os autores René Goscinny e Albert Uderzo vinham de outras publicações que se tornaram célebres: desde 55, Goscinny publicava Lucky Luke (que continuará fazendo até sua morte), desenhada pelo gigante Morris. Também em 55 ele publicou Pistolin, personagem infantil ilustrado por Hubinon. No Jornal do Tintim, publicou com o que podemos considerar a fina flor tanto do groz-nez quanto da linha clara: André Franquin (em Modeste e Pompon), Raymond Macherot (Klaxon), Bob de Moor (Monsieur Tric), além de ter produzido Humpa-Pá com Uderzo de 58 a 62. Além disso, Goscinny trabalha, nos anos 60, com Gotlib (Dingodossieurs) e Jean-Louis Tabary (Iznogoud). O homem era uma máquina de parir clássicos. Vejam bem: ele viveu um tempo nos Estados Unidos (daí o western de Lucky Luke) e conheceu Harvey Kurtzman,Will Elder, John Severin, a galera da MAD. Este certamente conhecia os caminhos de humor. 

Edição véia de Humpa-Pá
Asterix chega como um colosso de destruição e ultrapassa a popularidade de todos estas referências da BD francesa. Goscinny assume o posto de redator chefe da Pilote entre 63 e 74, deixando o perfil da revista mais voltado ao adolescente e ao jovem adulto, o que pavimenta o caminho para a Métal Hurlant e a virada moderna nas BDs. Uderzo, que já desenhara um personagem gaulês nos anos 40 (Arys Buck), realiza, ao mesmo tempo, junto ao lendário roteirista e editor Jean-Michel Charlier, a série de aviação Tanguy e Laverdure, demonstrando envergadura na hora de realizar um trabalho realista. 

Lucky Luke, Humpa-Pá, Tanguy, etc., o que são estas coisas perto de Asterix? Goscinny e Uderzo, por mais que tenham sido questionados por Jean Giraud (aka Moebius) nos anos 70, foram os precursores da revolução. Estão ali, no olho do furacão entre o clássico e o moderno, erigiram tijolo por tijolo a consagração da BD francesa, apresentaram estas insubstituíveis criações ao mundo. Hoje, Asterix é o quadrinho traduzido para mais línguas no mundo inteiro. Possivelmente o embaixador desta forma de arte na Terra.


Arys Buck: personagem gaulês criado por Uderzo nos anos 40
Tanguy e Laverdure: HQ de aviação ilustrada por Uderzo antes de Asterix

René Goscinny e Albert Uderzo
Porém, não é só o sucesso comercial que qualificaria Asterix para esse mérito. A universalidade do quadrinho, seu foco na luta e na resistência, sua índole preparada para sobrepujar a tirania, não de uma maneira maniqueísta e insípida como em sua contrapartida americana (os super-heróis), mas com devida complexidade histórica, cultural, psicológica, arquetípica, dialogando ao mesmo tempo com a antiguidade e com o tempo presente. Com a criança e com o adulto. Com distintas gerações.
Universalidade, enfim. Que outro quadrinho tem tamanho poder de se espraiar para tantos públicos distintos? Uderzo chegou a afirmar que Asterix seria “resultado contra a invasão de quadrinhos e desenhos animados americanos”. A questão é: por mais que Asterix seja profundamente vinculado à cultura europeia e especialmente francesa, seus tropos principais (o particular contra o universal; a resistência ao imperialismo; a convivência e o antagonismo entre diferentes povos; a diversa fauna humana; o campo x a cidade, etc.) mostraram que podem ser adaptados a inúmeros contextos diferentes.

A primeira história de Asterix (O Gaulês) saiu em álbum já em 1961, ajudando a configurar a cultura que mais tarde chamaríamos de graphic novel. Goscinny acabou se revelando um mestre das situações, gags e diálogos nos roteiros da série: ele dominava o humor físico, a onomatopeia, a piada visual, os trocadilhos, o timing narrativo, tinha um vasto leque de referências, aperfeiçoou a arte da sátira. Ler um Asterix escrito por ele traz enorme satisfação e a sensação de que se está sendo genialmente bem recompensado por algo despretensioso, capaz de tocar o coração de qualquer qualidade de leitor.

E tem a arte de Uderzo, é claro. Sem um ilustrador tão brilhante, provavelmente Asterix não tivesse sequer chegado a um segundo álbum. Uderzo cria não apenas expressões e personagens marcantes: é um mestre da arquitetura, da indumentária, do design gráfico, do movimento, do encadeamento entre os quadros, das imagens panorâmicas, da reconstituição histórica. Os requadros de Uderzo são tão carregados de potência por toda parte que umedecem os olhos, contagiam sem dó. Torna-se uma emoção abrir um Asterix e passar as páginas com ilustrações tão carismáticas e energizadas. O groz-nez não foi inventado por ele, mas certamente este estilo não está mais cristalizado em nenhum outro lugar exceto no lápis de Uderzo, verdadeiro fundador de uma inteira concepção visual das coisas. De certa maneira, é um anti-Mauricio de Sousa: seus cenários são ricos, sua quadrinização complexa e bem engatada em sequências que não conseguimos parar de ler. A expressão de seus personagens é mais intensa que a própria realidade. Obelix é mais humano que a humanidade.

Asterix é isso: uma abóboda radial que não é somente clássica nem moderna, não é somente para crianças nem para adultos, e nem somente realista ou caricatural. Está ali, num polo deflagrador de uma nova cultura de quadrinhos (o início dos anos 60), a cada álbum se afirmando como arquétipo primordial desta forma de arte. Podemos citar inúmeras coisas que vieram antes dele – como Herriman, Caniff, Eisner, Hal Foster, Hugo Pratt, etc. – ,mas nenhum deles ocupa tantos lugares ao mesmo tempo. A questão, para mim, é: na corrida de longa distância, nos pontos corridos, no conjunto da obra, Asterix chega mais longe. É a virtude da onipresença.     


Goscinny morreu com apenas 51 anos, em 1977. Sofreu um ataque cardíaco enquanto fazia uma prova de esforço (!) num exame de rotina. Como bem sabemos, Uderzo assume os roteiros a partir de 1980 (O Grande Fosso). O último álbum com roteiro de Goscinny sai em 1979 (Asterix Entre os Belgas). Obviamente, os álbuns feitos somente por Uderzo devem ser desconsiderados (talvez, exceto, pelo simpático A Odisseia de Asterix). A qualidade cai não apenas nos roteiros, que se tornam óbvios, sem graça e infantiloides, como também na arte, mais esquemática, simplória e televisiva. 

Isso até que, em 2011, Uderzo, praticamente incapaz de desenhar mais, decide largar o osso e passar o bastão (ainda que sob controle rigoroso) para, pela primeira vez na história, uma dupla que não tenha Goscinny ou ele próprio produzirem um álbum de Asterix. Em 2013, saiu Asterix Entre os Pictos e, em 2015, O Papiro de César. Em outubro deve vir um terceiro lançamento, estranhamente nomeado Asterix e a Transitálica.   



Os dois novos álbuns

A dupla responsável pelos novos Asterix herdou um fardo que (após este preâmbulo grandinho e entusiasmado) dispensa comentários. A questão é que Uderzo não escolheu um par de “nobodies”, mas sim quadrinistas experientes e renomados na sólida tradição franco-belga.

Trocar de autores na BD clássica nunca foi um problema. Spirou teve Jijé, Franquin, Janry e outros. Os Schtroumpfs, sempre assinados por Peyo, tiveram inúmeros ghost writers. Alix, depois da morte de Jacques Martin, também passou para as mãos de terceiros. Nem todos podem ser Hergé (que também tinha assistentes), certo? Obviamente, a esta altura do campeonato, Asterix não poderia ser assim encerrado. Aquilo não é simplesmente uma instituição francesa, é uma mina de ouro. Asterix Entre os Pictos saiu numa tiragem mundial de cerca de 5 milhões de exemplares. É o quadrinho mais vendido do mundo. Seria até digno se, tal qual fizeram com Herriman e seu Krazy Kat após sua morte, declarassem que “é impossível fazer Asterix sem Goscinny ou Uderzo”. A real é que uma nova era se inicia na mitologia do baixinho gaulês e seu amigo “pluz size”.

Les Innommables, de Conrad e Yann
O desenhista recrutado foi ninguém menos que Didier Conrad, veterano da BD dos anos 70, que fez carreira na Revista Spirou e era apadrinhado de Franquin. Seu trabalho mais conhecido até então era a série Les Innommables, um sombrio registro de guerra realizado com roteiros do iconoclástico Yann. A dupla ainda realizou, entre os anos 1990 e 2000, a série Kid Lucky, um spin-off de Lucky Luke, sobre a infância do cowboy. Para o texto, no entanto, foi convocado um autor mais jovem, Jean-Yves Ferri, colaborador da clássica revista Fluide Glacial desde os anos 90. Seu trabalho mais notável foi a série Le Retour à la Terre, ilustrada pelo hoje cultuadíssimo Manu Larcenet (autor de Le Combat Ordinaire, que merece uma resenha à parte).

Asterix Entre os Pictosé conservador na medida em que é impossível não sê-lo. A realização deste primeiro álbum foi marejada por grande expectativa e uma delicada sensibilidade. Uderzo até assina a capa (ele desenhou o Obelix) junto com Conrad, como se selasse uma despedida. Dá pra perceber que tiveram de escolher, a duras penas, um entre os grandes gêneros das histórias de Asterix (encontro com os estrangeiros; exploração da própria França; encontros com os romanos; dramas pessoais dos personagens), justamente o aparentemente mais popular: a viagem ao exterior. 

Le Retour á la Terre, de Ferri e Larcenet
Foram elegidos desta vez os escoceses (na época a etnia céltica dos pictos, que o leitor de Conan deve conhecer como selvagens degenerados), e a estrutura é sim formulaica, mas, (como dizer isso?) uma fórmula para se realizar um bom Asterix não é simples. É como um algoritmo. É preciso concatenar o protagonismo de Asterix e Obelix com o dos inúmeros coadjuvantes, novos e velhos. É preciso seguir, com equilíbrio, uma mini-estrutura da clássica “jornada do herói”. É preciso trazer o povo visitado à sensibilidade do leitor a partir de parâmetros contemporâneos (eles falam, em inglês, várias passagens de músicas pop; o monstro do Lago Ness está presente) e também históricos (os pictos usam roupa à moda “highlander” escocesa e ostentam tatuagens na forma de pictogramas – também velhos e novos). É preciso incluir a poção mágica, o bardo, romanos, os piratas, etc. Como toda forma audiovisual, literária ou em quadrinhos clássica, é preciso que o leitor se sinta num lugar familiar, mas ao mesmo tempo que a experiência seja nova. Como um bom "coq au vin" francês, a receita é antiga, mas o preparo extremamente meticuloso.

Asterix Entre os Pictos pode não ser nada revolucionário (nem poderia e nem deveria) –  é um álbum simples, efetivo e divertido – mas seu principal mérito é uma busca consciente pelo estilo e estruturação que Goscinny dava aos álbuns nos anos 70. Assim, afasta-se logo o fantasma da fase infantil de Uderzo. É um remake quase obcecadamente respeitoso com a memória do material de ouro da série, e neste sentido um pouco covarde. 


Experientes, Conrad e Ferri não legam, aqui, qualquer traço de autoralidade. Neste sentido, poderíamos colocar Asterix Entre os Pictos como um fenômeno de nostalgia reverente tipo os novos Star Wars/Disney ou o reboot de Arquivo X: a proximidade clonada no original cala a boca dos fãs, mas deixa certo sabor anódino. A arte de Conrad lembra até um primeiro Uderzo (de Tanguy e Laverdure ou Humpa-Pá). Jogar na retranca parecia um bom local para se começar. 

O Papiro de César arrisca outra linha. Depois de um empate fora de casa, é possível ousar, com o auxílio da torcida. Aqui, César está escrevendo as memórias de sua trajetória como imperador (“Comentários sobre as guerras contra os gauleses”), e um capítulo versa sobre as derrotas sofridas contra certos gauleses da Armórica. O conselheiro e editor de César, um mesquinho Promocionus, o convence a limar este capítulo para não manchar a sua reputação. Porém, um dos escribas-escravos resolve fazer uma cópia clandestina e passar para Superpolemix, um gaulês do “Mensageiros Sem Fronteiras”, que decide levar o papiro até a aldeia gaulesa e publicar ("leak") o escândalo.

O papiro acaba servindo como McGuffin, mas isso não é tão importante. Ferri e Conrad se utilizam deste tópico em modelos de comunicação para pensar temas pertinentes à atualidade: desinformação, fake news, mídia, autoria, plágio, manipulação da informação, sensacionalismo, o papel do jornalista.
É ousada a maneira como os autores refletem sobre a materialidade dos meios (pombos-correio, carroças, papiros, gravações em pedra), sobre como suas circunstâncias acabam por moldar não apenas o conteúdo das mensagens, mas também a política ao redor delas, as estruturas de poder que são movimentadas de acordo com as transformações destes meios, e as maneiras de se sobrepujar a informação através dos fatos reais. Claramente mcluhaniano, este é um dos álbuns mais intelectuais de Asterix. Ferri e Conrad (sempre se programando dentro do algoritmo Goscinnyniano) desta vez ousam, mesmo que dentro de determinados limites. A grande ironia está na suposta ignorância dos gauleses, que levam o manuscrito a um velho druida na floresta para que ele o memorize e assim as histórias sejam passadas adiante. “Os escritos voam e as palavras permanecem”, chega a dizer Panoramix. 


Talvez, no final das contas, a palavra escrita, segundo O Papiro de César, tenha mais a ver com poder do que com informação. A palavra oral, esta sim, seria mídia primordial, transmitida através das agruras da memorização, um rito ancestral mais honrado e garantido. Apesar de anunciarem um apocalipse da mídia (como negar isso para 2017, diante de Trump e tudo?), Ferri e Conrad deixam uma simpática mensagem: eles são como os druidas e transmitirão a palavra de Asterix com devida deferência. 

Talvez, enfim, mais Asterix, diante da ausência de Goscinny e Uderzo, seja sim supérfluo. Mas nunca esqueçamos que vivemos num lamaçal cultural pós-moderno. Então, é bom poder firmar os pés no chão de vez em quando.

Didier Conrad e Jean-Yves Ferri: os arautos

Sleeper: infiltrado no coração das trevas

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por Marcos Maciel de Almeida

A dupla Ed Brubaker e Sean Philips é um exemplo das combinações que dão muito certo, tipo Lennon e McCartney, Leone e Morricone e pastel com caldo de cana. E olha que a chance de êxito dessa combinação não era exatamente uma certeza. Tudo bem que o Brubaker já era conhecido dos fãs de gibis de temática urbana com forte pegada policialesca, como Gotham Central e Batman, mas seu parceiro no crime Sean Philips tinha construído sua fama tendo seu nome mais associado aos gêneros de terror e aventura, após fases memoráveis em gibis como Hellblazer e Wildcats

Mas a união de esforços dos dois autores, dedicada a contar histórias de suspense com ambientação noir envolvendo as castas mais baixas e mais altas do submundo, derrubou qualquer desconfiança. 5 gibis depois (Criminal, Incognito, Fatale, Sleeper e Fade Out, não necessariamente nessa ordem), com inegável sucesso de público e crítica, além de diversas indicações para o Eisner (que lhes rendeu dois prêmios de melhor série com Criminal e Fade Out), Brubaker e Philips perceberam que a química entre os dois funcionava que era uma beleza. Ou talvez nem fosse química. Acho que a palavra correta poderia ser alquimia, já que tudo que os caras tocam parece virar ouro. E bem, das pepitas que a dupla já garimpou, resolvi dar uma analisada nesta aqui: Sleeper, de 2003.


Para quem não sabe, "sleeper"é o termo que designa um espião que fica dormente em uma organização até o momento em que lhe ordenam interromper suas atividades de espionagem, seja por motivos de segurança pessoal, seja para dar início ao plano de ataque contra o inimigo. E o Sleeper deste gibi refere-se a Holden Carver, ex-pupilo de John Lynch, uma espécie de Nick Fury criado pelo Jim Lee. E sim, meus amigos, como já deu para perceber, embora o gibi tenha a maior cara de revista da Image, o fato é que ela faz parte do selo Wildstorm e, por conseguinte, do Universo DC. Mas bem, isso não é problema, visto que nenhum dos personagens puro sangue da Divina Concorrência aparece para colocar água no nosso chopp. Então, como eu ia dizendo, o Carver, que ganhou a habilidade de armazenar e distribuir dor física graças a um artefato alienígena (sim, isso foi meio boçal, mas fazer o que?) foi escolhido para infiltrar uma organização terrorista que emprega bandidos superpoderosos. O problema é que a tal organização é chefiada por um dos vilões mais casca grossa já inventados nos quadrinhos: Tao.

Talvez você não esteja ligando o nome à pessoa, mas o Tao foi um personagem criado pelo Alan Moore, durante sua passagem pelos Wildcats. Bem, se você não leu, recomendo que o faça assim que possível, porque se trata de material de primeira linha, com desenhos do irrepreensível – e infelizmente sumidaço – Travis Charest. Tao, acrônimo de Tactically Augmented Organism, é um ser criado em laboratório como parte de experimento envolvendo a criação de seres artificiais. Sua atuação terrorista, caracterizada por ataques de intensa selvageria e ousadia, chamam a atenção do chefe da IO (International Operations), John Lynch, que resolve destruir a organização de Tao por dentro, por meio da infiltração de Carver. Mas bem, porque o tal Tao é casca grossa? Ele tem superpoderes? Não, mas possui a mente criminosa mais fria e calculista do universo Wildstorm, além de uma forte capacidade de manipulação. Sem querer dar spoilers, esse cara foi capaz de escapar tranquilamente de um prédio cheio de Wildcats, deixando na saudade medalhões como o Superman (ops!), digo, Mr. Majestic. Mal comparando, pode-se dizer que seria uma espécie de Reed Richards malvado, com tendências ao sadismo.


Tao, maldade encarnada

Bem, a pegada do gibi é de pura pressão psicológica, relatando a trajetória de Holden Carver em sua tentativa de ganhar terreno na organização comandada por Tao. Mas, como se não bastasse o clima tenso de ter que enganar a mente mais brilhante e mortal do planeta, que não cansa de fungar em seu cangote, Carver tem ainda de lidar com o fato de que Lynch, a única pessoa que sabe de sua condição de espião, está em coma. Trocando em miúdos, nosso herói está fudido e mal pago, porque os mocinhos querem seu couro e os vilões não perdoarão sua eventual traição. Um dos grandes momentos do gibi é o jogo de gato e rato entre Carver e Tao, que adora usar de ambiguidade e ironia com o subordinado, como que para dar indiretas de que já sabia quem era o espião em seu grupo. 

O cast é um capítulo à parte, contendo personagens tão bizarros que deixariam David Lynch orgulhoso. Para Brubaker, o cerne do gibi é a relação de Carver com Miss Misery, a sensual comandante de Tao. Lembra que o Hulk ficava mais forte à medida que ficava furioso? Então, Miss Misery fica mais poderosa sempre que agride ou tortura alguém. Só que esse esquema também funciona ao contrário. O afeto e o carinho recebidos trarão dor e mal estar para ela. Esse é o tamanho da enrascada em que Carver se meteu. A mulher que ele deseja fica doente quando se apaixona e só fica bem quando ele se ferra. Outro personagem interessante é o segundo em comando de Tao, Peter Grimm. O carequinha, capaz de deixar o cérebro de qualquer um num loop eterno de pesadelos, não foi com a cara de Carver e está querendo sacaneá-lo assim que possível. 

Holden Carver desempenha o arquétipo tradicional dos gibis e filmes noir. Durão, mas de bom coração. Machão, mas sempre alerta para impedir que injustiças sejam cometidas. Incontornáveis, para ele, são seus princípios de lealdade para com seus amigos e entes queridos. E, quando percebe que sua presença tornou-se um perigo para eles, segue aquela cartilha do herói que ensina que o melhor a fazer é se afastar. E esse é o grande sacrifício de Carver. Em busca do bem maior, abandona sua vida e sua esposa, para ir lamber as botas do capeta. Perdido numa realidade em que os amigos são os inimigos, e isolado de sua verdade enquanto pessoa, Carver é um náufrago no oceano da própria mente. 

Trio Parada Dura: Tao e seus asseclas

Um dos grandes méritos de Sleeper é sua despretensão. O gibi não quer ser o novo grande hit, mas simplesmente contar uma história bacana, com começo, meio e fim. E os autores tem pleno êxito nessa proposta. Se você está querendo vasculhar os becos mais escuros e sórdidos do universo Wildstorm, seu gibi é esse aqui. 

Escritores de talento são aqueles que, além de saberem contar uma boa história, têm a manha de escolher os melhores brinquedinhos para fazê-la funcionar. E Brubaker fez exatamente isso. Pegou um personagem desconhecido (Carver), utilizou organizações já estabelecidas como a IO e colocou na mistura uma das melhores criações de Alan Moore durante sua passagem pelos Wildcats (Tao). E o resultado deu caldo. É isso aí. Não durma no ponto. Leia Sleeper.  

Sleeper durou duas "temporadas", cada uma com doze edições, e foi publicado pela DC/Wildstorm na gringa. O material ainda está inédito no Brasil. E isso sim é um crime tão perverso que nem Tao conseguiu conceber.

Holden Carver, sleeper agent

De Caligari a Zorglub

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por Ciro I. Marcondes

1: A tentação de Kracauer

Em 1947 o filósofo Siegfried Kracauer, ligado à famosa escola de Frankfurt, lançou um bombástico livro que se tornou um clássico da chamada “teoria crítica” aplicada ao cinema. De Caligari a Hitler – Uma História Psicológica do Cinema Alemão se baseava nos princípios de análise cultural frankfurtiana (privilegiando eventos de cultura “popular” e “de massas”, inaugurando um olhar filosófico sobre estes temas) para traçar uma curiosa linha do tempo entre os fabulosos filmes do chamado “expressionismo alemão” e a ascensão e adesão do povo alemão a Adolf Hitler e ao terceiro Reich. 

Kracauer gostava de pensar o cinema a partir de seus elementos técnicos, e considerava (conforme podemos ler em sua outra obra fundamental, Theory of Film, de 1960) o mundo matemático da abstração (e, logo, consumido pela técnica) com nocivo ao nosso contato “direto” com a realidade (seja lá o que isso queira dizer). Em 1960, ele dava continuidade, portanto, por meio do pensamento sobre a comunicação, à velha ideia da “alienação” marxista. A única redenção seria uma re-ligação com o mundo das coisas reais, uma redenção por meio das imagens “naturais” produzidas pelo cinema. Este meio de comunicação teria esse poder de nos envolver novamente com um metafórico “retorno à terra”. Uma espécie de encontro com nossa natureza mais primeva e essencial. A contribuição de Kracauer se tornou uma das mais distintas teorias realistas do cinema.

Sig
Porém, a técnica foi pensada de maneira diferente no livro de 1947. As ideias de Kracauer para a ascensão de Hitler, consideradas hoje como teoria “traumática” (porque produzidas logo após a segunda guerra – e ele era judeu), têm sim um direcionamento claro, um tipo de ficção sobre si mesmas, são teleológicas, miram um certo resultado. Mas não deixam de ser fascinantes. O filósofo analisou inúmeros filmes da chamada “República de Weimar”, entre O Gabinete do Dr. Caligari (1919) e até o final dos anos 20, para traçar um paralelo entre o efeito hipnótico dos inúmeros déspotas ilustrados pelo expressionismo e a aceitação do povo alemão para as ideias nazistas.

O cinema expressionista, como bem se sabe, é um sinistro gênero do cinema silencioso que invoca o imaginário do romantismo alemão (bruxas, demônios, vampiros, pessoas degeneradas, loucura, etc.) com tintas mais desesperadas a carregadas. Ficaram famosos diretores de fotografia como Karl Freund e Carl Hoffmann, que encontravam soluções técnicas fantásticas para os cenários sofisticados, de luz altamente contrastada, que iluminava também a requintada e apavorante direção de arte. O trabalho de diretores “modestos” como Murnau, Fritz Lang e Paul Leni também ajudou o gênero a se tornar um dos mais influentes do cinema silencioso (oi Tim Burton?).

A série Dr. Mabuse, de Fritz Lang, mostrava um magnata do crime que se utilizava de estranhas tecnologias para transmitir seu império de terror mesmerizante. O próprio Drácula em Nosferatutem também poderes hipnóticos parasitários, estabelecendo ligações perigosas. Caligari era um hipnólogo profissional, de tendências tirânicas e assassinas. Em Metropolis, a forte quebra com um intenso processo de alienação do trabalho num futuro distópico, capitaneada pela personagem de Brigitte Helm, encontra seu maior desafio quando ela tem de enfrentar um autômato de si mesma (o robô), em processos que também envolvem este tipo de manipulação das massas. Os Nibelungos, suposto filme favorito de Hitler, entoava (brilhantemente, diga-se), mitos da “raça ariana”. 



Caligari, Mabuse, Nosferatu: o tirano que controla por meio da tecnologia/hipnose

Hitler também foi um exímio usuário dos meios de comunicação e da propaganda para sedimentar suas ideias na bovina e desesperada população (oi Goebbels). Kracauer jogou a culpa nos meios, ao mesmo tempo em que falava sobre um recrudescimento da tentação xenófoba e autoritária que a Alemanha já havia visto na primeira guerra e no séc. XIX. Era o início da teoria da comunicação, e percebia-se claramente que os meios detinham um certo efeito (não-previsível) sobre as massas.

O filme "O Triunfo da Vontade", de Leni Riefenstahl, um dos marcos da propaganda nazista

Essa ideia de um poder despótico que se vale de tecnologias de comunicação, doutrinação e lobotomização das massas virou um precedente muito utilizado na cultura pop. De O Mágico de Oz até coisas rasteiras como a série de alienígenas V, a noção clássica (e obsoleta) de Lasswell de que os meios que transmitem de um emissor para vários receptores funciona como uma seringa hipodérmica (que distribui o conteúdo de maneira homogênea para as “cabecinhas” que representam a população) encontrou ressonância em todo tipo de manifestação. 

Uma delas acabou aportando no 15º álbum do mais famoso grumete dos quadrinhos belgas, ainda em 1961. Se você não sabe quem é Spirou, talvez seja a hora de voltar pras aulas de história dos quadrinhos


2: Z de Zorglub   

Z de Zorglub acaba de ser lançado no Brasil pela editora SESI-SP, acompanhando um trabalho fundamental de resgate deste que é um dos personagens mais importantes das BDs (ou quadrinho franco-belga). A editora tem lançado álbuns tanto da fase clássica do personagem (principalmente produzida pelo gênio André Franquin) quanto ótimas releituras modernas de Spirou (e seus insubstituíveis coadjuvantes, como Fantasio, Marsupilami e o Professor Champignac). A linhagem das produções em cima deste personagem é muito longa. Ela começa ainda em 1938, quando sai o primeiro número do Journal de Spirou, ocasião em que o grumete estreia no lápis do pioneiro Rob-Vel.

Spirou pode lembrar Tintim à primeira vista, pois são dois jovens “mocinhos” clássicos e bem-intencionados em aventuras pelo mundo. As diferenças, porém, são mais interessantes. Spirou está dentro do estilo groz-nez, que elevou Asterix aos píncaros da glória em termos de BD, e todos os grandes autores que o escreveram (Rob-Vel, Jijé, Franquin, Tome, Émile Bravo, etc.) colocaram neste personagem, e especialmente no excêntrico fotógrafo Fantasio (seu “BFF”), um pouco mais de pimenta, um pouco mais de absurdez do que podemos ver nas criações de Hergé. Spirou se encontra, na longa trajetória de seus álbuns, com gorilas, dinossauros, piratas, cogumelos alucinógenos, coisas diversas e malucas na medida exata. 

Champignac "tirando" Zorglub
Este álbum Z de Zorglub não é diferente. E o fator “Kracauer” apenas o torna mais interessante como produto de sua época, ao mesmo tempo em que elabora uma paródia poderosa das origens da tirana e da vilania dos vilões. O mote é extremamente simples: Zorglub é um vilão megalomaníaco, no estilo de desenhos como Megamente, Os Incríveis e Meu Malvado Favorito. Ele quer controle total do mundo e os heróis (Spirou e Fantasio) se metem em seu caminho. Como nestes filmes, esse vilão possui uma contrapartida humana. Desde o início da história, Zorglub é retratado (vejam bem, estamos falando de 1961, quando “desconstrução” não caía nem na boca do Derrida) como um almofadinha elitista e cafona, com ego ridiculamente inflado e ostentando clichês de “gênio do mal” (óbvio, ele fala de si mesmo na terceira pessoa). Porém isso seria apenas uma máscara para um sujeito pequeno e inseguro. 

Este álbum foi escrito por Franquin e Greg, mas ilustrado por Jidéhem (que claramente busca unidade no estilo do mestre criador do Gaston Lagaffe). O detalhismo groz-nez para coisas como roupas, móveis, carros e armas é de chorar. Poucas coisas superam o design de uma BD dos anos 60. E o mesmo ocorre com o visu de Zorglub: barbinha à Rubens Ewald Filho, calvície e sobrancelhas grossas, alinhado num terno justo e uma capa estofada com pelos de animais. Um perfeito e patético tirano.


Ao contrário da ideia de Kracauer e dos filmes do expressionismo, que levavam muito a sério (talvez com certa razão) o controle que a tecnologia possibilitava a estes tiranos inocularem comandos de controle na população, Franquin entende estas possibilidades em chave de paródia. Zorglub domina todo tipo de tecnologia e possui uma espécie de raio de controle à distância, que transforma as pessoas em escravos sem mente, os chamados “zorglomens”. Eles devem depois passar por uma lavagem cerebral estilo “Laranja Mecânica”. 

Fábrica de "zorglomens"
A tecnologia é um elemento essencial e predominante em Z de Zorglub. Ela está alinhada ao estilo da HQ, que prima pela excelência no desenho de basicamente qualquer coisa que seja ilustrada ali: todos os veículos do vilão, assim como roupas, carros, cores e o arrojo dos quadros parecem saídos diretamente das portas da Bauhaus. Este formalismo está aliado à ideia de técnica nessa história, que contrapõe a visão maníaca e desumanizada de Zorglub (ele sim escravo da tecnologia) com a versão mais “naturalista” de ciência do seu rival Champignac, que se utiliza de elementos orgânicos (cogumelos – hmm...) para constituir sua produção. Ao mesmo tempo, o aspecto estéril meio “Disney” (leiam o que Baudrillard tem a dizer sobre este parque em Simulacros e Simulação) da “Zorglândia” (territórios dominados por Zorglub) entra em conflito com a própria Paris (e interior da França) tão lindamente ilustrados nas páginas da HQ. 

A tecnologia de comunicação e os déspotas
Zorglub é claramente um tecnocrata. Tanto que elabora sua própria maneira de falar, a “zorglíngua”. De certa maneira, Franquin já trabalha aqui um discurso de ridicularização deste arquétipo proposto por Kracauer ao colocar, no final, Zorglub como uma espécie de criança infeliz que não aguenta suportar o sucesso de Champignac. O vilão revela que toda a sua megalomaníaca ambição se dá devido a motivos meramente mesquinhos: conquistar o mundo era um pagamento por ter sido vítima de bullying. Nada que Chaplin já não tivesse previsto em O Grande Ditador (1940), mas adicionado do gênio e das sacadas amalucadas de um dos gigantes da HQ francesa. 

Hoje, como sabemos, a comunicação não é unilateral e não existe “seringa hipodérmica” para domar o acesso selvagem e a distribuição caótica de informação em mil vias transversais possíveis de interação. Ainda não sabemos se o “tirano” do mundo é a humanidade ou a perversidade maquínica desta complexa rede de sistemas que ignora o valor do indivíduo. Zorglub e Kracauer são passado. Os processos comunicacionais estão sempre dois passos à nossa frente e mal podemos pensar modelos de previsibilidade em relação a eles. Ainda bem que ainda resta o trabalho de artistas como Franquin e Jidéhem para nos conseguir fazer rir disso tudo.

Billy Soco – Um tributo à infância

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por Pedro Brandt

Tendo praticamente a mesma idade de Gabriel Góes, vi, vivi e consumi – intensamente – muitas das mesmas paixões dele. Não foram poucas as vezes, por exemplo, que conversamos sobre bonecos – action figures, se você preferir. Até hoje, quando nos encontramos, ele me cobra uma visita ao meu acervo de figuras de ação – que, nos últimos anos, vem sendo, pouco a pouco, misteriosamente dilapidado. Estariam os seres de plástico fugindo da caixa?

Acredito que o melhor período para os bonecos de ação durou a década de oitenta até meados da de noventa. Depois disso, os bonecos – os de brincar, não os de enfeitar – nunca mais foram tão legais. Estaria eu deixando a nostalgia (sempre ela!) pesar nessa afirmação? Talvez. Mas quem foi criança na época se lembra: He-Man, Comandos em Ação, Thundercats, Super Powers, Rambo, Tartarugas Ninja... O design dos bonecos, a qualidade do material usado, a aplicação de cores e o acabamento, as possibilidades de articulações, os assessórios... E os desenhos animados desses personagens eram hit na televisão, as coleções de brinquedos eram publicizadas nos intervalos comerciais, nas páginas dos gibis, em álbuns de figurinhas e outros incontáveis produtos. Estavam nas vitrines da Mesbla, das Americanas, da Bibabô... 

Enfim, esse universo estava por todo lado e fazia a cabeça da molecada numa época ingênua e feliz. Deixou boas recordações para mim. E, tenha certeza, deixou boas recordações para o Gabriel – como atesta Soco, seu mais novo trabalho.

Publicado pela editora Beleléu, Soco pode ser encarado como um tributo à infância relido sob uma ótica (acidentalmente ou não) pós-moderna. O personagem-título, Billy Soco, é um super-herói genérico – intrépido, superforte e insípido – desses que surgem durante uma aula entediante nas últimas folhas de um caderno do primeiro grau. E, para este Soco, isso basta. Góes, certamente, não quer reinventar o gênero super-herói. Não quer nem mesmo contar uma boa história do tipo.


Soco sugere um trabalho quase terapêutico, de extrair inspiração, sem pudores ou maiores questionamentos, das mais profundas ranhuras entranhadas na memória, das cicatrizes de felicidade esquecidas ali (nem sempre facilmente acessáveis passados os anos). Por que, na infância, esses bonecos – e seus desenhos animados, revistas em quadrinhos, anúncios de produtos, artes de embalagens – nos fascinam tanto? Soco não quer explicar nada disso. Quer, penso eu, ser apenas um reflexo de memórias e sensações puras.

Soco é um quadrinho de um esteta, para ser consumido com os olhos, tal qual a criança que devora, pupilas brilhando, as imagens vindas da televisão e o mostruário da loja de brinquedos. É um quadrinho que você faria quando criança, desavergonhadamente, feito quase aos 40: heróis e vilões trocando porrada, monstros gigantes, homens da caverna, viagens no tempo, entre dimensões, tudo um monte de bobagem. Mas um deleite visual! É ruim e bom ao mesmo tempo. Ou melhor, é (apenas) bom mesmo! Afinal, Góes, ele mesmo, virou um monstrão do desenho. 


Metade das páginas de Soco é em preto e branco e a outra metade em diferentes tons de vermelho e rosa. A ilustrações se dividem em dois tipos, as intencionalmente toscas e as intencionalmente elaboradas. As toscas, vale ressaltar, são apenas pseudo-toscas, rabiscadas e selvagens seriam definições mais apropriadas. Macaco velho, Góes não consegue mais ser naïf-tosco. 

As refinadas são a síntese do Góes-ismo: têm algo de Kirby, um tanto de indie comics (e aqui cabe um monte de coisa), e outro tanto de design contemporâneo, que bebe da arte urbana e da publicidade das últimas décadas. E é essa teia de informações que faz de Soco e, por conseguinte, do trabalho de Gabriel Góes, tão atraente. 


Ele acena, sem saudosismo ou cinismo, para aquelas memórias adormecidas, nunca esquecidas. É a coleção de bonecos guardada no armário da casa dos pais. A cicatriz no joelho, resultado do tombo de bike. O que fomos e o que gostaríamos de ter sido. O quadrinho imaginado e nunca feito na época da escola. O Billy Soco interno de cada um.

Soco
De Gabriel Góes. 64 páginas. Editora Beleléu. Preço: R$ 35 (à venda aqui)

Metendo a mão na lixeira: bons gibis de super-herói em pleno século 21

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Supers...
Gibi de super-herói é uma desgraça. Queima o filme de todo mundo. Queima o filme de quem faz porque é uma indústria atolada em fórmulas. Queima o filme de quem lê porque trata de um universo (absolutamente púbere e masculino) maniqueísta, primário e ridículo, onde 95% dos personagens não sabe a ordem das roupas a serem vestidas. Um universo de mentirinha. Coisa de criança – por mais que tentemos provar o contrário. Por fim, queima o filme das próprias histórias em quadrinhos enquanto linguagem elaborada e válida (em suma, enquanto veículo de criação artística). Gibi de super-herói é uma desgraça... mas é legal demais!

Gibi de super-herói é legal demais porque é criatividade no talo. A vida é mais difícil quando você tem que enfrentar o status quo, posições pré-concebidas e pré-estabelecidas. Nada é mais pré-concebido e pré-estabelecido que um gibi de super-herói – mesmo quando é pra lá de radical. Poucas coisas no mundo podem ser mais conservadoras. Mas alguns poucos criadores dão um jeito – não sei como – de enfiar um megaton de inventividade bizarra nessa camisa-de-força.

É uma pena sem tamanho percebermos que as últimas décadas assistiram a indústria dos comics abrir mão da essência deste gênero. Trocando em miúdos, vieram com o papo furado de fazer os super-heróis “mais adultos e realistas”. Se é para ser adulto e realista, pra que super-herói? O resultado são os gibis horrorosos, guiados por estratégias de marketing bisonhas, sempre colocando a tal indústria à beira da falência. Tem gente que engole a isca. Não o leitor Raio Laser.

Tapamos o nariz e mergulhamos no esgoto quadrinístico para trazer à tona algumas das HQs de marombados usando collant que ainda valem a pena em pleno século XXI. Não tenha dúvida: são exceções que confirmam a regra. É um trabalho sujo. Mas alguém tem que fazê-lo. (MJR)

por Márcio Jr., Lima Neto, Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes


Gavião indie

Gavião Arqueiro – Minha Vida Como Uma Arma(Matt Fraction, David Aja, Javier Punido – Marvel/Panini, 2015)

Talvez este quadrinho aqui seja uma trapaça. Esta coluna é para falar de bons gibis de super-heróis “contemporâneos” que tenham alguma conexão com a tradição neste gênero. Vejam bem: esta série foi lançada em 2012, na esteira do sucesso do filme dos Vingadores, mas o resultado foi toda uma desarticulação da linguagem e temas mais mainstream ligados aos super-heróis. O time dos pesos-pesados Matt Fraction e David Aja resolveu apostar em narrativas extremamente casuais (por exemplo salvar um cachorro) e um arrojo hiperdetalhista nas empaginações (estilo Miller e Mazzucchelli, chegando até a uma influência de Chris Ware) para tornar as histórias um tipo totalmente inovador de imersão em quadrinhos. Isso parece um quadrinho “tradicional e divertido” de super-herói? Claro que não, mas, diante da escassez de qualidade nessa terra de ninguém estéril e apodrecida, a posposta de Fraction e Aja apareceu com o frescor de um Bordeaux Saint-Estèphe da lendária safra de 2000. Ganhou Eisner e o escambau.

A coisa é muito simples: Fraction transforma Clint Barton, o Gavião, num cara comum, ressaltando o fato de que ele faz parte dos Vingadores, mas não tem nenhum super poder. De certa maneira, a natureza totalmente mundana de Barton torna sua índole também meio mundana. Ele vira tipo um personagem de sitcom. Come churrasco, se arrebenta, trepa. Os diálogos têm lá sua porção irritante: já repararam que os americanos entre 25-35 anos falam sempre 100% em chave de ironia? Basta pensar tudo ao contrário para entender o que querem dizer de verdade. Esta série do Gavião Arqueiro tem um pouco esta vibe. Diálogos rasteiros e “bem sacados” que na verdade são signo desta babaquice contemporânea.


Sim, Gavião Arqueiro faz parte deste descomunal esforço de pelo menos uns 20 anos pra cá em deixar os super-heróis “próximos da realidade”, o que os afastou de qualquer encanto que tivessem e até da sua própria razão de existir. Mais do que este apelo até fisicamente mais “real” – a série começa com Clint hospitalizado porque caiu quando saltava de um prédio para o outro, como super-heróis, de maneira inverossímil, geralmente fazem –, o que torna esta série interessante é mesmo a qualidade plástica de arte de Aja, somada aos devaneios narrativos propostos por Fraction.

É verdade que li apenas o primeiro encadernado da Panini (Minha vida como uma arma) A editora já lançou mais um, Pequenos acertos, que reúne as edições 6 a 11 da publicação gringa, e outro somente com a Gaviã Arqueira, sidekick mais recente do herói, em voo (sic) solo (Gaviã arqueira: vingadora da costa oeste). A série americana vai até o número 22 e encerrou em 2015.


Portanto, mas do que uma HQ particularmente interessante por seus temas e tratamentos no roteiro, Minha vida como uma armaé uma bela peça de design em quadrinhos. Especialmente, é claro, nas três primeiras histórias, ilustradas por Aja (as outras duas têm o lápis já não tão sofisticado de Javier Punido), que compra totalmente a pala de Fraction. Os requadros aqui alternam funções estéticas (microrrequadros; megarrequadros; metarrequeadros) e decorativas, como se organizar uma HQ fosse posicionar um jarro e um abajour, combinar com telas de pintores, fazer feng shui, etc. Aja ainda trabalha com paletas de cores em variações próximas (roxo, bege, pastel), criando temperaturas e aclimatações sensacionais para as histórias. No final das contas, este é um trabalho de arte bem pensado, bem conceituado, eximiamente bem executado, que nos coloca a par dos movimentos dos heróis, suas dores, sua humanidade latente. Não é supers “clássico”, é claro, mas, a este altura esquizofrenizante da pós-modernidade, quem realmente se importa? (CIM)

Velho Wolvie: honestidade e porradaria

Wolverine: O Velho Logan (Mark Millar e Steve McNiven - Marvel/Salvat, 2014)

Mark Millar é, possivelmente, o melhor roteirista de sua geração. Não que possua a genialidade de Moore, Miller, Gaiman e quetais, mas com certeza está entre a nata do que o século XXI nos ofereceu até o momento – em termos de mainstream comic books, claro. Millar possui estilo, storytelling fluido e senso de humor. Não é pouco, ainda mais se comparado ao grosso da produção super-heroística contemporânea. Nas gigantes Marvel e DC, o nome do escocês sempre foi garantia de quadrinho decente. E quando está envolvido em projetos autorais (seu egocêntrico Millarworld), a coisa melhora. Wolverine: O Velho Logan– a essa altura já alçado à categoria de cânone do mutante canadense, pautando inclusive um blockbuster cinematográfico – é uma bela amostra de seu trabalho.

A atual crise dos quadrinhos de super-herói é mais evidente que o golpe político em curso no Brasil. Algumas de suas raízes mais profundas podem ser encontradas nos anos 1990, quando estratégias de marketing substituíram a criatividade nos gibis norte-americanos. Especulação desenfreada, autores inflacionados e público envelhecido e acrítico foram a tônica do período, cristalizada no surgimento da Image Comics. Não foram tempos bonitos.

Capas metalizadas, cores (a)berrantes, splashpages em cima de splashpages – turbinadas por arte-final matreira com infinitas hachuras-engana-nerd – anfetaminaram o mercado, numa paródia bizarra do sistema das artes. No lugar de tramas bem escritas, fiapos de roteiro e violência explícita vendida como conteúdo “adulto”. A bolha, logicamente, explodiu. E seus efeitos ainda podem ser sentidos hoje em dia, em todo gibi picareta pra leitor mocorongo colecionar. A contradição em O Velho Logané justamente parecer um gibi da Image. Só que bom.

Futuro. Os vilões venceram. Os Estados Unidos estão destruídos e loteados. O Rei do Crime manda num pedaço, Dr. Destino em outro e por aí vai. Há 50 anos Wolverine não coloca as garrinhas de fora. Vive como fazendeiro com a esposa e dois filhos numa área dominada pelo Hulk e seus descendentes canibais. Está devendo o aluguel e isso é inadmissível para a prole esverdeada. Encara então atravessar a América como motorista de um Gavião Arqueiro cego, no intuito de entregar uma encomenda secreta do outro lado do país, buscando manter intacto seu pacto de não-violência – e garantir os trocados que manterão suas terras e sua família.

Este é o plot de O Velho Logan. Simples, mas honesto. O que interessa aqui é a maneira eficiente e perspicaz com que Millar desenvolve a narrativa. Mais do que em tramas e subtramas, o roteirista investe nos personagens, na ambientação pós-apocalíptica à la Mad Max, na pegada road movie, no humor negro e em violência. Muita violência.


Se nos gibis estricnados da Image a violência tinha fim em si mesma, tentando forjar um recheio acima do escopo infanto-juvenil, em Logan o que temos é uma violência estilizada, tal e qual um filme de Tarantino ou Sam Peckimpah. Para ser bem-sucedido na empreitada, Millar contou com o melhor dos escudeiros, o desenhista canadense Steve McNiven.

McNiven é aparentemente – e só aparentemente – um descendente gráfico da Image. Seu desenho possui arte-final detalhadíssima, representando cada pelo do braço, fio de cabelo do cocuruto e costura das calças – bem ao gosto realista dos dias atuais. Todavia, faz isso com elegância europeia e sem jamais abdicar do ritmo narrativo e da linguagem quadrinística propriamente dita. Os desenhos são cabulosos, mas estão, antes de mais nada, a serviço da ação. A inventividade com que representa a violência, a genuinidade das expressões dos personagens, bem como a clareza com que oferece cada cena, colocam o desenhista num patamar muito superior à maioria de seus pares. Mesmo a cor, deliberadamente photshopada, joga a favor da imagem, sem jamais competir com o traço a nanquim. Coisa rara.

Com extensa e bem-sucedida lista de serviços prestados à Marvel, Mark Millar usa como poucos o rico panteão da editora. A justificativa apresentada para Wolverine ter se retirado da ativa por meio século é surpreendente. Assim como também o é o modo com que o baixinho faz seu acerto de contas com o Hulk – mostrando ser possível apresentar novas e interessantes perspectivas para um dos antagonismos mais históricos e legais dos comics. O final da HQ traz ainda uma outra referência, desta vez fora da seara dos supers: o Lobo Solitário de Kazuo Koike e Goseki Kojima. Cool.


Wolverine: O Velho Logané claramente uma HQ ambientada fora da “cronologia oficial” do Universo Marvel. Aquele papo de realidade alternativa, mundo paralelo ou coisa do tipo. Em uma indústria que produz reboots semestrais de seus personagens e que não tem o menor respeito pela tradição, só mesmo um imbecil para acreditar em “cronologia oficial”. Portanto, não tenha dúvidas: o Wolverine de Millar e McNiven é uma das versões definitivas do herói. E das mais divertidas. (MJR)

Overdose legionária

Legion of Three Worlds (Geoff Johns e George Pérez – DC Comics, 2008)

Não gosto muito do Super-Homem. Detesto sua versão adolescente, o Superboy. Desprezo a Legião dos Super-Heróis. Por quê? Questão de lógica. Se nunca curti muito o azulão, tinha ainda menos razões para apreciar sua versão aborrecente. E a Legião, o que tem a ver com isso? Simples. O que é a Legião senão um bando de Superboy wannabes? Sério. Olha para os personagens. Mon-el, Ultra-Rapaz e por aí vai. São todos cópias assumidas do Superboy. Outra coisa que incomoda são os poderes dos integrantes da equipe. Ninguém conseguiu pensar em nada melhor que encolher, ficar invisível, emitir raios elétricos e pegar fogo? Isso enche o saco. Principalmente se pensarmos nos nomes dos heróis, decorrência direta desses poderes sem sal. Moça-Relâmpago, Solar, Rapaz Polar, Night Girl e etc. Chaaato... E isso que nem mencionei o cidadão que foi batizado como Matter-Eater Lad – Digestor, no Brasil. Triste, mas verdadeiro. Bem, se os heróis já são assim, imagina os vilões. Os fundadores da Legião são Relâmpago, Cósmico e Satúrnia. Adivinha quem são seus arqui-inimigos? Lorde Relâmpago, Rei Cósmico e Rainha Saturno. Santa criatividade, Batman. Ah, já ia esquecendo. Também tem um bandido chamado Earth-man. Get the point?

Mas afinal, do que se trata o tal Legião de Três Mundos? É uma história que tem como protagonistas o Superboy e não uma, mas três versões da Legião do Super-heróis: aquela surgida depois de Crise Infinita, a de 1994 e a de 2004. Mas por que cargas d'água eu – um Legion hater – teria escolhido este gibi para a coluna “Gibis de super-heróis que valem a pena”? Será que estou ficando doido? Not so fast, Kid Flash. Adoro LTM porque, ao longo de suas 5 edições, o gibi mostra o Superboy original matando Legionários de todas as formas possíveis e imagináveis. Simples assim.


Quer dizer que o Superboy agora é vilão? Sim. Mas quando foi que aquele garoto que ia mudar o mundo começou a frequentar as festas da Legião dos Super-Vilões?

Resumo rápido. O Superboy, na sequência dos eventos de Crise nas Infinitas Terras, ficou exilado numa dimensão paralela com outros personagens, dentre eles o Super-Homem da Terra 2. Aos poucos, ele começou a cultivar um ressentimento contra a Terra do Universo DC pós-Crise, já que sua preciosa realidade original tinha sido erradicada. Amargurado com seu destino, Superboy fica putaço e resolve sair do limbo. Sua missão? Ferrar com a vida dos outros, afinal sua vida já estava ferrada. Assim surgiu o novo enfant terrible das HQs, agora rebatizado de Superboy Primordial. Após uma série de traquinagens, como vimos durante sua participação em Crise Infinita e na guerra dos Lanternas Verdes, o moleque superpoderoso vai parar no século 31, louco para destruir todo Legionário que encontra pelo caminho. Desejo-lhe sorte em sua jornada, Superboy. Tamo junto, parceiro.

Legião de Três Mundosfoi escrita por Geoff Johns e desenhada pelo monstro sagrado George Pérez. Este último continua mandando muito bem, especialmente no que faz melhor: porradarias cósmicas envolvendo trocentos heróis e vilões. E esse gibi é um prato cheio disso. Perez adora mostrar as diversas versões dos personagens. Quer ver as três Garotas Fantasma? Ok. Quer apreciar os diferentes trajes do Karate Kid? Vai fundo, amigo. E sim, Pérez vai desenhar todos os personagens que já se dignaram a usar o anel da Legião, principalmente aqueles mais obscuros. Falando em heróis de segunda linha, não posso esquecer a glamorosa participação do Lanterna Verde Sodam Yat, criado por Alan Moore. Procure saber mais sobre esse nome. É uma piada pronta do barbudo britânico.

Uma coisa bacana de Geoff Johns é o sentimento de pertencimento ao Universo DC que ele costuma imprimir em suas sagas. Não tem essa de cada supergrupo ficar isolado em seus microcosmos. Por isso, em LTM abundam referências tanto aos Lanternas Verdes quanto aos Titãs. E quem conhece o escritor já sacou qual é a dele. Surpresas mil, ressurgimento badass de personagens esquecidos, mortes e ressurreições. Ele faz isso muito bem, embora recorra a isso o tempo todo. São tantas idas e vindas que você já abre a página seguinte pensando: "Ok, qual a reviravolta que vou encontrar agora?". É divertido, mas repetitivo. E por falar em reaparições, já vou avisando logo: o horrendo Connor "Superboy Cospobre" Kent está de volta.

LTMé legal, porque é pura zoeira. Presta homenagem ao riquíssimo legado do Universo DC sem ser pedante. É um gibi que está a fim de entreter. Se você estiver interessado em reflexões e papo cabeça, fuja. O papo aqui é reto, mas não se leva a sério. Se gosta da Legião dos Super-Heróis, vai se emocionar. Senão é fã, vai se deleitar. Palavra de escoteiro. (MMA)


Legado dos besouros

Blue Beetle (John Rogers e Rafael Alburquerque, 2006-2009 – DC Comics)


Não é nada fácil definir qual a qualidade dos quadrinhos de super-heróis da DC comics. Se, por um lado, ela é dona dos personagens mais icônicos e longevos do gênero, por outro vemos que estes personagens também são os mais engessados por essa história. E aqui eu evoco a antiga diferença entre História e estória. Resumindo, personagens como Super-Homem, Batman e Mulher Maravilha são vítimas de suas posições como carros-chefe na editora, suas histórias são deixadas de lado e suas estórias acabam sofrendo por falta de conflito e mudança. Mas o bom decenauta sabe muito bem que as boas histórias da DC não estão nos seus ícones, mas na extensa lista de personagens secundários que, diferente da trindade acima citada, dão liberdade para seus autores desenvolverem suas estórias como bem quiserem. Como resultado, temos fases aclamadas de personagens como o Flash, Starman, Sociedade da Justiça, Legião dos Super-Heróis e outros tantos que bebem dos quase 80 anos de história da editora e que construíram uma tessitura cronológica concisa e orgânica que existe desde a Segunda Guerra Mundial e que pode ser definida por uma palavra que já teve mais sentido dentro da DC: legado.

Um dos últimos títulos a trabalhar esta noção mais concisa de legado da DC comics, mantendo viva uma tradição que foi levantada por vários autores, mas que encontrou nas mãos de Roy Thomas seu maior expoente e defensor, foi o título Blue Beetle (Besouro Azul), do escritor John Rogers e do artista brasileiro Rafael Alburquerque, publicado entre Maio de 2006 e Fevereiro de 2009. Personagens secundários como esse, mesmo sendo desenhados por um dos artistas brasileiros mais renomados na atualidade, são raramente publicados no Brasil. Por aqui, a fase do estudante de origem latina, Jamie Reyes, como hospedeiro do escaravelho alienígena que lhe dá os poderes de Besouro Azul, só deu o ar das graças em suas histórias ao lado dos Titãs e nos inúmeros crossovers e crises que terminaram por soterrar o mercado americano. Mas esta fase guarda verdadeiras pepitas para o leitor que aprecia a História do universo DC, além de corrigir um erro da editora ao integrar a história dos personagens da Charlton Comics - a casa original do Besouro Azul e também dos personagens Questão, Pacificador, Trovejante entre outros - à cronologia mais atual da editora.

A série foi toda  republicada nos EUA em edições encadernadas, mas é em dois volumes específicos, Reach For The Stars e Endgame, que encontramos o ponto alto da série. Jamie Reyes é o típico personagem que foi desenvolvido para trazer representatividade latina para o rol de títulos da DC, com direito até a uma edição totalmente escrita em espanhol. Porém, misturado a este esforço de representação está o tipo de ação super-heróica que carrega em seu DNA um tanto de Homem-Aranha misturado ao sci-fi de um Lanterna Verde dos anos 60; e uma boa dose de nostalgia e legado. Tudo isso embalado na belíssima arte de Albuquerque ainda sem o peso dark de sua passagem pela Vertigo.

Nas duas encadernadas, Jamie confronta a origem de seu escaravelho – um artefato de uma raça de conquistadores que é espalhado pelo universo para iniciar o processo dominação e que foi usado de forma dormente pelo primeiro Besouro Azul, Dan Garret, ainda em 1939. Ao se rebelar contra a função do aparelho, precisa usar os restos de tecnologia do finado Ted Kord (o segundo Besouro Azul, conhecido por sua participação na Liga da Justiça de Keith Giffen e J.M. De Matteis) para escapar de uma nave invasora e retomar seu escaravelho corrompido, que só responde aos comandos de Reyes e se torna inútil para a invasão. Participa ainda da estória, como um personagem-chave para o desenvolvimento de Reyes como herói, um velho e traumatizado Pacificador. Ao final do arco, temos uma aparição do Lanterna Verde Guy Gardner e da equipe original da “Liguinha” de Giffen e DeMatteis que é de trazer lágrimas aos mais saudosistas.

John Rogers é roteirista e produtor de TV (criador de séries como Leverage e Librarians, esta ainda no ar) e segue a tradição da DC em trazer autores de outras mídias para dar visões mais frescas para personagens sem uso e que se apoia fortemente na tradição da editora. Assim aconteceu com James Robinson, cuja influência de seu Starman é visível em Blue Beetle, e com o atual chefão da editora Geoff Johns (que também sabia trabalhar com a História dos personagens, mas que terminou por perder a mão). (LN)

Rapidinhas Raio Laser #07

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Dizem que o quadrinho brasileiro nunca viveu momento tão bom. Pode ser que sim, pelo menos no quesito variedade. Afinal, tem de tudo um pouco. E, pasmem, encontrar muitas opções de gibis nacionais virou lugar comum, graças à disseminação de “livrarias Shopping Center” e mega lojas virtuais. Mas essa maior proliferação dos quadrinhos made in Brazil não ocorreu da noite pro dia. Medalhões da HQ nacional tiveram de comer muito arroz com feijão nas chamadas publicações independentes para conseguir seu lugar ao sol. E se a variedade dá as cartas nos gibis publicados por editoras de pequeno, médio e até grande porte, como Cia das Letras, essa diversidade representa apenas uma gota no oceano na cena de publicações indie. Basta dar uma volta em qualquer feira de HQ que se preze para perceber que a galera está lançando gibi de tudo quanto é tipo. E os gibis e zines analisados nesta nova edição do Rapidinhas não são exceção. Espere encontrar por aqui uma gama de narrativas sobre paixões não correspondidas, underground musical e pancadaria urbana gratuita, entre outras drogas. Como vaticinou James Kochalka em seu The Horrible Truth About Comics, o negócio é se expressar, e os manos e as minas arregaçaram as mangas e colocaram o lápis para trabalhar. Mais que isso: deixaram-se arrebatar pela liberdade que o formato DIY permite. O resultado foi – e continuará sendo – visceral.

Esta seleção do material independente que recebemos/compramos é uma excelente oportunidade de conhecer um pouco dos monstros que habitam o inconsciente coletivo de quadrinistas profissionais e amadores que escolheram a nona arte dar seu recado. As razões pelas quais fizeram isso são variadas. Sede de fama, desejo de exorcizar demônios pessoais, falta do que fazer e etc. Não importa. O que vale é que esses caras tiveram coragem de dar a cara a tapa. Sorte nossa.

Gostaria de dizer que a escolha do material resenhado aqui segue critérios altamente rigorosos, mas estaria mentindo. A verdade é que a equipe do Raio Laser mete a mão na pilha de publicações recebidas e separa aquilo que parece mais apetitoso. Às vezes rolam algumas indigestões, mas faz parte. Ok, podem criticar nossos métodos, mas eles são democráticos. Nesta semana e na próxima (tivemos de dividir esta por dois!), vamos nos debruçar sobre gibis da Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Goiás, Fortaleza e Deus sabe onde. Tem coisa nova e coisa velha. Tem gibi gourmet e tem zine com página xerocada. Lemos todos com carinho. (MMA)

Caso queira aparecer por aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.
Brasília-DF
Brasil

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por Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes

Seres Urbanos: Antologia do Quadrinho Underground Cearense – Vários (SEBO, 2015, 100 p.): Essa aqui estávamos devendo há um tempo, mas valeu a espera. O Márcio Jr já havia dado um pitaco aqui. Para quem não sabe, “Seres Urbanos” é o nome de um coletivo de zineiros de Fortaleza dos anos 90. Foram oito anos de produções praticamente ininterruptas e esta antologia reúne material representativo de dezenas de zines, exposições, colunas em jornais e outras manifestações em que eles estiveram metidos. A publicação foi financiada pela Secretaria de Cultura do Governo do Ceará, que fez seu papel para preservar a atualidade desta incrível coleção sobre os hábitos, ansiedades, gostos (o zeitgeist, enfim) de uma cultura alternativa nos anos 90.

Esses sujeitos eram zineiros roots, sempre na correria para publicar um volume desproporcional de coisas que vendiam a preço de custo, distribuíam na entrada de shows, enviavam pelo correio, movimentavam a cena da cidade. A antologia ainda vem com um rico texto estilo “reportagem por entrevistas” nas páginas finais, direcionando influências e o momento histórico de cada autor e cada gênero abordado nos zines. O principal quadrinista a publicar era Weaver Lima, um cara ligado também à música alternativa de Fortaleza – bandas como Velouria e Second Come... alguém se lembra dessas porras? Até mesmo a nossa saudosa Low Dreamestá em grande estima nas páginas de Seres Urbanos - , com influência da Revista Animal, Love and Rockets, Angeli, etc. Além de ser um ilustrador carismático, Weaver era bom em escrever ótimas histórias de típicas festinhas e showzinhos de rock dos 90’s Brasil afora, com a tradicional caracterização blasé e decadentista da juventude underground da época (quando era chique fazer bandas alternativas que cantavam em inglês, tipo Pin Ups). Virou um prestigiado artista plástico.

Fora Weaver, a antologia apresenta um sortidão de gêneros zinescos que marcaram época (arte postal, colagens, charges, cartazes) e também da produção dos outros caras. Lupin, por exemplo, faz um estilo “hebdomadaire francês”, inserindo citações de poetas e filósofos em quadrinhos de deboche. O estilo realista, com diálogos e situações das ruas de Fortaleza, de Mychel TC, é uma das melhores contribuições. Leitura urbana brazuca infalível, pra Quintanilha nenhum botar defeito. Em geral esta produção não fica atrás do que era apresentado por outros estados, e dá amostra do que foi o trampo underground brasileiro entre os anos 80 e 90, especialmente nas febris manufaturas desses zines, que eram a internet da época, e que não deixam a desejar em relação ao que se faz hoje na web, tanto em qualidade quanto em quantidade. Uma parte enorme deste material se perdeu para sempre.

Seres Urbanos tem sabor udi-grudi, traz à tona os esnobes anos 90, discute com propriedade as agruras e angústias desta época, que não são tão diferentes das de hoje. Apesar do humor caústico, esses quadrinhos se pautavam na alienação da juventude, no vazio existencial, em preocupações como o caos urbano e o aquecimento global (na época, “efeito estufa”). Porém, não eram histéricos, os zines procuravam sentido em meio ao caos e não eram escorados em ativismo de fachada. O olhar desamparado e misterioso do personagem da capa coloca margem para a diferença entre uma cultura de “teenage angst” pré-internet e o zine-de-luxo-pra-designer que se faz hoje. Aproveito então a oportunidade para lembrar que em Brasília também temos nossa versão do “zine responsa com a cabeça enfiada na baixaria e rock and roll”: Tupanzine, o fanzine mais antigo em atividade no DF. (CIM)


O Ateneu, Crônica de SaudadesMazô (Independente, 2014, 23 p.): Em tom altamente pessoal, Mazô narra parte de suas memórias afetivas escolares, passadas no tradicionalíssimo Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Vencedor do prêmio de HQ independente Dente de ouro de 2016, o gibi convida o leitor a viajar pelo Ateneu particular de Mazô. Contendo colagens de fotos, bilhetes e outros objetos pessoais de sua vida escolar, a autora constrói espécie de diário público de sua vida privada. Mas não espere encontrar fofocas quentes ou detalhes sórdidos. Mazô faz uso de uma linguagem – narrativa e visual – que tanto mostra quanto esconde. Os detalhes estão lá, e apenas poucos enturmados irão compreender o real significado das imagens. Não que seja o caso de gibi feito apenas para aqueles da panelinha, mas sim para indicar que algumas lembranças só dizem respeito àqueles que as viveram.

O traço de Mazô é bastante experimental e ela brinca bastante com esboços. São ilustrações aparentemente simples, mas que se mostram rebuscadas, especialmente quando se analisa a riqueza das expressões faciais dos personagens. Sabe aquele esquema do “menos é mais”? É bem por aí. Afinal, artistas que se propõem a serem econômicos no desenho têm de se ater ao que realmente importa. Mantendo essa pegada parcimoniosa, Mazô capricha na composição de cores, que é feita primordialmente de bege escuro, preto e branco. Aliás, as imagens brancas são todas pintadas com um efeito que lembra giz de quadro negro, o que foi uma grande sacada.

Ao decidir revelar um pouco de seu passado estudantil, Mazô mostra que as experiências dos jovens são universais, por mais particulares que possam parecer. (MMA)

5/5 Working Class Heroes– Dalts, Go Carvalho e Magenta King (Bimbo Groovy, 2013, 70 p.): Lembra de Changeman, Flashman e assemelhados? Lembra aquele esquema de 5 jovens com uniformes parecidos, que se juntam para sentar o braço em monstros mais bizarros que perigosos? Então, esta é a pegada aqui. Só que, desta vez, os criadores resolveram levar a coisa a sério. Ou quase. Embora a intenção seja mostrar como seria a realidade de um grupo desse tipo no mundo real, os personagens principais usam uniformes que remetem a bichinhos fofinhos, como que para demonstrar o ridículo inerente a esse universo. No gibi, conhecemos um pouco da superequipe 5/5, grupo de heróis-celebridade que jurou proteger o mundo em troca de fama e contratos milionários. São três histórias que abordam diferentes aspectos da equipe.

Na primeira, “O Novato”, de Dalts, somos apresentados a um cidadão que consegue obter o traje de um dos 5/5. É uma história surpreendente, tanto pela qualidade do roteiro quanto pela arte. Dalts revela um talento impressionante, pelo grande domínio do ritmo da narrativa e pela plasticidade e estilo quase sujos que privilegiam cenas de ação vertiginosas.  Dalts parece gritar: “Ei, mercado americano, olhe para mim, já estou pronto”. E é realmente uma pena que ele ainda não tenha tomado os comics de assalto, já que é um quadrinista de responsa. Na segunda – e mais fraca história do gibi – “The Man Machine”, de Go Carvalho, conhecemos os funcionários de apoio da 5/5, numa história metida a engraçadinha, mas que só consegue fazer passar raiva. Finalmente, em “Os 5 Novatos”, Magenta King chega chutando bundas num conto em que 5 aspirantes a integrantes do 5/5 participam de um reality show que testa suas habilidades no campo de batalha. Magenta, assim como Dalts, tem uma arte de cair o queixo, e usa retícula, sombreamento e hachuras numa combinação original e desconcertante. Se Dalts lembra Travis Charest em começo de carreira, Magenta emula a visceralidade de Tom Raney.


O melhor elogio que posso dar a 5/5 é dizer que Dalts e Magenta souberam utilizar o formato independente para despirocar geral. Sem amarras ou censura, esses caras deixaram seus demônios correrem pelados na montanha e o resultado foi duca. Mesmo explorando gênero aparentemente esgotado como o dos supergrupos japoneses, os dois mostraram que, quando se tem lenha para queimar, até a centelha decadente dos seriados de grupo pode voltar a fumegar. (MMA)

Mata-me, ó Deus– Marcos Guerra, Marcos Garcia e Carlos Alberto (K-ótica, 2015, 36 p.): a boa capa de Mata-me, ó Deus promete uma HQ de alta potência onírico-lisérgica.  A promessa, infelizmente, não se cumpre. Estão lá as quase obrigatórias referências a Alejandro Jodorowsky, mas sem a atmosfera violenta e insólita típica do mago chileno. O roteiro é simples e auto-explicativo, sobrando pouca margem de manobra para o leitor participar mais ativamente da construção da narrativa – algo típico do gênero em questão. Restaria então à arte de Marcos Garcia (veterano do fanzinato nacional, responsável pelo antológico Acunha, publicado nos anos 1980) e Carlos Alberto promover as epifanias metafísicas desejadas. Não é o que acontece. Apesar dos desenhos bonitos (salta aos olhos a influência do seminal Watson Portela), a estrutura gráfica está muito mais próxima de um comic book pré-Image do que das BDs europeias. Mata-me, ó Deus pode encontrar ressonância junto a públicos ligados ao consumo de plantas de poder. Todavia, para um leitor exclusivamente em busca de uma boa HQ, a magia não acontece. (E confesso ter ficado bastante impressionado com a depilação da personagem feminina, uma das poucas sobreviventes de um mundo devastado.) (MJR)



CeruleanCatharina Baltar (Independente, 2016, 80 p.): Fiquei “enamorado” desse quadrinho da Catharina Baltar (daqui de Brasília) nas duas últimas feiras Dente e resolvi tomar coragem e adquirir um volume da última vez. O que me atraiu: a excelente paleta de cores azul-lilás-turquesa (“cerulean”) pintada em aquarelas. Não importa muito que Ceruleanseja um quadrinho indie tolinho, misturado com mangá shoujo, sobre uma sereia que fica encantada com um lifestyle millenial. Um mundo geek de redes sociais, board games e mangás. Não me importa que, das 80 páginas do livro, apenas 40 comportem a história (sendo o resto, extras). Importa mesmo é que, apesar de ter um tom adolescente, Ceruleanconsegue discutir a identidade e a solidão do jovem pós-moderno com alguma propriedade. Isso por si só a transforma em uma boa HQ juvenil. A sereia do título, afinal de contas, decide adotar o excêntrico mundo dos otakus e ser para sempre uma forasteira, algo que reflete um pouco a realidade dos otakus reais. Aos poucos, a despeito da antipatia inicial, fui me entregando ao propósito e à mentalidade deste quadrinho: como qualquer mangá comercial, ele tem algo de inventivo e excitante, e ao mesmo tempo algo de descartável. Se você tem dúvidas quanto à história, no entanto, pode ficar apenas com a arte extremamente carismática, com um tratamento de cores raro no quadrinho brasileiro contemporâneo. Sem dúvida uma aquisição significativa para o cenário de quadrinhos da capital. (CIM)


Encruzilhada – Marcelo d’Salete (Barba Negra, 2011, 120 p.): Este Encruzilhada é meu primeiro contato com o trabalho do quadrinista d’Salete. Sim, anos atrasado, e por isso mesmo quis começar com um trabalho fundacional da sua obra, algo que definiu seu estilo e imaginário. Paulistano, o autor se vale das contradições brutais da grande metrópole para expor, assim mesmo metendo o dedo na ferida, a desigualdade social e racial em diversos tipos de interações tipicamente brasileiras. Mas se engana quem pensa que isso vem assim, despejado ou descuidado, como se fosse um mero panfleto. Primeiro, o discurso possui muitas nuances e sutilezas, e o quadrinista se vale de diversos tipos de transições entre os quadros para construir mais que simplesmente uma história, mas também ambientação, odor, temperatura, aspecto. Em segundo lugar, como ele bem evidencia tirando sarro de Cidade de Deus, a violência está (muito) presente em suas histórias, mas não é o foco de sua análise. Não se trata de cosmética aqui. Sua análise social atinge aspectos psicológicos, econômicos e afetivos.

Além disso, d’Salete é também um esteta. Encruzilhada são contos curtos que vislumbram situações de ostensivo constrangimento à população negra. Um menor infrator é espancado pela polícia. Uma vida é tirada às custas de um celular que roda de mão em mão. Um DVD pirata é roubado e um homem preso por engano. A violência, porém, está nos detalhes perniciosos das relações. Neste ambiente, seu assassino pode ser seu primo, e o motivo um objeto de consumo descartável. D’Salete examina estas situações com elegante esquadrinhamento das cenas. São comuns citações ao cinema e a baluartes do capitalismo. O teor do discurso aparece muito em marcações discretas, grafites, paisagens urbanas.

O volume de informações, inclusive, é grande e por vezes as narrativas ficam embaçadas, confusas. D’Salete fragmenta os corpos, pensa planos e páginas oblíquas, efetivamente erige as cenas pelo avesso da narrativa tradicional. Encruzilhada é obra de mestre, que demonstra profundo entendimento do ato de extrair sentido das histórias, deixando arte, pensamento e discurso todos em evidência. Pequeno clássico recente da nossa historiografia quadrinística, ao lado de nomes como Rafael Coutinho e Marcello Quintanilha, que primam por abordagens parecidas. Li a tempo, ainda bem! O quadrinho foi relançado pela Veneta em 2016. (CIM)    

Rapidíssimas (zines):    

Apnéia – Ina (Independente, 2017, 8 p.): Este é um lindo trabalho gráfico (delicado, poético, silencioso) que evidencia o potencial dos quadrinhos como pura sinestesia, como arte visual que mira os sentidos, que dissocia a narrativa de uma função meramente denotativa. Trata-se da quadrinização, em singular lápis azul, de um homem mergulhando com uma baleia. Leva-se um minuto para ler. Reverbera-se na cabeça por muito mais tempo. (CIM)

Compartilhe Comigo e Hey! Look Around! – Renata Rinaldi (Tinta de Raposa, 2016 e 2017, 10 p. e 12 p.) – Há algum tempo que devemos uma apreciação melhor do trabalho da brasiliense Renata Rinaldi, que vem pondo suas patas de raposa também em cenário nacional (Pagu Comics; concorreu ao HQMix, etc.). Estes dois zines são boa amostra do potencial do seu trabalho. As ilustrações, também em estilo shoujo, só melhoram: ela dosa bem influências de ocidente e oriente e, assim como a resenha de cima, faz narrativas mudas (que são puro quadrinhos). Compartilhe Comigo é muito bobinho, mas tem apelo para tweens e atrai pela bela capa laminada. Hey! Look Around!, por outro lado, já pode ser levada mais a sério. É uma linda (e bem escrita) fábula sobre desapego, amizade e espiritualidade. Isso tudo em dez páginas cheias de bons recursos em HQ, o que nos faz pensar que a Renata está preparando seu melhor trabalho. Chega logo! (CIM)









Rapidinhas Raio Laser #08

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A "Rapidinhas" (antiga "Quicky") é uma das seções mais queridas da Raio Laser. Como procedemos para fazer este aparentemente aleatório apanhado de publicações, zines, graphic novels e o que mais vier (nacionais) ser transformado numa fornada fresquinha de resenhas ao gosto (ou nem tanto) do freguês? Bem, a ideia é frequentar muitas feiras de publicações, treinar o olho para coisas interessantes e, principalmente, comprar este material. É muito importante frisar que, para se conhecer com intimidade a cena indie nacional, é preciso se tornar consumidor dela. Às vezes forçamos a barra (esse "Menina Infinito" de 2008 tá prestes a prescrever aqui, mas caiu no nosso colo!), mas faz parte da iconoclastia da Raio. Dito isso, seguem também os links para as outras sete Rapidinhas (para rememorar) (CIM):

Raio Laser's Comics' Quicky #01
Raio Laser's Comics' Quicky #02
Raio Laser's Comics' Quicky #03
Rapidinhas Raio Laser #04
Rapidinhas Raio Laser #05
Rapidinhas Raio Laser #06
Rapidinhas Raio Laser #07

E nosso endereço, caso você queira enviar seu material e aparecer aqui:

RAIO LASER

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por Marcos Maciel de Almeida, Ciro I. Marcondes e Pedro Brandt

Menina Infinito – Fábio Lyra (Desiderata, 2008, 117 p.): Bebendo forte na bica (eu disse bica) de Daniel Clowes, Fábio Lyra produziu uma HQ memorável, construindo um universo particular em que habitam exemplares autênticos da fauna das grandes cidades. Centrado nas histórias de Mônica (não confundir com a dentuça) e sua turma, o gibi mostra, de forma bastante afiada, o cotidiano de jovens que alçaram temas como liberdade e música a um patamar prioritário em suas vidas. É aquele tipo de gente que se permite viver sem arroz, feijão e grana do aluguel, desde que sobre algum para gastar com bandas, vinis e agitos roqueiros. E no dia a dia dessa galera não falta, é claro, paquera e pegação. Essa habilidade em retratar – de modo bastante natural – diversos aspectos da juventude certamente não escapou ao olhar atento dos editores da Maurício de Sousa Produções. Não foi à toa, portanto, que Fábio foi escolhido para fazer uma história com a turma do Rolo, na revista MSP50.

Menina Infinito tem 3 histórias e 120 páginas de bons personagens, diálogos redondos e “causos” bizarramente reais. Tem também...ah, deixa pra lá. Nem sei porque estou dando esse cartaz para o Fábio Lyra. Esse espaço do Rapidinhas é destinado a publicações independentes, indisponíveis nas prateleiras das grandes lojas e livrarias virtuais. E este não é definitivamente o caso aqui, já que Menina Infinito foi lançada pela Editora Desiderata, posteriormente comprada pela Ediouro. E, além do mais, Fábio Lyra não precisa da minha promoção, afinal já está pronto para dominar o mundo.  PS: uma parte deste quadrinho teve uma outra leitura aqui na Raio Laser.(MMA)



Billy Jackson – Cau Gomez e Victor Mascarenhas (RV Cultura e Arte, 2013, 56 p.): Capaz de refletir sobre a cultura do consumo cultural e do star system americano, além de criar engajamento emocional com seu personagem principal, este Billy Jackson é um achado. O trabalho de ilustração desta HQ de Salvador (saiu em 2013 e é algo que resgatei do encalhe aqui), nas mãos do veterano Cau Gomez (em giz), é por si só deslumbrante: expressões, olhos, movimentos e caracterizações são lúgubres, assombradas, talvez inspiradas ainda no videoclipe de “Thriller”. Com a ajuda de Cau Gomez, fica mais fácil de se deixar impressionar pela história, tragicômica, de um menino negro, pobre e abandonado pela vida que encontra na personificação em tempo integral de Michael Jackson um tipo exagerado e delirante de sublimação das sucessivas humilhações de sua existência. Auxiliando toda essa mistura de expressionismo com neorrealismo está uma história consistente elaborada pelo escritor Victor Mascarenhas.

Billy Jackson procura entender os processos dos párias e dos outsiders em um mundo conflitivo que exclui e odeia a diferença. Como aqui a realidade é a perifa de Salvador, o humor rapidamente pende para o horror e a HQ junta bem a ambição artística com o alarde social. Porém, como tudo relacionado à indústria cultural, ficamos sem poder concluir se Michael foi a salvação ou a danação do protagonista. Billy Jackson ecoa os efeitos colaterais do capitalismo global na periferia do mundo (tipo Neymar ser um herói na China), em toda a sua ambiguidade. É um gibi de leitura rápida, em formato grande, que privilegia os arroubos da arte. Talvez o tema merecesse uma graphic mais volumosa e um pouco menos caricatural, mas foi uma tacada certeira de qualquer forma. (CIM)


Terry & Loo – O que contam os astros – Eduardo Calazans (Incoerente Coletivo, 2017, 64 p.): Coletânea de tirinhas produzidas por Eduardo Calazans, integrante do Incoerente Coletivo, grupo de jovens autores do Distrito Federal. Terry é a Terra, nosso planeta, e Loo é seu satélite, a Lua. Nas conversas entre os corpos celestes – que ganham feições bastante simpáticas no traço eficiente de Calazans – orbitam temas como relacionamentos, questões existenciais, ecologia, carreira profissional e, claro, astronomia – com citações de cultura pop aqui e ali. A intenção, como deixa claro o roteirista/desenhista no editorial, é “contar histórias que tocassem mais pessoas de uma forma mais ampla, mas reflexiva. E, acima de tudo, que meu primo de 7 anos pudesse ler e se interessar”. Algumas tirinhas não destoariam do que se publica em um jornal diário. Outras estão mais para o rodapé de livros escolares de ciência. Ainda que, no geral, as gags sejam um tanto previsíveis – e, sabemos, a surpresa ou como lidamos com o desfecho de algo previsivelmente previsível é determinante para o sucesso ou o fracasso de uma tirinha –, o material reunido aqui sugere que a produção de Terry & Loo está em evolução e demostra que, no conjunto, o autor tem fôlego para a realização contínua. Fica, no final das contas, aquela curiosidade de “o que virá depois?”. (PB)



É Doce Morrer no Mar – Animma de Mattos (Independente, 2016, 35 p.): É doce morrer no mar? Tenho minhas dúvidas, depois de quase ter afogado na praia alguns anos atrás. Se bem que, se fosse num gibi da Animma de Mattos, acho que o passamento seria mais agradável. Digo isso, porque o gibi dela, uma viagem onírica sobre a garota que se sente mais em casa no mar que em terra firme, transpira sutileza. Diferentemente de narrativas cartesianas, É doce morrer no mar é experiência sensorial, materializada pela leveza da aquarela monocromática – mas nunca monótona – do azul. Escolha editorial bastante apropriada, porque a autora soube brincar com os vários tons da cor da melancolia para fazer o leitor mergulhar na imensidão de matizes azulados presentes no oceano. Outro acerto foi o fluxo letárgico da narrativa, em ritmo hipnótico, como naqueles – infelizmente raros – dias que ficamos assistindo à maré bater preguiçosamente na praia.



A protagonista da história, dividida entre dois mundos, procura, sem muito sucesso, entender o vagalhão de emoções que ronda sua mente. E as inquietações da personagem parecem transpor as páginas do gibi, chegando a questionar os limites da linguagem escrita e falada. Esta limitação fica evidente diante das dificuldades da personagem no momento em que tenta transmitir sensações por meio de palavras que ainda não existem, e talvez nunca venham a existir. Embora merecesse tratamento gráfico mais caprichado, a HQ de Animma cativa pela delicadeza e surrealismo. (MMA)

Entardecer dos Mortos – Tiago Holsi (Céleblo Comics, 2015, 92 p.): Quem me apresentou aos quadrinhos do Tiago Holsi foi ninguém menos que a lenda viva do centro-oeste, Márcio Jr. O que não tenho certeza é se ele sabia que odeio narrativas de zumbi em geral. Provavelmente tudo que se tem para dizer a partir da mitologia zumbi foi dito em A Noite dos Mortos-Vivos. O resto é só reciclagem enfadonha. Mas vejam esse quadrinista goiano Tiago Holsi: ele escreve uma história de zumbis graciosa e otimista, como se este tema fosse apadrinhado pela Disney ou um filme dirigido por Stanley Donen. Tinha tudo para ser um produto derivativo e palha. Porém, Entardecer dos Mortos felizmente oferece mais que isso: é quadrinho de aventura e humor infanto-juvenil fazendo piadas mórbidas (mas bem light), bastante decente. Poderia ser um musical. E Tiago não está muito interessado em obedecer a quaisquer dogmas do gênero zumbi, o que conta a seu favor. Quer apenas usá-los como pessoas normais com detalhes “arrepiantes”, sempre dentro de uma ingenuidade que chega a tornar o quadrinho um pouco insosso. Lembra a “Turma do Arrepio”.

Porém, devo dizer que achei o protagonista Romeu Homero (dã) extremamente simpático e não me surpreenderia se Entardecer dos Mortos se tornasse uma animação estilo “Mágico de Oz encontra Tim Burton” nas mãos de algum mago das telas brasileiro. Tiago Holsi vai na esteira de outros quadrinistas brasileiros com traço afiado, mas de roteiros esquecíveis, como Gustavo Duarte e Guilherme de Sousa. Mas também ainda acho que Holsi guarda, encalacrado no seu inconsciente, um humor negro mais cabulosão que pode fazê-lo dar passos pra frente em sua evolução enquanto quadrinista. Entardecer é muito bem acabado, bem resolvido, tem potencial comercial e atinge várias idades. Não são poucos méritos (especialmente pra um produto de zumbi!), mas a gente sempre quer mais. (CIM)

Verônica – João B. Godoi (Independente, 2017, 18 p.): Quem nunca teve uma paixão virtual? Tecnicamente nunca tive, já que no meu tempo de solteiro não existia esse esquema de Tinder, Facebook e etc. Se bem que, confesso, tive algumas aventuras – em sua maioria grandes roubadas - via Disque-Amizade, espécie de chat room dos anos 80. Este serviço nada mais era que uma linha telefônica cruzada, para a qual as pessoas ligavam por motivos variados, mas principalmente zoação e pegação. Bem, seja por meio telefônico ou por fibra ótica, o fato é que essa ferramenta para conhecer pessoas sempre envolveu certo mistério e risco, especialmente porque nunca sabíamos – até hoje não sabemos com certeza – quem está do outro lado da linha. Este é o mote do gibi Verônica, de João B. Godoi.

A revista conta a história de Naldo – um estudante de letras louco para viver uma nova aventura – e seus grandes amigos, Pedro e Maya. Naldo tem uma paixão platônica por Maya, talvez mais por falta de opções que por nutrir um sentimento genuíno. Até que, num belo dia, Naldo conhece, via Tinder, Verônica, que rapidamente se torna sua namorada virtual. E o que poderia ser motivo de alegria vira transtorno quando a garota do título enrola Naldo para evitar o contato presencial. E aí reside o grande enigma. Quem é Verônica? É mulher? É homem? Ou apenas pegadinha?

O gibi de Godoi é bem caprichado. Dá para ver que ele não economizou esforços para lançar um produto bacana, dadas as limitações de um orçamento independente. O desenho tem pontos altos, nos corpos e cenários, e baixos, nos rostos e expressões faciais. Também há algumas falhas de revisão ortográfica, mas nada que comprometa. Talvez o grande senão do gibi seja o final bastante aberto. Gosto de desfechos que deixem margem para interpretação, mas senti falta de mais pistas para a resolução da identidade de Verônica. O negócio agora é torcer para que haja uma continuação, já que não saber o fim de uma história pode ser tão frustrante como ficar sem conhecer quem era aquela pessoa tão interessante do outro lado do telefone, seja ele conexão discada ou 4G. (MMA)

Rapidíssimas (zines):

O Cão e a Mão do Coração – Ranulfo Medeiros e Juliano Henrique (Seres Soros, 2017, 16 p.): Há boa intenção aqui. Narrativa muda, com desdobramentos interessantes, sobre um cão que aparentemente absorve algo da personalidade das pessoas quando lambe suas feridas. Porém, os desenhos em computador, muito amadores, são um tanto desagradáveis, e o domínio da narrativa um tanto primário. Fica difícil de entender e de engolir. (CIM)



Bear Trap e FoxTrot – A.C. Foxten (Independente, 2014 e 2015, 18 p.): A quadrinista Alena Foxten voltou a Brasília após passar vários anos no Japão. Lá ela aprimorou sua técnica e intimidade com o mangá de terror e trouxe de volta dois zines interessantes no gênero. É engraçado que estilo do traço de Foxten é leve, amistoso e bem pensado narrativamente (Bear Trap é também muda), mas as histórias são assustadoras! Paradoxos do mangá, que aparece aqui com bastante autenticidade. As duas histórias são boas (uma bizarra lenda russa e outra sobre licantropia), e padecem do mesmo problema: traço ainda imperfeito, com domínio um tanto “frio” de movimentos e expressões. Em FoxTrot, os diálogos são didáticos demais. Mesmo assim, apesar de algo afetadas, são histórias implacáveis e com finais devastadores. Prova de que essa autora está aí para chegar em algum lugar. (CIM)



Especial Editora Mino #3: Kick out the Jams!

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Desovando aqui mais quatro sensacionais quadrinhos lançados pela Mino! Let's kick some! (CIM)

por Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes

BAR – O Miolo Frito (Mino, 2017, 176p.): Para Jürgen Habermas, a esfera pública é a dimensão onde os grandes (e pequenos) temas de interesse público seriam aberta e democraticamente debatidos. Aos meus olhos embriagados, os bares sempre pareceram uma possibilidade plausível de locus para este conceito. E quanto mais pé sujo, mais habermasiano – até porque em bar metido a besta as pessoas não vão para discutir ou conversar, mas para dar pinta e aparecer.

Falo desses botecos de quinta categoriacom alguma propriedade. Passei boa parte da minha infância dormindo em suas mesas, enquanto meus pais tomavam dúzias de geladas. Mal adentrei a adolescência e já tinha a dura tarefa de buscar meu velho na madrugada amiga. Chegava lá e a corrupção ganhava corpo: uma coxinha, um picolé, um refri, um torresmo. Meu pai, que adorava bater papo, estava sempre rodeado de amigos, falando levemente sobre todo e qualquer assunto. Tudo isso para dizer que reconheço em Bar uma respeitável autoridade sobre o tema.


O livrão é obra do Miolo Frito, coletivo formado por Breno Ferreira, Benson Chin, Thiago A. M. S. e Adriano Rampazzo – e neste Bar, puxaram mais uma cadeira para Shun Izumi caber na mesa. Fazem parte dessa novíssima geração do quadrinho brasileiro que povoa as feiras invocadas para leitores adultos – e não estamos falando aqui de eventos nerds, fique bem claro. Juntos, produzem uma revista que carrega o nome do grupo, com algumas edições lançadas. Têm um pé fincado no underground e outro no design. Na Miolo Frito, lançam mão de bacanices como capas serigrafadas, uso de tinta pantone e por aí vai. Tudo isso sem descambar para o universo do fanzine gourmet. Palmas para eles.


A abordagem presente na Miolo Frito dá as caras em Bar: capa dura, lombada com costura aparente, impressão em ciano sobre papel pólen. Esse acabamento luxuoso, contudo, seria maneirismo da pior espécie se a HQ propriamente dita fosse artificial. Não é o caso. Diz o release da edição que as histórias narradas possuem como inspiração um bar do bairro Bela Vista, São Paulo. Eu acredito. Apesar de não ser uma narrativa que busque um reflexo exato do dito mundo real, o que se vê ao longo de suas 176 páginas é uma verossímil tradução da fauna que habita um típico pé sujo: Baratas, ratos, clientes assíduos, humor chulo, dramas humanos, tretas, banheiros imundos, prostitutas, policiais sebosos, gordura na parede. Em diversos momentos, doses duplas de realismo fantástico encharcam as páginas do livro.

Tal e qual o cotidiano de um boteco vagabundo é formado pelo entrelaçar das micronarrativas que ali desembocam, Baré a tapeçaria criada a partir de pequenas HQs que têm como palco o estabelecimento comercial administrado por um certo Pedrão. Interessante notar que cada HQ possui cadência, estilo e eficácia próprias. Algumas funcionam muito bem. Outras, nem tanto. Mas não é assim a vida em um bar?

Habermas ressurge: apesar da clara distinção de traços, os autores se recusam a assinar as histórias individualmente. Nesta esfera pública não interessa qualquer tipo de hierarquização entre seus agentes. Eles, inclusive, gozaram de liberdade para dar pitaco e meter pinga um no trabalho do outro. Em determinados momentos, os desenhos são mais negligentes que bebum na sarjeta. O resultado, todavia, porta uma interessante contradição: a HQ é heterogênea, ao mesmo tempo que coesa.

Barnão é uma obra-prima. Bares nunca são lugares para obras-primas. Por outro lado, é uma história em quadrinhos visceral, honesta e cheia de alma – coisa que você não encontra naquele botequim que tenta replicar a Lapa dentro de um shopping center de qualquer capital brasileira. Se estiver em busca de um quadrinho meticulosamente elaborado, leia por sua conta e risco. Entretanto, se assim como eu você já lascou o dente comendo torresmo, vai se identificar com o gibi.

Agora, me dá licença que eu preciso ir ali na esquina molhar a palavra. Ninguém é de ferro... (MJR)

Cão– Breno Ferreira (Mino, 2017): Fugindo da vertente humorística característica das tiras publicadas em Cabuloso Suco Gástrico, Breno Ferreira dedica-se a contar os causos do matador Diogo da Rocha Figueira, o Dioguinho, assassino de aluguel que barbarizou o sertão paulista no final do século 19. Baseando-se na história real de um sujeito que vivia para matar, Breno utiliza um estilo de desenho mais seco e visceral que reflete a opressão de uma época de brutalidade e violência, não exclusiva dos tempos modernos. Trata-se de traço rude e belo, quase xilográfico, que remete a clássicos antigos e recentes do quadrinho brasileiro, como Estórias Gerais, de Flávio Colin, e a Trilogia do Acidente, de Lourenço Mutarelli.

Outra escolha acertada de Breno foi a pesquisa afiada da linguagem dos sertanejos da terra da garoa. É quase uma viagem no tempo. O linguajar típico do interior paulistano é praticamente um personagem e transporta o leitor para dentro daquela realidade em que as armas de fogo ditavam as regras. Elogiável também foi a opção de retratar personagem e temas essencialmente brasileiros. Breno dá – assim – continuidade à salutar tendência de valorizar elementos nacionais, observada em quadrinhos tão interessantes e distintos como Tungstênio, de Marcello Quintanilha e Bando de Dois, de Danilo Beyruth. (MMA)


Uma Noite em L’Enfer - Davi Calil (Mino, 2016, 192 p.): A vida boêmia de grandes nomes das artes plásticas de meados do século 19/começo do século 20 inspirou quadrinhos interessantíssimos, como O Bordel das Musas, do iugoslavo Gradimir Smudja (também autor de Vincent & Van Gogh), e Salon, do americano Nick Bertozzi. Lançada em julho de 2016, Uma Noite em L’Enfer, do paulista Davi Calil, junta-se, por afinidade e méritos, a essa lista.

O autor serve-se de liberdade poética para, sob a égide de Noite na Taverna, do escritor Álvares de Azevedo, imaginar um encontro entre os pintores Vincent van Gogh, Paul Gauguin, Toulouse-Lautrec, Gustav Klimt e Francisco de Goya numa mesa de bar – o cabaré parisiense L’Enfer, famoso por sua fachada (uma assustadora boca escancarada) e por conta da decoração que remete ao subterrâneo reino do Capiroto – onde, servidos de muito absinto, se engajam numa competição de contação de histórias macabras. O vencedor leva como prêmio um crânio que, supostamente, teria sido do poeta italiano Dante Alighieri. Todos recorrem a relatos biográficos (ou quase) de amor e morte, que passam por sexo, perversões, luxúria e traição. “Nós vivemos em um arco-íris de caos”, resume, numa participação especial, o pintor Paul Cézanne.

Davi Calil é – como revelam os protagonistas na obra em questão – um habilidoso narrador. Também profissional da animação, ele imprime um ritmo de desenho animado em sua HQ. Aliás, uma das produções das quais Calil participou é justamente Historietas Assombradas (para Crianças Malcriadas), exibida pelo Cartoon Network. A série, assim como, de certa forma, também Uma Noite em L’Enfer, passa pelo humor e pelo terror (no caso do desenho animado, para crianças, algo bem light).

Livre de qualquer compromisso com o público infantil, o autor mesmo assim dosou a mão na hora de imprimir terror na HQ. Calil busca um equilíbrio entre luz e sombras e, mesmo as histórias pedindo uma aproximação muito maior com as trevas – equações exemplarmente alcançadas, por exemplo, nas obras Pinóquio, de Winshluss, e Três Sombras, de Cyril Pedrosa –, tende mais para o lado da suavidade. 

Mas não se engane: Uma Noite em L’Enferé um quadrinho divertido e instigante, desde o argumento (com direito a surpresinha no desfecho) até – e especialmente – as ilustrações. (PB)

Sshhhh!– Jason (Mino, 2017, 128 p.): Uma linguagem silenciosa (ou “muda”) tem o mesmo poder de expressão do que uma com diálogos, palavras e sons? Depois de passar mais de sete anos estudando cinema silencioso, acho que posso arriscar a dizer que esse tipo de expressão, com toda sua imensa gama de variações, não processa o conhecimento da mesma forma que aquele acompanhado por palavras. Não que uma linguagem supere a outra, mas estão em pontos diferentes da curva, sintonizam em diferentes frequências. A linguagem muda, bem menos logocêntrica, alcança instâncias recônditas do entendimento que as palavras, um tanto centrípetas, perdem em sua simbologia. Para um filósofo como HenriBergson, a imagem é a própria matéria que constitui a realidade. Quadrinhos só com imagens nos remetem a este“despertar” ontológico.

É mais ou menos a isso que estas dez histórias mudas do inigualável quadrinista norueguês Jason remetem. Com narrativas simples numa grade 2x3 e muita economia em determinados detalhes comuns em quadrinhos (palavras são detalhes para alguém como Jason), ele nos leva à jornada sentimental de um relacionamento, ao encontro com a morte, ao encontro com o diabo, à dilacerante dor de ser rejeitado, à “dor e delícia” de ser pai e filho, à sensação de se tornar invisível socialmente, à sensação de se tornar muito visível socialmente, ao vazio da riqueza sem propósito, a um sem-número de implicações existenciais. E isso ocorre porque elas se processam em silêncio, como se fosse aquele íntimo encontro consigo próprio, um mundo onde a real é apenas você pensando e olhando as coisas.


Estes quadrinhos funcionam como alegorias em seu sentido mais restrito, adorniano: são imagens em deslocamento que traçam parábolas. Jason enxuga sua representação ao essencial em dispositivos muito simples de contar histórias, mas rigorosamente originais e resgatando o máximo do que a pura visualidade pode oferecer. Referências de quem sabe o que está fazendo (Hergé, Spiegelman, Herriman) abundam, e esta obra não deixa de ser um prisma de erudição por sua linguagem minimalista que faz parecer fácil fazer quadrinhos. Tão longe, tão perto! Uma das coisas mais brilhantes no nosso mercado atualmente. (CIM)   

"Herói ou Ameaça?" O Homem-Aranha pela ótica do Clarim Diário

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por Marco Antônio Collares

Todos nós sabemos o imenso sucesso do personagem Homem-Aranha da Marvel Comics e todos nós conhecemos alguns dos motivos desse sucesso perante o público como um todo. O que muitos dos fãs não percebem é o quanto esse sucesso relaciona-se a um dos mais renomados antagonistas do herói mascarado, o editor-chefe do jornal Clarim Diário, J.J. Jameson, que passa a maior parte de seu tempo tentando desmerecer o herói mascarado, evidenciando o que seria a verdadeira face do Homem-Aranha, não como o herói que procura afirmar em seus salvamentos do dia a dia, mas como um mero criminoso mascarado. Se o Abutre, o Dr. Octopus e o Duende Verde são ameaças físicas ao aracnídeo, o Clarim Diário é uma ameaça constante e simbólica, que exerce mais prejuízos à vida do herói aracnídeo do que todos os seus vilões reunidos. 


O Homem-Aranha da Marvel Comics de Stan Lee e Steve Ditko

A Marvel Comics é uma das maiores empresas estadunidenses do ramo de super-heróis, tanto em vendas como em popularidade. Em uma obra de referência sobre a trajetória da empresa, Marvel Comics: a História Secreta, o historiador-jornalista Sean Howe especifica alguns aspectos acerca dos objetivos da empresa nos anos 1960, momento em que a editora foi rearticulada pelo escritor, roteirista e editor, Stan Lee e pelo desenhista e criador, Jack Kirby, ambos sob a tutela de Martin Goodman, seu dono na época.

A partir desse momento, a Marvel Comics (outrora chamada de Timely Comics) se tornou uma espécie de "Casa das Ideias” (chamada de Marvel Bullpen por Stan Lee) de artistas, quadrinistas e novos talentos, inovando o gênero dos super-heróis nos EUA e no mundo. 

Até mesmo um “método Marvel” foi articulado no meio quadrinístico de super-heróis a partir de então. Tratar-se-ia de um método segundo o qual os desenhos seriam elaborados de improviso a partir de um roteiro geral superficial, sendo que somente ao final do processo de criação das imagens em sequência é que seriam alocados os balões de diálogos e os recordatórios, um fato que impulsionava a liberdade criativa das histórias em quadrinhos da editora.

O sucesso da editora não ocorreu somente em função dessa liberdade criativa, mas também porque os artistas da empresa colocaram em cena narrativas vinculadas ao contexto histórico, cultural, político e social de sua época e de seus próprios leitores, na medida em que tais artistas também eram leitores e fãs de quadrinhos de super-heróis, gerando uma forte identidade nos receptores de bens culturais em relação aos heróis adolescentes criados e veiculados pela editora. 

Os super-heróis Marvel se tornaram cada vez mais aproximados, em suas atitudes e ideias, das pessoas comuns e, como quaisquer pessoas, tais personagens tinham problemas semelhantes aos do homem comum nas grandes metrópoles dos EUA, o que era evidenciado nas mídias da época. O próprio Stan Lee, uma espécie de garoto propaganda da empresa, reiterava o diferencial da editora em relação à sua maior concorrente, a DC Comics, berço de personagens icônicos do porte de Superman e Batman.

Segundo Howe, a revista Voice da época chegou a se pronunciar em um artigo sobre a Marvel nos seguintes termos: “Os gibis Marvel são os primeiros da história que conseguem envolver um escapista pós-adolescente. Porque os gibis Marvel são os primeiros a suscitar, mesmo que metaforicamente, o Mundo Real”.

Foi nesse contexto específico, no qual a empresa buscava ampliar seu público leitor, passando a captar não somente o público infanto-juvenil padrão de quadrinhos de super-heróis, mas, igualmente, os jovens universitários, que o Homem-Aranha foi criado.

Peter Parker era - tal como escrevera Stan Lee na edição de sua primeira aparição - “o herói que podia ser você”. Suas narrativas trouxeram um sentido novo de realismo aos super-heróis, visto que se tratava de um adolescente nerd que sofria de bullying na escola, enquanto vivia com a tia idosa em um subúrbio da cidade de Nova York, um jovem tímido e retraído que, segundo os recordatórios de suas primeiras narrativas, representava “o cara mais caxias do colégio Midtown”.


Criado como uma espécie de arquétipo de seus próprios leitores, Peter Parker/Homem-Aranha estava muito distante dos atléticos super-heróis clássicos da DC e da própria Marvel, sendo um jovem magro, desengonçado e impopular no dia a dia, mas que, quando vergava a máscara e a fantasia de herói, se tornava descontraído e descolado, meio que uma dupla personificação dos leitores: o que eles seriam normalmente em seus cotidianos na escola e o que eles gostariam de ser.

A revista Amazing Fantasy número 15 trouxe a primeira aparição do herói aracnídeo, mais especificamente em junho de 1962, mostrando desde o início um jovem Peter Parker rejeitado pelos colegas, em um melodrama grandioso e intenso influenciado tanto pela personalidade intimista e minimalista do artista Steve Ditko como pela conhecida tagarelice do escritor e vendedor de ideias, Stan Lee.

De certa forma, essa ambivalência na personalidade do herói chamou a atenção de imediato dos leitores da editora, visto que o Homem-Aranha parecia ser o amálgama não somente dos anseios dos jovens, mas também da personalidade de seus dois criadores: o tímido Ditko enquanto Parker e o extrovertido Stan Lee sob a máscara de Homem-Aranha.

Em meio a essa ambivalência criativa, Peter Parker era constantemente tomado pela culpa em razão de não ter ajudado seu tio Ben quando o mesmo foi atacado (e assassinado) por um ladrão, tornando-se um vigilante mascarado que buscava ajudar a vizinhança (a cidade como um todo), ao mesmo tempo em que ganhava trocados para ajudar nas despesas de casa da tia viúva, quando da venda das fotos do Homem-Aranha na luta contra o crime. A capa da primeira edição em que o personagem foi representado colocou exatamente essa ambivalência nos balões e recordatórios, com um Homem-Aranha suspenso nos céus da cidade, afirmando não ser mais somente o tímido Peter Parker, mas também um incrível super-herói mascarado. 

O sucesso foi imediato e logo a redação da Marvel estava repleta de cartas de leitores que se identificavam com Peter Parker, não somente por sua personalidade instigante e ambivalente, mas igualmente por seu empreendimento de salvar pessoas ao mesmo tempo em que conseguia ganhos pessoais com tal fato. Foi nesse contexto que o Clarim Diário foi inserido como o cenário onde Peter Parker tentava vender as fotos de si mesmo como herói, tendo que conviver então com o universo jornalístico.

Nesse contexto, Parker teria de lidar com um de seus mais notórios “antagonistas”, o editor-chefe e dono do Clarim Diário, J.J. Jameson, um homem grosseiro e rabugento que comprava as fotos trazidas pelo jovem fotógrafo, mas que considerava o vigilante retratado uma verdadeira ameaça para a sociedade, intencionando evidenciar nas capas do jornal que o Homem-Aranha, apesar de espetacular, era mais um criminoso mascarado. 

Se Parker mostrava fotos de um salvamento ou de si mesmo combatendo o crime, lá estava J.J, tentando direcionar a notícia de modo a evidenciar que o verdadeiro criminoso por trás de todo o cenário retratado era o próprio Homem-Aranha, sendo esse um dos motes principais das narrativas do personagem, ou seja, o da relação entre a notícia de ações altruístas do Homem-Aranha e as interferências editoriais do dono do jornal que publicava e distorcia estas respectivas ações.

O Homem-Aranha segundo o Clarim Diário de J.J. Jameson

Na primeira página de uma das primeiras edições envolvendo uma notícia sobre o Homem-Aranha no Clarim Diário, logo após uma luta entre o herói mascarado com seu arqui-inimigo Duende Verde, aparece um risonho John Jonah Jameson comemorando o que seria a fuga “covarde” do herói aracnídeo. 

O editor-chefe do Clarim Diário procura demonstrar, com a notícia e com a chamada do editorial de página do jornal, que o Homem-Aranha é um verdadeiro covarde, o que seria por si somente uma construção do acontecimento, visto que na luta travada entre os dois antagonistas (na edição anterior), o Homem-Aranha afastou o vilão dos transeuntes, que vivenciaram a batalha como sua aparente fuga. Este é, portanto, um exemplo de interpretação do fato a partir da visão “distorcida” do editor-chefe do jornal, que nutre verdadeira aversão ao vigilante mascarado e que procura desmerecê-lo perante a opinião pública. 

De certa forma, a personalidade e a trajetória de Jameson explicam muito de seu desprezo pelo Homem-Aranha e mesmo por outros vigilantes mascarados. A explicação inicial diz respeito ao fato de sua esposa ter sido assassinada por um homem mascarado, levando-o a ter uma genuína aversão por todos aqueles que escondem a verdadeira identidade, considerando que só o faziam por motivos escusos. Existe, portanto um lado pretensamente verdadeiro no personagem, ainda que ambíguo para suas atitudes de intervenções editoriais acerca dos fatos envolvendo o Homem-Aranha.

O editor-chefe e dono do Clarim Diário possui também um orgulho genuíno de John, seu filho astronauta (e também o super-vilão Homem-Lobo), que para ele seria o "verdadeiro" herói americano, outro motivo que o leva a constantemente se opor à notoriedade dos vigilantes mascarados. Nesse ponto, existe outra ambiguidade em suas atitudes, na medida em que J.J. (como é conhecido) também procura vender jornais através da notoriedade desses mesmos mascarados, sendo o Homem-Aranha uma das figuras mais utilizadas nas capas de seu jornal (em razão, claro, dessa premissa ser parte integrante das narrativas em quadrinhos do personagem). As imagens abaixo mostram esse outro lado do editor-chefe do Clarim Diário, o lado empreendedor de um homem oportunista no que tange à utilização de fatos e fotos envolvendo o Homem-Aranha.




As imagens mostram Peter Parker vendendo fotos de si mesmo em ações como Homem-Aranha para J.J. Jameson, enquanto esse último desvela a mencionada ambivalência entre a aversão que sente pelo vigilante mascarado (chamado por ele de “ameaça pública”) e seus interesses econômicos, na medida em que as fotos do aracnídeo aumentam as vendas do jornal.

O Homem-Aranha é representado como a ameaça pública que J.J. Jameson quer evidenciar, sendo igualmente o personagem de capa que vende muitas tiragens do Clarim Diário, seja por suas ações fantásticas no combate ao crime, seja pela qualidade das imagens trazidas por Parker, visto que ele tira fotos dele mesmo em ação, como se estivesse na cena onde tudo transcorreu. 

Alguns exemplos interessantes de como J.J. Jameson intenciona destruir a imagem do Homem-Aranha mediante a opinião pública a partir de sua influência no jornal podem ser evidenciadas logo abaixo, em algumas imagens de narrativas em quadrinhos do Homem-Aranha da década de 1960, sob a pena do argumentista Stan Lee e do desenhista Steve Ditko.




No primeiro exemplo, J.J. aparece inicialmente satisfeito ante a possibilidade de o Homem-Aranha ser acusado por um assalto a banco, logo desiludido por um secretário, que lhe informa sobre o fato do herói ter aparecido no mencionado banco para combater uma gangue que atuava de forma criminosa no local, levando a face do editor do Clarim Diário a mudar completamente, da euforia para a completa desilusão. J.J não cria, portanto, as notícias, não inventa fatos que não ocorreram, o que explica essa mencionada desilusão, visto que ele realmente acredita ser o Homem-Aranha um criminoso.

Na segunda imagem, J.J está radiante diante do uniforme do Homem-Aranha, entregue por um anônimo após encontrá-lo jogado em uma lata de lixo. Na narrativa em questão, Peter Parker quase desistiu de sua vida de super-herói devido as notícias depreciativas do Clarim Diário sobre seu alter ego. Por fim, a última sequência, com um J.J evidenciando que seu principal objetivo é destruir a “ameaça” representada pelo Homem-Aranha, nem que seja “a última coisa que faça na vida”.

Diversas notícias e editoriais direcionados ou mesmo escritos por J.J. buscam destruir ou desmerecer a imagem do Homem-Aranha perante a opinião pública de Nova York, independentemente das ações altruístas do vigilante. De certa forma, a máquina de escrever de Jameson é sua arma pessoal para demonstrar que a cidade deveria se insurgir contra o vigilante mascarado, seja para prendê-lo, processá-lo ou simplesmente extirpar sua figura da sociedade novaiorquina. As duas imagens que se seguem evidenciam que o trabalho de J.J como jornalista é nitidamente laborioso e mais, que seu jornal reponde à voz da opinião pública, sendo a arma da população contra a ação ilegal de vigilantes mascarados do porte do Homem-Aranha.



Jameson mostra-se como um jornalista dedicado e quase absorvido pela sua missão de revelar a verdadeira face do Homem-Aranha, como que expressando uma voz honesta no combate ao vigilantismo. Peter Parker, por sua vez, é constantemente surpreendido pelas capas do Clarim Diário contra sua figura de herói mascarado, sempre se questionando acerca dos motivos que levam o editor-chefe do jornal a não acreditar em suas ações altruístas no combate ao crime.

Não é incomum também, em narrativas subsequentes, que argumentistas e desenhistas das tramas do Homem-Aranha tragam debates entre J.J e seu principal editor, Joe Robertson, que usualmente questiona o primeiro em relação a matérias e editoriais depreciativos relacionados ao vigilante aracnídeo. Nessas conversas, J.J se coloca usualmente preocupado com os fatos a serem noticiados, não reconhecendo em si um jornalista que distorce notícias, o que desvela uma atitude mais complexa do que a expressão do simples jornalismo marrom ou mesmo de meras intervenções editoriais com objetivos pessoais regados a “mau caratismo”.

Na imagem abaixo um exemplo interessante e representativo, desta vez sob a pena do desenhista John Romita. Na página elencada é representado um debate entre J.J e Joe Robertson referente à quase overdose por cocaína de Harry Osborn, filho do vilão Duende Verde e amigo de Peter Parker nas narrativas do Homem-Aranha dos anos 1970. 


Desde as primeiras narrativas em que apareceu, Joe Robertson foi representado como um contraponto a J.J. Jameson no Clarim Diário, servindo como válvula de escape para que as tramas do Homem-Aranha mostrem o dia a dia de um jornal sério e comprometido com fatos jornalísticos verídicos. O próprio Homem-Aranha se vale do editor do jornal para pedir informações sobre fatos envolvendo criminosos ou outros fatos do cotidiano da cidade, confiando em Robertson como aquele que sempre noticiará a verdade.


Em outra passagem, Robertson e J.J. Jameson debatem sobre a atuação do Homem Aranha e de outro personagem vigilante, o Justiceiro, diante de um sequestro, intencionando saber de Peter Parker o que suas fotos poderiam revelar sobre o envolvimento dos dois vigilantes de Nova York na solução do supracitado crime.

Novamente Robertson é o contraponto de um J.J ambivalente entre a verdade dos fatos e a intenção de responsabilizar o Homem-Aranha por tudo que pode dar errado no sequestro em questão. As intervenções editoriais de J.J referentes a fatos envolvendo os vigilantes mascarados passam notadamente pela tentativa de desvelar a verdade, mas também por suas conversas constantes com Robertson e claro, pelos sentimentos negativos em relação ao herói aracnídeo. 


Seria verossímil supormos que os argumentistas das histórias em quadrinhos do Homem-Aranha simplesmente escolhessem o mais cômodo acerca das intervenções de J.J em seu jornal, como se ele fosse um mero exemplo de alguém mal intencionado. Em alguns momentos e mesmo nas tramas iniciais de Stan Lee e Steve Ditko, essa era a visão usual representada nas narrativas, mas com o tempo, J.J começou a operar entre posturas cada vez mais ambivalentes e interessantes. 

Por um lado, ele se via costumeiramente preocupado com a veracidade dos fatos narrados, principalmente em suas muitas conversas com Joe Robertson. Por outro, ele se via na posição de dono de um jornal de grande tiragem, pensando nas vendas diárias, o que o levava a comprar fotos do Homem-Aranha para incrementar os lucros.

Por fim, J.J era representado com sua intenção puramente emocional de colocar fim à carreira do Homem-Aranha, ainda que sustentasse para si mesmo que se tratava de uma atitude correta e altruísta de bom jornalista que procurava desvelar a verdade dos fatos, visto que ele acreditava piamente ser o vigilante mascarado um mero criminoso bancando o herói.

No filme do Homem-Aranha de 2002, dirigido por Sam Raimi e estrelado por Tobey Maguire, J.J foi representado de forma extremamente cômica, quase que um arquétipo irônico dessa representação ambivalente do personagem dos quadrinhos. Mesmo assim, o mote do personagem na grande tela estava envolto pelo questionamento da verdadeira natureza do Homem-Aranha, tal como pode ser demonstrado na imagem logo abaixo, quando a figura do vigilante aracnídeo aparece acima do jargão clássico de Jameson: "Spider-Man: Hero or Menace"? 


Sem dúvida que as intervenções editoriais de J.J, no que concerne a fatos envolvendo o Homem-Aranha, não promovem a pura distorção dos fatos jornalísticos, mas talvez um questionamento honesto quanto à natureza do vigilantismo do personagem principal das narrativas. Isso diz algo sobre a atividade jornalística em si, pelo menos se cotejarmos as teorizações elencadas anteriormente acerca dessa atividade.

Mesmo assim, devemos evidenciar que estamos tratando aqui de representações alegóricas de argumentistas e desenhistas de HQs, e o que esses artistas achavam do universo jornalístico. Talvez as narrativas contivessem certos exageros artísticos propositais sobre condutas tipificadas e estereotipadas em um jornal. No caso das supracitadas narrativas, talvez tudo não passasse de uma intenção proposital de colocar Peter Parker/Homem-Aranha frente a um antagonista poderoso: as mídias e os periódicos impressos.

PIPOCA & NANQUIM SOLTA O VERBO!

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por Pedro Brandt

Contabilizando a quantidade de conteúdo – textos e, especialmente, vídeos – do site/canal Pipoca & Nanquim, é perceptível uma dedicação exemplar ao projeto. O nível da qualidade textual e o gosto diferenciado nas escolhas dos assuntos abordados está a anos luz da média da internet brasileira – uma raridade, pode-se dizer. O carismático trio formado por Alexandre Callari, Bruno Zago e Daniel Lopes, ainda por cima, estreou em 2017 a editora Pipoca & Nanquim. Uma conquista não apenas deles, mas dos leitores brasileiros interessados em quadrinhos que fujam do convencional.

Com um fôlego impressionante, a jovem editora lançou, em seis meses, seis títulos de peso: Espadas & Bruxas, coletânea com trabalhos do espanhol Esteban Maroto; Cannon, obra do americano Wally Wood; Moby Dick, adaptação do clássico literário de Herman Melville assinada pelo francês Christophe Chabouté; Beasts of Burden – Rituais Animais, de Evan Dorkin e Jill Thompson; Um Pequeno Assassinato, de Alan Moore e Oscar Zárate e Conan, o Bárbaro, livro com contos de Robert E. Howard, criador do personagem, e ilustrações de Mark Schultz, Gary Gianni e capas de Frank Frazetta. É mole ou quer mais?! Sim, Pipoca & Nanquim, queremos mais, muito mais!


Por e-mail, Alexandre Callari e Daniel Lopes responderam (um pouco antes do anúncio do lançamento do livro de Conan) uma entrevista sobre o surgimento da editora. Que ela tenha uma vida longa e próspera! (PB)

PS: na semana que vem, a Raio Laser volta seu escrutínio às HQs lançadas pelo P&N.



Vocês três trabalham há alguns anos no meio editorial de histórias em quadrinhos. Quais os principais aprendizados – resumidamente falando – vocês adquiriram para montar a editora Pipoca & Nanquim?

Alexandre: Nós sonhamos em montar uma editora desde bem antes de sermos editores, quando o Pipoca ainda era um canal bem pequeno e nem sequer estava no Youtube. Foi ótimo que as tentativas anteriores não tenham dado certo, porque nós simplesmente não estávamos preparados. Foi só depois de anos trabalhando para a Panini/Mythos que aprendemos todo o funcionamento do processo editorial. Mesmo assim, quando começamos, tivemos de nos familiarizar com várias outras coisas que conhecíamos apenas marginalmente, como os processos de gráfica.

Daniel: Outra coisa bem importante foi ter um público no canal bem participativo, e que nos serve de termômetro para a escolha dos títulos. Às vezes algum comentário do tipo “Alguém precisava trazer o trabalho do Wally Wood por Brasil” já nos dá uma luz.

“Alguém precisava trazer o trabalho do Wally Wood por Brasil”

Aprender a como apresentar e vender um produto é um aprendizado constante, que anda lado a lado com o processo editorial: o livro precisa ser atrativo como objeto e ter um motivo (vamos dizer assim) para ser lançado.

Em que momento perceberam que era a hora de lançar a editora? Vocês fizeram algum tipo de pesquisa de mercado nesse sentido? Ou foi mais no feeling mesmo?

Daniel: Foi feeling associado ao corpo de público angariado pelo canal. Como falei antes, nossa “pesquisa de mercado”, praticamente, se dá a cada novo episódio que lançamos no canal. Percebemos que alguns materiais têm potencial de público, que sabemos como fazer (da negociação com os licenciantes até retirá-lo na gráfica), que temos uma base de fãs querendo boa leitura... e rolou uma sintonia entre nós três, pois não tivemos dúvidas de que era a hora certa.

E a parte de gestão administrativa, são vocês mesmos que cuidam? Ou montaram uma estrutura de empresa? Caso sim, comentem sobre isso, quantas pessoas trabalham com vocês?

Alexandre: Atualmente nós cuidamos de tudo. Não temos funcionários, apenas colaboradores (revisores, tradutores, letristas, etc.) e toda a gestão é feita por nós mesmos, dividida de acordo com as principais competências de cada um.

Daniel: Temos também o apoio de uma contadora e de um advogado para sanar quaisquer dúvidas nesse sentido. 

Procede o boato que a editora Pipoca & Nanquim é bancada por uma editora maior, que injetou verba e deu carta branca para vocês lançarem a editora? Caso sim, corre o risco de essa experiência, caso não dê os resultados esperados pelo patrocinado, ter vida curta? O que podem comentar sobre o acordo entre as partes?

Alexandre: Nunca ouvi falar desse boato e, desde já, afirmo que é um completo absurdo. Tudo que fizemos foi por conta própria e dando nosso sangue e suor. Quem nos dera ter alguém grande injetando dinheiro – teria sido bem menos sofrimento. Mas as coisas são como são e, felizmente, hoje não devemos nada a ninguém e temos 100% de controle sobre tudo o que acontece na editora. Isso significa que todas as decisões que tomamos são exclusivamente nossas, para bem o para mal.

Daniel: Hahahaha. Também não havia escutado essa, mas tem rolado uns absurdos do tipo, mesmo. Já me questionaram se a gente era um subdivisão da Amazon, por exemplo…

De quem foi a ideia de estrear com uma coletânea de HQs de Esteban Maroto? Estrear com Espadas e bruxas foi proposital? Algo como uma carta de intenções da editora? Ou poderia ter sido com algum outro título?

Daniel: A ideia inicial foi negociar com o Maroto a publicação de Cinco por Infinito. O Ale conseguiu o contato dele poucas horas depois da gente decidir investir na editora. Eu tinha um exemplar de Espadas Y Brujas e adoro a obra. Na negociação com o Maroto, ele ofereceu este título também, que nos pareceu bem interessante para começar tudo. Tem quase metade do número de páginas de Cinco por Infinito (ou seja, é produção gráfica mais em conta), trazia todo um lado de resgate e casava com coisas que adoramos, tipo Conan, Creepy e tal...

Acredito que mostrou bem nossas intenções como editora, mas não chega a estabelecer um padrão de conteúdo. Não vamos focar apenas em quadrinhos clássicos, a ideia é publicar obras que gostamos muito e que tenham relevância tanto histórica quanto de conteúdo.

"Eu tinha um exemplar de Espadas Y Brujas e adoro a obra."

Wally Wood é um autor cult e com uma vasta produção inédita no Brasil. Caso não conseguissem publicar Cannon, que outra obra dele vocês gostariam de lançar (e por quê)?

Alexandre: Temos muita vontade de lançar o material de ficção científica do Wood, ou então Sally Forth e outras HQs eróticas. Mas Cannon nos parecia o material mais acertado mesmo.

Daniel: Novamente, era um material que eu tinha em casa e já havia lido. Aí mostrei pro Ale e Bruno, e eles adoraram, como é de se imaginar. É preciso ler e gostar dos gibis antes de decidirmos lançá-lo.

"Cannon nos parecia o material mais acertado."

Esteban Maroto e Wally Wood são dois autores clássicos. Christophe Chabouté é um nome bem menos conhecido. Por que lançar pela editora uma obra produzida por ele? Além da qualidade da HQ, a escolha de publicar Moby Dick foi pensada também para pegar carona na boa recepção (bibliotecas, escolas, pais que compram pros filhos) que adaptações de literatura em quadrinhos ainda conseguem no Brasil?

Daniel: Sem dúvida, só o nome Moby Dick já é propaganda. Não é preciso explicar muito o que é Moby Dick, muita gente já tem alguma noção do que se trata, é mais vendável organicamente. Mas não miramos essa “carona de adaptações literárias” nesse sentido de venda para bibliotecas e escolas, não. Até por que esse tipo de programa/incentivo governamental está escasso. O Chabouté é desses grandes autores que precisavam ser publicados no Brasil, é provavelmente o melhor quadrinista francês dos últimos anos. Quando conheci seu trabalho, fiquei atônito e na hora pensei “quero publicar isso” e não “nossa, o governo vai comprar um monte pra colocar as escolas”. 

E por falar em carta de intenções, como vocês definem a linha editorial da editora Pipoca & Nanquim? Cabe de tudo? E o que não caberia na editora? E quais editoras servem de referências e inspiração para vocês?

Alexandre: O que não cabe na editora são quadrinhos ruins. Só isso. Não faremos nenhum recorte de outro tipo; lançaremos quadrinhos de todas as épocas, gêneros e nacionalidades, contanto que seja bom. 

Daniel: Quer dizer, quadrinhos ruins PRA GENTE, né, Ale?! Hahah. Tem gosto pra tudo. 
Mas basicamente escolhemos títulos que nós três gostamos muito. Mas dá pra dizer que sim, cabe de tudo. Minhas referências para a editora são: Drawn & Quarterly, Glénat, Fantagraphics Books, Coconino Press, Veneta, Darkside e Edições Asa

Qual foi a tiragem inicial dos três primeiros álbuns lançados? Previsão de segunda tiragem para algum deles?

Daniel: Estamos trabalhando com a tiragem entre 2/3 mil exemplares. Espadas e Bruxas e Cannon deve ganhar reimpressão até o fim do ano, se tudo der certo. 

O preço dos títulos lançados pela editora, ainda que condizente com o acabamento luxuoso do material, é bem salgado. Como leitores de quadrinhos, vocês sabem que isso pesa na hora de escolher o que comprar. Internamente, como editores, pesa para vocês chegar a essas conclusões?

"Com Beasts of Burden, abrimos mão de parte dos lucros
que teríamos para oferecer um produto mais em conta para
o público".
Alexandre: Sim, o material foi caro, mas não acho que tenha sido fora de propósito. Uma coisa que precisa ficar claro é que nunca conseguiremos equiparar os preços de uma Panini, por exemplo, porque as tiragens dela são monstruosas e muitas vezes impressas fora do Brasil. Dito isso, agora que conseguimos firmar as pernas na lama, temos a chance de reduzir um pouco o valor das obras. Por exemplo, com Beasts of Burden, abrimos mão de parte dos lucros que teríamos para oferecer um produto mais em conta para o público, ainda que o valor de produção dele tenha sido quase tão caro quanto o de Moby Dick. É a nossa forma de recompensar quem nos apoiou nos três lançamentos anteriores.

Daniel: O preço sempre vai pesar na hora de comprar, obviamente, e isso é para qualquer produto, e não só quadrinhos. A política que adotaremos é tentar cobrar um preço justo mediante a qualidade do material. 

Ainda que o preço inicial dos álbuns lançados pela editora seja caro, a parceria de vocês com a Amazon, algumas vezes, em promoções, diminui o preço pela metade. Como vocês avaliam a chegada do site de compras ao Brasil? Os benefícios são óbvios (bons preços, entrega em todo Brasil) mas vocês acreditam que eles podem matar o pequeno lojista, como muita gente vem comentando?

Alexandre: O lojista precisa aprender a ser criativo. O preço é uma concorrência séria, não nego, mas o lojista tem a vantagem de atrair o público para dentro da loja, de olhar o cliente no olho, de dar indicações... Há uma relação de calor humano, que é justamente o que forma os leitores. A Amazon não pode promover lançamentos com autores, tardes de autógrafos ou outros tipos de eventos para atrair o público. É neste momento que o lojista pequeno pode oferecer algo que uma megastore não consegue. Por outro lado, se ele pensar apenas em termos de preço, está fadado a fechar as portas, porque isso jamais conseguirá bater.

Espadas e bruxas e Cannon têm um apelo maior com o leitor mais velho ou, ao menos, o leitor não viciado apenas no universo dos super-heróis. Qual o risco em apostar nesse segmento? Ou, ao contrário, vocês perceberam justamente ali um potencial?

Alexandre: Nós enxergamos potencial. Há risco em lançar algo que não seja super-heróis, claro, mas nós confiamos que o público está mudando cada vez mais. Em todos esses anos de canal, uma das nossas missões foi justamente abrir os olhos do público em geral para as maravilhas que existem produzidos dentro da mídia dos quadrinhos fora do eixo Marvel/DC. Como editora, a missão continua a mesma.

Um Pequeno Assassinato, de Moore/Zárate, está entre os
lançamentos mais qualificados da editora.
O site/canal Pipoca & Nanquim cresceu e virou uma referência. E muito desse resultado está diretamente relacionado à dedicação de vocês. Essa dedicação foi algo natural, tipo, “gostamos do que fazemos, por isso fazemos com frequência” ou rolou uma mentalidade mais pragmática, com objetivos estabelecidos, como “temos uma meta, vamos nos esforçar para alcançá-la”?

Alexandre: Nossa dedicação sempre foi natural. Passamos anos produzindo conteúdo sem ganhar um centavo e sem método definido. Apenas fazíamos nossos vídeos e esperávamos o melhor. Na verdade, faz pouco tempo que o canal se “profissionalizou”.

E por falar nisso, vocês fazem alguma outra coisa na vida além de ler quadrinhos, editar quadrinhos, escrever sobre quadrinhos e falar de quadrinhos? Sobra tempo pra uma cervejinha ou um futebol com os amigos, um cinema com a patroa?

Alexandre: Todos nós procuramos ter vidas sociais bem comuns, nada de ser bitolados. Adoramos sair para jantar, todos temos uma companheira, vamos ao cinema... No meu caso, sou artista marcial desde os 14 anos e hoje em dia dou aulas de jiu-jitsu e MMA. Já se foi a época em que para ser nerd você precisava ser estranho e antissocial; isso não faz mais sentido.

Vocês pensam em ampliar o site, transformá-lo num portal, aumentar a equipe, algo do tipo?

Alexandre: Ainda não temos conversado nada nesse sentido; se acontecer, terá de ser um processo gradual. À medida que nossa operação crescer e demandar uma equipe maior, vamos tentar corresponder.

O que vocês acham do momento pelo qual passa o quadrinho brasileiro atualmente? O que gostam nessa nova cena e o que acham que precisa melhorar? E que quadrinista clássico brasileiro (morto ou em atividade) mereceria um álbum lançado pela editora Pipoca & Nanquim?

Alexandre: nosso cenário está bem melhor do que era há alguns anos, mas ainda há muito espaço para crescer e melhorar em todos os direcionamentos, do artista à receptividade do leitor, passando por todas as etapas que existem entre eles. Se compararmos com mercados como os da França, Espanha, Argentina, Inglaterra e Estados Unidos, vemos que temos de comer muito arroz e feijão ainda. Mas tudo é um processo, não? Quanto aos quadrinistas, não vamos entregar o ouro; tem muita gente na nossa mira.



Bate-bola

Nome: Alexandre Callari
Idade: 41 anos
Formação acadêmica: Letras
Profissão/Ocupação: Editor
Uma birita (tipo e qual marca): uísque escocês/irlandês single malt
Três bons filmes que não são adaptações de quadrinhos, mas que têm tudo a ver com quadrinhos: Blade Runner, Alien – o Oitavo Passageiro, O Senhor dos Anéis (trilogia)
Três livros (de ficção) que todo leitor de quadrinhos deveria ler:Hellraiser, Conan: o Bárbaro, Frankenstein
Três autores de quadrinhos que você admira (não vale os da editora!): Alan Moore, Frank Miller, Neil Gaiman
Os três melhores quadrinhos brasileiros que você leu recentemente: A Infância do Brasil
Os três melhores quadrinhos estrangeiros (não vale os da editora!) que você leu recentemente:Lex Luthor: Biografia Não Autorizada, Fragmentos do Horror, Érzbert
Três autores (desenhistas ou roteiristas) que você acha um cocô: Jeph Loeb, Scott Lobdell, Dan Abnett
Que autor/obra você gostaria de lançar pela editora Pipoca & Nanquim (não vale algum que já esteja nos planos): Bernie Wrightson, Jim Starlin, John Byrne

Nome: Daniel Lopes
Idade: 32 anos
Formação acadêmica: Economia 
Profissão/Ocupação: Editor
Uma birita (tipo e qual marca): Old Fashioned
Três bons filmes que não são adaptações de quadrinhos, mas que têm tudo a ver com quadrinhos:Star Wars, Quinto Elemento e... (pode ser uma série? Se, sim...) Doctor Who.
Três livros (de ficção) que todo leitor de quadrinhos deveria ler: As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay, Laranja Mecânica e Cem Anos de Solidão.
Três autores de quadrinhos que você admira (não vale os da editora!): Jack Kirby, Taiyo Matsumoto e Laerte.
Os três melhores quadrinhos brasileiros que você leu recentemente:Nóia (Gerlach), Bar (Miolo Frito) e Mensur (Coutinho)
Os três melhores quadrinhos estrangeiros (não vale os da editora!) que você leu recentemente: Condado de Essex, Aqui, O Xerife da Babilônia
Três autores (desenhistas ou roteiristas) que você acha um cocô: Scott Snyder, Brett Booth. 
Que autor/obra você gostaria de lançar pela editora Pipoca & Nanquim (não vale algum que já esteja nos planos): Chris Ware, Moebius

Os cara lançaram Wally Wood!

Especial editora Pipoca & Nanquim: 5 resenhas padrão RAIO

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Semana passada publicamos uma entrevista reveladora com Alexandre Callari e Daniel Lopes do excelente PIPOCA & NANQUIM (canal e site), revelando tudo sobre o empreendimento da nova editora. Nossa relação com o Pipoca é antiga, começamos em períodos muito próximos (desde 2011, creio). Eu e o Pedro Brandt chegamos publicar alguns textos da Raio por lá. Nossos caminhos acabaram se separando (a Raio continua... bem... do tamanho de um tamanduá mirim, e o Pipoca é um dos maiores sites de quadrinhos do Brasil), mas nunca deixamos de admirar o empenho, erudição e paixão pelos quadrinhos desses caras. Confesso que às vezes vemos os vídeos do P&N na TV e realmente comendo pipoca, e admiramos profundamente a iniciativa da editora. Isso significa que vamos apenas pagar pau acriticamente para os lançamentos? Obviamente que não. Isso aqui é Raio Laser. Os quadrinhos do P&N são realmente muito criteriosos e responsa, mas nosso olhar procura ser clínico. Dito isso, seguem cinco resenhas RL para os cinco quadrinhos lançados pela editora do P&N até agora. (CIM)



por Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida, Lima Neto e Ciro I. Marcondes

Espadas e Bruxas - Esteban Maroto (Pipoca & Nanquim, 2017, 260 p.): Quando o assunto é “espada e feitiçaria” nas histórias em quadrinhos, é possível afirmar que o primeiro nome que vem à cabeça dos leitores – especialmente leitores brasileiros – é Conan. A popularidade alcançada pelo adorado bárbaro criado por Robert E. Howard por aqui – e não apenas – é tamanha que acaba por ofuscar outras iniciativas do gênero. E, especialmente na Europa, existe uma vastidão de HQs ambientadas nesse universo ou que, de uma maneira ou outra, compartilham de seus elementos – a exemplo dos clássicos belgas Thorgal e Chninkel, dos mestres da BD Jean Van Hamme (roteiro) e Grzegorz Rosiński (arte), ou O Mercenário, do espanhol Vicente Segrelles. A revista Heavy Metal é outra publicação na qual “espada e feitiçaria” aparecem com frequência. E essas obras deixam claro que dentro desse subgênero cabe muita coisa, diferentes abordagens, temáticas e maneiras de contar histórias. E, nesse sentido, a leitura (ou releitura) das HQs do espanhol Esteban Maroto em Espadas e Bruxas, título inaugural da editora Pipoca & Nanquim, é bastante revelador.

Num dos textos presentes no álbum, assinado por Roy Thomas (roteirista fundamental para o sucesso de Conan), ele relembra da dificuldade de Maroto em se adaptar ao método Marvel de fazer quadrinhos, ou seja, o artista desenha a história a partir de um argumento e, posteriormente, os diálogos e textos são acrescentados. É de se imaginar que o espanhol também encarasse como um desafio o padrão de diagramação das páginas estabelecido pela Marvel, um contraste radical com os layouts imaginativos e fluidos característicos de seu trabalho.

Ainda que Conan, à sua própria maneira, faça parte do ambiente contracultural dos comics da década de 1970, narrativamente falando, suas histórias seguem formatos consagrados. E, pode-se dizer, visualmente são até um tanto quanto caretas em comparação às aventuras psicodélicas materializadas pela tinta de Esteban Maroto.

Se as histórias escritas por Robert E. Howard, Roy Thomas e companhia são elementos-chave, decisivas para a adesão de tantos leitores às HQs do bárbaro cimério, as ilustrações de Maroto são a senha para adentar não apenas em um ambiente onde convivem guerreiros, monstros, sortilégios mágicos e sensualíssimas donzelas em perigo, mas o caminho para se conectar com os recônditos da própria imaginação do leitor. Sua arte, de figuras esguias e insinuantes, desliza em cenários que parecem brotar do ar e desaparecer ao vento, em traços que evocam tanto os entalhes da gravura quanto os rococós art nouveau de Alphonse Mucha e os mistérios em preto e branco do expressionismo no cinema. O que Maroto oferece, propositalmente ou não, é uma viagem onírica, uma visita ao subconsciente, um afago à virilidade em seu estado bruto e juvenil. O que vale aqui é a fantasia enquanto se dá o momento da leitura. Tal qual um sonho.

Espadas e Bruxas compila as histórias dos personagens Wolff, Dax e Korsar, todos eles, bárbaros arquetípicos (e sem personalidade muito marcante) em busca de vingança, redenção ou o amor de uma bela mulher – o erotismo, elemento constante nessas HQs, é de deixar a imaginação fervilhando! Os antagonistas são forças vilanescas e sobrenaturais que só podem ser vencidas pela sagacidade ou pelo aço. Protagonistas à parte, a impressão é que estamos lendo as aventuras de um mesmo personagem. O que falta em originalidade ao roteiro (truncado em alguns momentos, especialmente nas primeiras histórias) é compensado em carisma. Afinal, o que temos ao longo das páginas é escapismo da melhor qualidade, um deleite visual para ler e reler.

Com capa dura, papel couché, textos contextualizando o autor e suas criações, Espadas e Bruxas faz jus ao talento do gigante Esteban Maroto. Com ele, a editora Pipoca & Nanquim chegou ao mercado em grande estilo. (PB)


Cannon– Wallace Wood (Pipoca & Nanquim, 2017, 274 p.): Wallace “Wally” Wood é um desses colossos que atravessaram eras nos quadrinhos. Com seu (mutável) estilo viril e cheio de movimento, ele parece presente em tudo que importa no que tange ao quadrinho americano: fez Spirit, Terry e os Piratas, Weird Science, MAD, Demolidor, entre mil outras coisas. Era um quase típico homem da “war generation”: lutou na grande guerra, era apaixonado por armas e mulheres. Matou-se com um tiro na cabeça em 1981.

Por estes e outros motivos, Wood é espécie de Hemingway dos quadrinhos: um cachorro louco à solta com sua arte vigorosa e implacável. Assim, o lançamento de Cannon – uma de suas HQs de guerra eróticas publicadas em jornais militares para os combatentes do Vietnã nos anos 70 – pelo Pipoca & Nanquim preenche uma das muitas lacunas no que concerne a Wally Wood no Brasil.

Cannon é um catatau de tiras executadas à infalível perfeição de Wood, e ao mesmo tempo um inventário de estereótipos da Guerra Fria e dos anos 70. O personagem-título é uma perfeita “máquina de matar” estilo “macho man” que trabalha como agente para o serviço secreto americano. Dentre as aventuras desse anti-herói estão coisas como sabotar um escroque e comuna governo latino-americano, desbaratar um grupo “terrorista” de hippies drogados (Cannon chega a mandar uma herô só pra “manter as aparências”) ou simplesmente dar umas porradas no marido corno de uma mulher que ele estava dando uns pega.


É tudo extremamente canastra, bem ao gosto exploitation dos 70’s, e não deixa de lembrar uma pornochanchada brazuca (mas com esteroides). De toda maneira, é inevitável pensar esta produção como um excelente modelo da mentalidade de seu tempo: rude, grosseira, ideologizada, polarizada. E ainda muito maneira porque tão autêntica.

Certo, canastrice. Uma HQ como Cannon serve a diversos propósitos: os soldados do Vietnã caíam no onanismo ao olhar as inegáveis curvas das mulheres de Wood (invariavelmente peladas); o fã de exploitation vai encontrar muita trasheira ideológica e sem-noçãozice embaladas num formato barato de quadrinhos (não aqui nessa edição luxuosa, é claro), mas super “cool”; quem gosta de quadrinho de guerra vai se deparar com um contexto interessante de representação da guerra fria, também ilustrado em arte narrativa de primeira; e o historiador/aficionado dos quadrinhos vai ter a oportunidade ver o lápis de Wood em um de seus auges.

Portanto, Cannon é um lançamento coringa, e quem gosta de HQs antigas (tiras especialmente) poderá adentrar num ritmo denso e dinâmico, dificilmente encontrável em tiras dos anos 30 e 40, por exemplo. Wood é famoso por ter predileção por angulações cinemáticas, e a qualidade pura de suas ilustrações é nada menos que espetacular. Poucos desenham explosões, tanques, aviões e até estilhaços com a personalidade e realismo que ele imprime aqui. Cada quadrinho seu parece feito com paixão e esmero. Cada um deles poderia ser emoldurado e fazer bonito.

É claro que alguns podem reclamar do conteúdo inegavelmente machista da HQ. Estamos falando de exploitation + exército americano + 70’s, e o machismo é meio que ingrediente inevitável desta fórmula. Porém, para além disso há aquela ambiguidade paradoxal de um momento em que ideias de progressismo e conservadorismo se alternavam com indistinção.



Como em um filme de Russ Meyer, as mulheres de Wood são violadas e humilhadas, mas ao mesmo tempo assumem as rédeas das tramas em diversas oportunidades, não são indefesas, rivalizam com os heróis “másculos”. A inspiração para estas vixens de metralhadora vem, logicamente, dos mestres e comparsas de Wood como Eisner em Spirit (e a fatale P’Gell) ou Milton Caniff em Steve Canyon (com a empoderada Miss Copper Calhoon). Companhias e influências que, claro, garantem a boa leitura desse gibi. (CIM)

Moby Dick– Chabouté (Pipoca & Nanquim, 2017, 250 p.): Adaptações em quadrinhos de obras originárias de outras mídias são, em geral, mais sem graça que picolé de chuchu. As inúmeras versões de filmes de super-heróis dos anos 80 e 90 – que, para início de conversa, já não eram grande coisa – estão aí para não me deixar mentir. Este tipo de subgênero (HQ de filme de herói) falhou tão fragorosamente que deixou de dar o ar de sua desgraça de uns tempos pra cá. Melhor sorte tiveram as adaptações de livros, que nos deram bons gibis como Cidade de Vidro (de David Mazzucchelli) e a série Parker (de Darwyn Cooke). 

Tais publicações mostraram as possibilidades de complementaridade entre as diferentes formas de expressão artística.  E isso nos leva ao caso em questão: Será que a Moby Dick do francês Chabouté, recém lançada pela editora Pipoca & Nanquim acrescenta algo à leitura do clássico do americano Herman Melville? E será que a pergunta anterior faz algum sentido? Vale a pena comparar obras oriundas de mídias milenares – como a literatura – com aquelas provenientes dos irmãos temporãos – como os quadrinhos? Acho que sim.

Agora, para melhorar as condições de avaliação, vou comparar Chabouté não apenas com a obra-prima de Melville. Para que a coisa não fique muito desigual, também vou comparar gibi com gibi. Então o esquema vai ser o seguinte: cotejarei o Moby Dick de Chabouté com a obra original para, na sequência, analisar a HQ do francês em relação a outra adaptação. Escalei, para isso, ninguém menos que Bill Sienkiewicz (carinhosamente chamado de Bichoquébicho por alguns) e seu Moby Dick de 1990.

Para quem não sabe, o livro de Melville retrata a obsessão de um homem, o capitão Ahab, em sua sede de vingança contra o grande cachalote dos mares, Moby Dick, que lhe arrancara a perna esquerda em um encontro pretérito. Cego de ódio em sua caçada pelo animal, Ahab não se importa em colocar em risco o destino da tripulação do navio baleeiro Pequod, levada a reboque pela loucura de seu líder.

Não que obsessões sejam necessariamente ruins. Chabouté foi cabra macho ao topar adaptar o denso calhamaço de quinhentas páginas. O resultado foi um trabalho de fôlego, que revela determinação semelhante à do capitão do Pequod. Outra escolha arriscada, mas que deu certo, foi a de utilizar apenas o texto original nos balões e recordatórios. Embora por vezes arrastada, a narrativa consegue envolver o leitor na irreversível e fatídica viagem do grupo que embarcou – inconscientemente – no sonho/pesadelo de um único indivíduo.

Talvez por falta de espaço ou para aumentar o dinamismo do gibi, Chabouté praticamente passa em branco pelas partes descritivas do livro. Momento confessional aqui. Nunca me importei muito com baleias, mas depois de ler o romance original, me apaixonei pelo “bichinho”. E isso tem muito a ver com as partes em que Melville, estuda, com riqueza de detalhes, as diferenças entre tipos de baleia, métodos de corte da carne, aproveitamento da banha e do espermacete, condições de trabalho dos baleeiros e etc. Isso fez falta na HQ, que deixou de lado o teor enciclopédico da obra original. E, paradoxalmente, Chabouté dá uma escorregada ao investir numa pegada mais didática que artística em seu Moby Dick. Explico. Um problemas do gibi está em sua abordagem excessivamente fiel ao livro. Está tudo muito certinho e bonitinho. Faltou um pouco de transgressão aqui e acolá. Queria ver mais do DNA do francês ali, mas o sangue está ralinho.

Interessante que algumas das pilastras mestras do original não tenham sido inseridas, embora a HQ pretenda ser uma adaptação bastante respeitosa. Está ausente, por exemplo, o trecho inicial e memorável do livro, a clássica frase “Chame-me Ismael”. Lamentável, também, é a falta de menções ao Cachalote branco como o “Leviatã” dos mares, denominação repetida ad nauseam por Melville para projetar a imagem de poderio e terror incitados pelo personagem-título. E aqui chego ao ponto nevrálgico de minha análise: está ausente, no gibi, a sensação de grandiosidade épica tão disseminada no livro. Aí você poderá dizer: sim, mas são mídias diferentes e nem sempre é possível transmitir as mesmas emoções. Eu poderia até concordar contigo. Mas eis que aparece o Moby Dick de Bill Sienkiewicz para me convencer do contrário.

O gibi do americano tem um quinto das páginas (250) do Moby Dick de Chabouté. É menor, mas, incrivelmente, mais completo. Tem mais ousadia e liberdade, sendo, portanto, mais fiel ao estilo “faca nos dentes” de Melville. A HQ do francês é bem comportada, mas quadradinha. Já a publicação de Sienkiewicz é um prato cheio de formas retilíneas e anguladas, como de costume. É quadrado, mas desce redondo. O mergulho na obsessão de Ahab é mais palpável na construção das páginas e dos recordatórios lisérgicos de Sienkiewicz. Chabouté é muito linear. E obsessões não são lineares.

OK. Chabouté já levou bordoadas a torto e a direito nas comparações acima. Mas o gibi se segura independentemente das outras versões? Com certeza. Como obra única, o Moby Dick de Chabouté nada de braçada. É um grande gibi em vários sentidos. Extenso, imponente e bonito pra chuchu. A edição brasileira está muito bem cuidada e a capa dura preta fica uma beleza na estante.

Não acredito que adaptações devam ser idênticas à fonte inspiradora. Longe disso. Na minha modesta opinião, o negócio é manter-se fiel à essência do original. E esse é o grande pecado de Chabouté. Melville e Sienkiewicz focaram suas obsessões para parir publicações que exalam grandiosidade e pungência. Chabouté, por sua vez, foi mais burocrático e “by the book”. Uma pena. Ao final da leitura das obras dos americanos, senti-me em frangalhos, como que atingido por um vagalhão. Após ler a obra do francês, a sensação estava mais para mergulho em praia sem onda. É gostoso, mas não dá frio na barriga. (MMA)

O Moby Dick de "Bichoquébicho"

Beasts of Burden: Rituais Animais– Jill Thompson e Evan Dorkin (Pipoca & Nanquim, 2017, 186 p): Rituais macabros, satanismo, seitas, mortos-vivos. O luto da morte, almas presas entre dimensões, assassinatos brutais, evisceração, carnificina por toda parte. Estes elementos, que estão tão presentes em Beasts of Burden, podem destoar de uma primeira olhadela no luxuoso livro, que traz cândidas ilustrações da “cult” Jill Thompson (Os Perpétuos) e roteiros sagazes de Evan Dorkin, oriundo do mundo da animação. E é esta alquimia entre os elementos podreira (um horror nada ingênuo) e o aspecto inocente dos protagonistas (cães e gatos que se comunicam entre si), além das páginas pintadas com sutileza (que remetem a pintores como Matisse e Sorolla– e não é coincidência uma dose de “fauvismo” nestas aquarelas de animais) que fazem desta uma HQ bastante especial.

Burden é uma coleção de histórias estilo “clube de investigação”. Neste sentido, pende para o lado juvenil da coisa, indo da tradição que inclui os “Karas” (de Pedro Bandeira – alguém se lembra dessa tosqueira?), passando por Deu a Louca nos Monstros até coisas como Stranger Things. Nostalgia, terror, noites geladas no sofá vendo VHS. O “twist” ocorre quando Dorkin insere estes elementos propriamente escrotos e perturbadores, colocando as primeiras noções “fofas” em cheque.

Ou melhor, choque: anafilático, de preferência. Os autores conseguem extrair o medo com muito método. O grupo de cãezinhos “se envolvendo em altas confusões” é desenvolvido com consistência, rigor de caracterização e consegue nos comover quando o horror inevitavelmente chega, seja via cães mortos na estrada feitos zumbis, via sapos-demônios que engolem suas crias multiplicadas ou humanos satanistas com gatos-bruxos, golens e lobisomens que são seus parceiros. Ah! E há também os ratos fanáticos, “evangélicos”, assustadores também por razões outras que não apenas sua monstruosidade.

A delicadeza levemente psicodélica das pinturas de Thompson e o contraste com este teor sombrio fazem de Burden uma obra propriamente pós-moderna. Ou seja: encontro de rios que são influências de gêneros e épocas distintas, destilados num acabamento extremamente convidativo e profissional (tanto das histórias em si quanto da edição). Coqueluche pra ganhar Eisner, eu diria (coisa que, de fato, Burden ganhou em algumas ocasiões). Poderia reclamar de leve assepsia do material, como se fosse apenas planejado e pouco visceral em sua composição (apesar de sê-lo no grafismo).

Thompson também é muito boa como narradora dentro do quadro, mas um tanto engessada quando passa a trabalhar entre eles. Ou seja: pós-moderno na concepção, mas clássico demais na forma. Enfim, são detalhes de uma análise chata. Certamente não é um produto revolucionário ou que caiba numa antologia muito exigente de quadrinhos, mas enquanto isso que é (“produto”), ratifica a qualidade cinemática (uma adaptação seria bem-vinda – mas do tema e não da forma) e o jeito nostálgico com que lida com suas influências (Stephen King, Neil Gaiman, etc.). Quadrinho pra quem gosta de bicho (daí você faz a avaliação). (CIM)



Um Pequeno Assassinato - Alan Moore e Oscar Zárate (Pipoca & Nanquim, 2017, 116 p.): Ser uma pessoa é uma ação trabalhosa e, muitas vezes, ambígua. Afortunados aqueles que vêem com clareza a linha definidora das suas personalidades e seguem, sem maiores problemas, o caminho que designaram. Para a maioria restante, o futuro é tão nebuloso quanto o passado e toda decisão é capaz de gerar uma crise de personalidade que beira o fatal. A graphic novel Um Pequeno Assassinato, lançamento mais recente da editora Pipoca & Nanquim, é uma marcha áspera, deslumbrante - e um tanto quanto enfadonha - pelas trilhas que o publicitário Timothy Hole se vê forçado a fazer.

Esta HQ é fruto da parceria entre Alan Moore e o quadrinista argentino residente em Londres Oscar Zárate. O trabalho deles em dupla já havia embarcado em terras brasileiras na antologia A Vida Secreta de Londres, organizada por Zárate e publicada pela Veneta em 2016. Escritor e desenhista trabalharam no conto "Eu Continuo Voltando", que fecha a edição. Mas o que temos nesta belíssima graphic novel - publicada com o já famoso esmero que o pessoal do Pipoca & Nanquim dedica a seu catálogo - é o primeiro fruto do encontro dos dois.

Na graphic conhecemos Timothy Hole, um publicitário britânico residente em Nova York que se encontra num desses momentos de decisão nebulosos da vida, quando tentar se esforçar para dar forma ao futuro acaba trazendo à tona julgamentos pessoais sobre ações tomadas no passado. No caso de Hole, seu recente sucesso na publicidade lhe rendeu a conta de um renomado refrigerante que intenciona entrar no recém aberto mercado russo.

A história se passa no final dos anos 80, e o dilema de Hole termina por servir como uma grande metáfora para a situação do ocidente na virada da década - um momento marcado pela morte de grandes utopias mundiais e pela presença cada vez mais encorpada de um liberalismo agressivo que encontra na ex-primeira ministra Margaret Thatcher seu símbolo mais proeminente. O peso desse contexto se faz sentir em toda a narrativa: nos recordatórios carregados de Moore, cheios de um cínico ranço yuppie que constrói um Timothy Hole estrategicamente despercebido de suas decisões duvidosas, e também no colorido sufocante e febril das tintas de Zárate.

Voltando a Hole, como resultado de sua paranoia em torno de como agir diante deste desafio profissional, o publicitário começa a perceber à sua volta a presença de um garoto, que o persegue em seu trajeto de Nova York a Londres e de Londres à sua cidade natal de Shefield (a cidade vermelha, como é conhecida por sua população tradicionalmente comunista). A paranoia asfixiante da história também se espalha pelo tempo, em uma narrativa fragmentada que remonta o percurso de Hole desde 1954 até 1989.

A identidade do garoto não chega a ser um mistério, muito pelo contrário. Um Pequeno Assassinato não é um thriller que gira em torno de seus mistérios. Trata-se de uma narrativa simbólica que, embora visualmente instigante, vai derrapar no platonismo de uma premissa enfadonha e um psicologismo piegas. É inegável que os autores tecem uma obra de peso, que assumiu corajosamente a pretensão de analisar a morte do século XX, porém esta mesma pretensão dá uma consistência lamacenta e carregada que parece se esforçar em dar uma significância por demais dramática para um dilema pessoal.

Sendo a graphic novel um dos primeiros trabalho de Moore após construir sua carreira com os super-heróis, e auxiliado por Zárate a produzir uma obra irrestritamente adulta, a impressão que fica é a de que o melodrama típico dos comics transformou uma narrativa mundana (em comparação com a fantasia desvairada dos super-heróis) em uma inflamada e pomposa saga. Se o contexto for deixado de lado, o embate de Hole com sua situação perde muito de sua força.

Apesar disso, não se pode dizer que Um Pequeno Assassinatoé uma obra sem valor. A construção da narrativa e da ambientação é primorosa. Embora um tanto maniqueístas, as reflexões do personagem sobre suas ações reverberam com bastante naturalidade e podem oferecer exercício expiatório muito bem-vindo para muitos na mesma situação. A edição brasileira é um primor gráfico com uma atenção a detalhes na adaptação da arte e dos textos que salta aos olhos. Outro destaque deve ser dado ainda ao ambiente publicitário, emprego-símbolo da juventude yuppie dos anos 80. Zárate, como um ex-empregado no ramo da propaganda (um dado autobiográfico importante, já que o roteiro foi escrito a quatro mãos) formou uma sinergia muito rica e verossímil com o texto de Alan Moore.

Se por um lado o roteirista inglês expõe, em fragmentos de conversas casuais, o processo publicitário de “assassinar” a arte colocando-a a favor do dinheiro (transformar a cena da escadaria de Odessa em campanha para carros de bebê ou buscar em Lolita de Nabokov ideias para vender refrigerante), por outro vemos a expressiva arte de Zárate produzir uma verdadeira carta de amor ao estilo de cartazistas milaneses do início do sec. XX, especialmente o brilhante artista Leonetto Cappiello. Estes cartazes, as primeiras peças publicitárias produzidas em massa, marcavam o ponto de cisma em que arte e ofício se separam. A partir daí, arte e publicidade passam a conviver em uma tumultuada relação simbiótica na qual as histórias em quadrinhos vão ser apenas uma das suas muitas manifestações. Sem maniqueísmos e sem assassinatos. (LN)

A arte publicitária de Leonetto Cappiello

Polícia para quem precisa - Art Ops e o marasmo da Vertigo

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por Lima Neto

Algumas vezes é difícil entender a razão de sucesso de determinados títulos. Às vezes essa dificuldade simplesmente expõe um mal gosto generalizado disfarçado de estilo ou nostalgia. Em outros momentos, porém, como no caso do Quadrinho ArtOps, lançamento do selo Vertigo e publicado no Brasil pela Panini, a incongruência entre as indicações elogiosas e a qualidade do material descredita ainda mais o mercado dos comics norte-americanos. Mesmo assim, em sua narrativa desgastada e seu discurso rasteiro sobre arte, ArtOps acidentalmente levanta alguns questionamentos bem urgentes sobre arte e liberdade de expressão. O volume, que encaderna as primeiras cinco edições da revista norte-americana, tem o roteiro de Shaun Simon e conta com a arte sempre competente (embora um tanto sem inspiração na edição em questão) de Michael Allred auxiliado pelo traço de Matt Brundage e as cores da costumeira parceira e esposa de Allred, Laura.

O roteirista Shaun Simon faz parte de uma geração que foi diretamente afetada pelo desenvolvimento do quadrinho para “leitores maduros” nas grandes editoras estadunidenses, processo este que culminou na criação do selo Vertigo e que encontrou na editora Karen Berger sua ponta de lança. Não sem motivo, o direcionamento gráfico de seus títulos da DarkHorse - Neverboy e The Fabulous Lifes of the Killjoys - seguem muito próximos ao estilo visual do selo da DC. A própria DarkHorse abriu suas portas para a mentora editorial do “mature reader” e criou o Berger Books, selo de quadrinhos editados por Berger. Em seu primeiro trabalho para a Vertigo, entretanto, Simon desaponta com uma HQ recheada de anarquismo de boutique e um discurso superficial sobre Arte – teoricamente a matéria prima conceitual de seu roteiro - que envergonha até os recentes guardiões dos bons costumes que inflamam a discussão sobre censura na arte brasileira.


Em ArtOps, título que faz trocadilho com o termo OpArt - tendência artística dos anos 60 que buscava explorar os conteúdos plásticos da imagem de maneira a dialogar com os limites e falibilidades da visão humana - vamos conhecer Reginald “Reggie” Jones, uma espécie de Joe Strummer embrulhado em um emaranhado de clichês de personagens típicos da Vertigo, parte Shade The Changing Man, parte Dane McGowan de Invisibles. Reggie é o único filho da líder do grupo de operações especiais que dá nome à revista e prefere viver no submundo do boxe e nos guetos punk de Nova York a trabalhar para a mãe.

ArtOps faz parte de uma safra de narrativas em quadrinhos que vão imaginar forças policiais para áreas do cotidiano que costumeiramente não possuem um sistema de vigilância, como é o caso de DPF - Departamento de Polícia da Física, de Simon Oliver e Robbie Rodriguez e publicada também na Vertigo. Como resultado, vemos a multiplicação de séries policiais com temas bizarros, uma influência inegável da saudosa Top Ten de Alan Moore e Gene Ha, publicada pelo selo ABC Comics, pertencente à DC.

Nessa perspectiva, ArtOps acompanha um Reggie que se vê obrigado a entrar para a corporação da mãe depois que a equipe inteira desaparece. O herói relutante se junta a um personagem de quadrinhos vivo, uma espécie de ser de nanquim também reminiscente do herói satírico Splash Branningan da ABC; uma agente sobrevivente que escapou do desaparecimento por estar presa fora do tempo; e uma garota qualquer que encontram pelo meio do caminho (sim, esta é uma descrição precisa). Juntos, devem proteger a própria Mona Lisa del Giocondo, retirada do quadro em que vive e solta no mundo real. 

Acidentalmente, a brincadeira pueril concebida por Shaun Simon de fato suscita algumas reflexões interessantes sobre as interconexões entre artes plásticas e histórias em quadrinhos, alta e baixa culturas, liberdade e fruição estética. Mas a superficialidade da abordagem derruba qualquer pretensão maior. Desde que o primeiro jornal publicou a primeira tira de linhas rabiscadas em milhares de páginas impressas no final do século XIX, as artes plásticas, sobretudo a pintura, já estavam processando em seus discursos visuais a virada pictórica que estava por vir e que culmina na Pop Art. Explorar as possibilidades estéticas, poéticas e até mesmo éticas dessas tecnologias de reprodução são características desse movimento. De especial interesse para esse texto está o trabalho de Roy Lichtenstein, que em 1961 exibiu seu quadro Look, Mickey, uma espécie de aula de anatomia da imagem impressa de quadrinhos. O que Lichtenstein representa em suas pinturas não será tanto as reproduções de quadros de comics “anônimos”, mas sim as linhas propositalmente sintéticas do processo de reprodução; as suas cores primárias e saturadas; e o prato principal - a retícula gráfica, sinônimo duplo que passa a significar a Pop Art para o senso comum e que vai simbolizar a imagem da HQ por contiguidade. É esta retícula que adorna a capa da edição de ArtOps.

Mas não se enganem, o reticulado da capa só expõe a escolha fácil dos autores da revista por intersecções óbvias entre quadrinhos e arte. Essa banalização só teria uma única qualidade redentora, caso fosse intencional, a de vingar uma velha mácula contra as HQ's praticada por artistas como Lichtenstein. Em ArtOps, a Arte finalmente vai receber o tratamento desdenhoso com que no passado tratou os quadrinhos. Se para Lichtenstein as imagens que analisava eram rabiscos anônimos livres de autoria ou intenção – e, principalmente, livres da divisão dos milhares de dólares da venda de suas obras com os autores originais dos desenhos que copiava - em ArtOps a mão do pintor também vai ser um detalhe desprezível.

O Davi de Michelangelo torna-se marco sem vínculo com um criador. A Mona Lisa de Leonardo da Vinci, esvaziada de sentido, vai ser epítome do lugar comum na pintura ocidental (mas poderíamos chamar aqui de pintura apenas, pois duvido muito que os autores estejam cientes de que existe arte produzida fora destes cânones mais evidentes, quanto mais além das fronteiras europeias). Da mesma maneira que uma criança acredita que o que lê na página de um gibi é o Super-Homem, e não uma narrativa construída por pessoas para tal finalidade, assim vão ser encaradas as obras que rodeiam a história em ArtOps: imagens surgidas por geração espontânea que de maneira alguma pertencem a algum discurso ou pesquisa artística em que estejam inseridos a não ser o mais pueril conceito de “história da arte”. Como bem disse um amigo leitor, “é tudo uma desculpa para desenhar a Monalisa de moicano”.

Esta maneira anárquica de entender os cânones da arte poderia guardar um interessante potencial de questionamentos: as imagens ainda imaginam quando se tornam cânone, signos inertes que caracterizam um determinado discurso sobre a arte? Tratar estas imagens como se tivessem atingido uma vida própria, uma significação maior do que o contexto em que estão inseridas para daí subvertê-las em outros códigos me parece uma ideia rica em possibilidades, mas, como disse no início, as boas ideias da revista são acidentais demais para serem devidamente trabalhadas. Isso porque, diferente de uma HQ como DPF, a arte não é um lugar de leis objetivas que ao serem quebradas geram um efeito indesejado. Arte é o espaço criativo cuja riqueza reside na exploração dos “virem a ser” das coisas tensionadas pelo seu presente e suas possibilidades. É nesse sentido que ArtOps revela sua face mais frustrante e careta. Qualquer anarquia que apareça na edição não passa de um aceno aos saudosistas leitores da Vertigo. Porque, como policiais que são, a ArtOps apenas se interessa em manter o status quo e salvar as “belas artes” das artes “feias".

Quando a história se desenrola, vemos que tudo pode ser resumido a algo como “bonitinhos do bem, responsáveis por manter os cânones da arte, versus feiosos do mal, que distorcem os quadros e esculturas como vingança contra um mundo que não os aceita como tal”. A vilã é uma espécie de pintura cubista, como se uma das damas da ilustre pintura Demoiselles d’Avignon saísse do quadro e fosse partilhar sua aparência com o restante do mundo. Não há no gibi qualquer sinal que indique que os autores da revista estejam a par de como a pintura cubista colocava em xeque a representação como construção buscando desvincular a pintura da visão naturalista da imagem como cópia da realidade. Tampouco não vemos aceno algum para o fato de a estética da personagem representar a estratégia pictórica de expor pontos de vistas diferentes de um objeto sobre uma superfície única - uma das diretrizes do movimento de Picasso e Braque. Pelo contrário, o que vemos em ArtOpsé o mesmo senso comum que se encontra tão presente no dia a dia real e virtual, e que no Brasil vai tomar contornos preocupantes desabando na criação de verdadeiros “policiais da arte”.

Em ArtOps, as pichações são monstros assassinos que arrancam braços e sequestram crianças. A beleza clássica do nu de Davié punida com a deformação de seu corpo tal qual um Joseph Merrick. O célebre Grito de Edvard Munch é reduzido a uma vilania infantil de quem não tem maturidade para lidar com o tipo de sentimento que o quadro suscita. A ambiguidade do sorriso da Gioconda de Da Vinci é solapada pela criação de uma versão masculina que, forte e brutal, vai salva-la para a obrigar a viver ao seu lado. Os próprios agentes, apesar de serem representados como rock stars, são tacanhos, caretas e reprimidos.

O personagem Reggie tem a pretensão de ser uma metáfora: o homem que tem a arte dentro de si mas a renega, tem medo do que pode acontecer caso a liberte. Quando seu medo se realiza, Reggie se transforma num quadro de Jackson Pollock ambulante. E neste clima recalcado, a libertação de Reggie é recebida como um descontrole, como uma arte selvagem que não tem valor e deve ser controlada. As semelhanças com a maneira com que as arte plásticas vêm sendo encaradas no Brasil aponta para um ponto em comum entre os autores (pelo menos seu escritor) e a massa de “policiais da arte” que tomam o país – a incompreensão de que a Arte, essa de A maiúsculo, é um processo acumulado de pesquisa estética que se espalha por infindáveis caminhos, mas sem a intenção de chegar a lugar algum. A arte, diferente da ciência, não quer resolver, mas sim propor problemas. A Vertigo em seu início sabia disso. A própria noção de um “policiamento” artístico mostra uma incompreensão fundamental que é conceber a arte sem o espaço da liberdade que ela exige.

Termino esta resenha com a pergunta investigativa: quem lucra com a proliferação de policiais das coisas? Seria esta proliferação de títulos uma manifestação da sensação de insegurança que cresce nas classes intermediárias da sociedade, e de sua necessidade de controlar o ambiente em volta até em seus aspectos mais abstratos? Seja o que for, a cada dia aparecem mais produtos culturais que, em ambiguidade disfarçada, reforçam uma vontade difusa de entregar as liberdades em nome da segurança. Geralmente estes produtos são vendidos com um verniz anárquico que se quebra na primeira inspeção, ou então são embrulhados numa nostalgia vazia que só simboliza um passado mais seguro.

Em um presente marcado por uma instabilidade e medo constantes gerados por uma economia mundial que não parece mais ser capaz de se sustentar, alguns títulos da Vertigo parecem revelar o real estado cadavérico de uma indústria que já se mostrou renovadora, mas que agora é incapaz de arriscar na publicação de propostas realmente autorais. Com ArtOps, vemos uma Vertigo que não causa mais vertigem alguma, mas que promete segurança e satisfação enquanto pagarem bem por isso.

HQ em um quadro: "Pateta Repórter" homenageia Chaplin, por Teresa Radice e Stefano Turconi

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Cena em P&B de O Garoto na visão da Disney contemporânea (Teresa Radice, Stefano Turconi, 2009): A série Pateta Repórter, publicada pela Disney entre 2009-2015 e que recebeu bela edição definitiva pela Abril recentemente, pode não ser das leituras mais profundas, mas é um baita projeto interessante de reconstituição histórica e recontextualização de personagens já cansados de décadas e décadas de repaginações. Ilustrada com toda simpatia pelo italiano Stefano Turconi e escrita a partir de bem feita pesquisa pela também italiana Teresa Radice, estes quadrinhos colocam o abobalhado personagem na pele de um repórter estilo "Forrest Gump" (faz tudo errado, mas dá tudo certo) numa Nova York do new deal nos anos 30, tudo estilizado num romântico ambiente de profissões intrépidas (algumas quase extintas, como o jornalismo, vide manchete "Neymar volta a curtir uma foto no Instagram de Bruna Marquezine"), cafés charmosos, calhambeques, trens e chapéus, muitos chapéus. Não é incomum encontrarmos citações a manifestações maneiras da época, como o swing jazz de Louis Armstrong e Benny Goodman, ou o lendário jogador de beisebol Babe Ruth. Vale destacar também e predileção de Radice por colocar personagens femininas (como Minnie, melhor amiga do Pateta) em evidência, deixando Mickey como uma aparição meio fantasma em cada história (ele nunca tem tempo pra nada).

Em certo momento da saga, chegou a vez de Charles Chaplin ser homenageado, e é o que vemos nos dois quadros selecionados acima. Quem está familiarizado com cinema mudo vai reconhecer uma homenagem/paródia a O Garoto (The Kid, 1921), primeiro longa-metragem de Chaplin, que de certa maneira consolidou a carreira que ele vinha construindo desde 1914 em mais de 60 curtas-metragens realizados por pequenos estúdios muito populares na época, como Keystone, Essaney e Mutual. Pode-se dizer sem medo de errar que Chaplin já era uma unanimidade (e talvez a maior estrela de cinema do mundo) antes mesmo que filmasse seu primeiro longa. A questão é: tentando homenagear Chaplin, a dupla Radice/Turconi troca os pés pelas mãos em alguns quesitos (perdoáveis, claro. É apenas um gibi do Pateta), não compreendendo completamente a influência de Chaplin e ao mesmo tempo situando-o em uma época que não foi propriamente a sua.



Explico, claro: a história em questão, "O Guarda-Chuva, o Chapéu e o Garoto", conta como Minnie vai receber o grande cineasta em Nova York para que ele realize uma filmagem (O Garoto, obviamente, não foi filmado em NY, e sim na periferia de Los Angeles, nos primórdios de Hollywood). Ao mesmo tempo, o vigarista cego Biagio (um papagaio que faz parte da gangue de trambiqueiros de Bafo de Onça) vai receber seu sobrinho, um simpático mini-meliante chamado Jack, no porto de NY. Durante a sequência de chegada (que representa bem o caos que devia ser esse porto no momento em que navios vinham da Europa), ocorre uma confusão e Jack embolsa o famoso chapéu coco de Chaplin, Pateta fica com o guarda-chuva de Biagio, etc. O plot realmente não importa muito. Apenas ressalte-se que o que se segue é uma tentativa de emular o estilo "slapstick" - comédia física cheia de algazarra e tons de absurdo, que poderíamos dizer ter sido inventada por Mack Sennet, o mestre de Chaplin que o acolheu quando ele chegou da Inglaterra sem um tostão furado, com uma trupe de teatro, em 1914. A história segue com perseguições burlescas por diversos cenários e situações engraçadas e ridículas. O slapstick é um gênero consolidado nos anos 10, e O Garoto, neste sentido, está muito mais próximo desta década do que do cinema dos anos 30.

Repito que não quero pegar pesado em uma justa homenagem a Chaplin num gibi infantil, mas gostaria de ressaltar algumas curiosidades históricas em relação ao grande cineasta que o gibi subverte, adapta ou simplesmente ignora:

1 - A ambientação da época: é comum as pessoas pensarem que os anos 20 e 30 são a mesma coisa, mas a verdade é que são tão diferentes quanto os anos 80 são dos 70, e por aí vai. Pateta Repórter se situa nos anos 30, portanto após o crack da bolsa de NY e dentro de um contexto de muita pobreza e desemprego nos EUA, o que fez esta década se tornar culturalmente, economicamente e cinematograficamente muito diferente da anterior. Em primeiro lugar, nos anos 30 o cinema já é sonoro e foi em poucos anos que se realizou uma transição completa. Mesmo que Chaplin (um resistente) tenha feito alguns de seus melhores filmes, como Luzes da Cidade e Tempos Modernos, nos anos 30, qualquer um minimamente informado sabe que, se estamos falando dos anos de glória do cinema mudo, estamos falando das décadas de 10 e 20. O Garoto, como vimos, foi lançado em 1921, e Chaplin não era um "velho mestre" (como mostrado no gibi), mas sim um iniciante em longas-metragens. É verdade que este filme é fundamental para delinear a estilística chapliniana, misturado o slapstick com melodrama, mas isso já havia sido ensaiado em curtas como O Vagabundo, que Chaplin filmou pela Essaney ainda em 1915. Portanto, para não deixar erros: anos 20 são roaring twenties, era do dixieland, das flappers, da euforia pós primeira guerra, muito dinheiro gasto em crédito, lei seca, junk spots, etc. E especialmente: o momento em que as maiores obras-primas do cinema mudo são produzidas. Anos 30 são de reconstrução dos EUA, Roosevelt, new deal, mulheres voltando para dentro de casa e o auge do cinema sonoro de gênero, como musicais e faroestes. Neste sentido, O Garoto aparece aqui como forçação de barra e uma indução à confusão entre épocas bastante distintas.

2 - O cinema representado: em certo momento da historia, Jack e Pateta estão se perseguindo e entram num estúdio de cinema. É a oportunidade que os autores têm de fazer sua homenagem a todo o (digamos) "cinema antigo", misturando referências e épocas. Vejamos: primeiro eles passam pelas filmagens de um western. Ok, gênero que praticamente funda o cinema como um todo e atravessou bem a fase silenciosa (vide The Great Train Robbery, filmes de William S. Hart, Tom Mix, experimentos de Griffith, etc.). Depois, um filme de piratas, também um gênero mudo estrondoso, sendo o mais famoso The Black Pirate, com Douglas Fairbanks, de 1926. No terceiro quadro temos um filme de ciclo arturiano, ou ao menos medieval, que remete aos vários filmes de Cruzadas (como o clássico italiano de 1918) e também a filmes de Robin Hood, como o clássico de 22 também com Fairbanks (o desenho de Radice no quadrinho, no entanto, emula mais a versão de 38 com Errol Flynn, o que condiziria mais com a época do gibi). Depois, na página seguinte, a coisa começa a ficar meio torta. O sci-fi no primeiro quadro só pode remeter ao "serial" de Flash Gordon de 1936. O famoso quadrinho de Alex Raymond saiu em 1934. Portanto, nem um nem outro têm qualquer coisa a ver com cinema mudo. O quadro seguinte mostra Pateta topando com fantasias de Drácula, Frankenstein e outros monstros: clara referência aos clássicos de Universal dos anos 30 (Drácula de Todd Browning, Frankenstein de James Whale e o Lobisomem com Lon Chaney Jr, que já é dos anos 40). Por fim, King Kong, que é de 1933 e epítome da Hollywood dos anos 30. Portanto, referência bacanas, cruzadas, entre anos 20 e 30, mas ainda sinto Chaplin um tanto deslocado nesse contexto.



3 - O garoto: Jack, o pequeno papagaio, é referência direta, obviamente, a Jackie Coogan, uma das primeiras estrelas mirins de Hollywood, que contracenou com Chaplin no filme de 1921. Ao contrário do que se pensa em algumas lendas urbanas, Coogan não morreu de overdose de heroína, e sim teve uma carreira decente no cinema até falecer de causas naturais nos anos 80. Além de ter feito "o garoto", ele também ficou famoso por lutar pelos direitos das crianças que atuam e por ter feito o tio Fester na série original da Família Adams.

4 - Chaplin gosta de textão: em certo momento da história, quando Chaplin finalmente vai apresentar seu filme ao público, ele profere um discurso (meio longo) antes, o que faz o Pateta comentar o seguinte: "Para um gênio do cinema mudo, o mestre fala um bocado!" De fato, Chaplin, ao fazer seu primeiro filme falado (O Grande Ditador, 1940), resolve descontar as décadas de mutismo num discurso enorme no final da história, uma das falas mais emblemáticas da história do cinema. Ele teve um atraso de 13 anos para aderir ao cinema falado, mas, quando finalmente o fez, marcou também a nova tecnologia. E curtia um textão mesmo: suas entrevistas são lendárias e polêmicas. Sua autobiografia é um delicioso calhamaço de 500 páginas.

Os dois quadros que selecionei mostram, em P&B puxado pra sépia, a agrura de Carlitos criando Jack em meio à pobreza (o que me lembra a notória frase do cineasta François Truffaut: "Quando Chaplin entrar na Keystone para rodar ‘filmes de perseguição’, correrá mais rápido e mais longe que seus colegas do music-hall, pois, embora não fosse o primeiro cineasta a descrever a fome, foi o único a conhecê-la") e a afetividade entre os dois personagens. Foi a maneira definitiva com que Radice e Turconi cristalizaram sua homenagem: plasmando o cinema em quadrinho. Bela e fofa homenagem, diga-se. Esses detalhes e imprecisões relatados são coisa de gente chata, não se acanhem. Coisa de doente. (CIM)

MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 1

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Fim de ano. Coisa boa. Como todo ano do século XXI tende a ser meio lazarento, não custa comemorar, mesmo que de graça, a chegada de mais uma vã e febril esperança. Porém, ao menos no que diz respeito aos quadrinhos, foi uma safra e tanto. Como vocês bem devem saber, nossas listas são de leituras de qualquer época realizadas em 2017. Daí você ver nesta lista coisas que vão desde os anos 20 até o zênite do quadrinho brazuca lançado no ano que termina agora. E sem dúvida 2017 marcará nossa produção com um punhado de obras-mestras. Por conta de minha coluna no Metropoles, li caminhões atolados de quadrinhos por toda parte. Tanto que deixei coisas como Floyd Gottfredson, Claudio Nizzi, Carl Barks, Frank Miller e outras leituras maravilhosas que fiz, de fora. Sobraram estes 16 campeões. Para evitar redundância, apenas escrevi resenhas inéditas para os que não haviam aparecido na Raio Laser ou na ZIP. Pros outros, links pros textos originais. 

A partir da semana que vem, os selecionados dos outros colaboradores da Raio.

A lista não obedece a qualquer ordem racional e o número "16"é totalmente aleatório.

Por favor, caro leitor, coloque suas melhores leituras nos comentários e nas redes sociais. Compartilhe! (CIM)

por Ciro Inácio Marcondes


01 - STEVE CANYON 1– Milton Caniff (L&PM, 1990 [1947]): Para um fã de quadrinhos atual bastante dedicado, Steve Canyon é o exemplo que Umberto Eco utiliza em seu Apocalípticos e Integrados para indicar como a linguagem desta forma de expressão pode se descortinar aos poucos numa interação semiótica entre imagens e palavras. Afinal, nas primeiras tiras deste herói estão lá as palavras de todos que o cumprimentam, sem que o leitor pudesse visualizar a figura de Steve, "apreendido" por outros meios de linguagem antes de aparecer efetivamente. 

Encarar uma sequência longa de tiras realizadas por Milton Caniff nos anos 40, no entanto, é uma tarefa mais dura que um simples dever de casa universitário. Realizadas após 13 anos em que o grande mestre de Will Eisner se dedicou ao seu sucesso de aventura de guerra Terry e os Piratas, as tiras do início de Steve Canyon, muito bem representado nesta preciosa edição da L&PM, são testemunha dos quadrinhos de uma época, de um dos maiores autores desta época e, por fim, desta época ela mesma. 

Se Terry levava, de maneira um pouco mais juvenil, seus protagonistas a aventuras marítimas no oriente, Canyon, já no contexto do pós-guerra, procurava refletir sobre o sentimento triunfante (por vezes agridoce) que se apoderou dos americanos após a vitória no Japão. Nestas primeiras tiras, Steve é um ex-piloto da força aérea que agora aluga seu avião comercialmente, envolvendo-se, eventualmente, com bandidos, escroques e femmes fatales que querem se aproveitar de seus serviços. 

O protagonista é um tipo "escoteiro" venturoso, cheio de virtudes, galã sedutor que guarda semelhança com astros de Hollywood da época, como Gary Cooper ou Cary Grant. O cinema dos anos 40, famoso pela abordagem noir (gângsters, detetives, violência urbana, pessimismo e estilização estética), inclusive, é frequentemente citado, direta ou indiretamente, e aventuras de guerra e aviação acabam se misturando a tramas sombrias, sórdidas. Há um quê de A Morte num Beijo em cada quadro desse começo de Steve Canyon, um tremendo flagrante do que é conhecer o contexto da arte dos anos 40.

Porém, acima de tudo se destaca a arte e o estilo de Caniff, um dos gigantes da era de ouro, um daqueles muito poucos que antecipam a modernidade nos quadrinhos. Além dos temas, adultos e amadurecidos, o caráter semi-literário do texto - cada quadro é preenchido ao menos em sua metade por textos carregados de informações preciosas para as tiras, além de falas memoráveis, gírias e outras curiosidades – mostra o quão difícil era a rotina do autor de uma daily strip continuada. Histórias longas, com tramas complexas cheias de reviravoltas, eram narradas a conta-gotas, dia após dia, e estratégias interessantes para fisgar o leitor faziam da estrutura de linguagem destes quadrinhos algo imprevisível e ousado. Compreende-se mais claramente o papel de tanto texto (era preciso otimizar a história) e ao mesmo tempo a riqueza visual (profundidade de campo, figurinos detalhados, rostos caricaturizados) destes quadrinhos. Uma pena que a edição da L&PM, já um tanto velhinha, reduza tanto o tamanho das tiras (quase como thumbnails), diminuindo o impacto da arte deste gênio absoluto da nona arte.

02 - RICHARD STARK'S PARKER – BOOK ONE: THE HUNTER– Darwin Cook (IDW Publishing, 2009): Esta exímia adaptação da série de romances modernos de crimes pulp baseados no famoso "cold-blooded sonofabitch" Parker se inicia com uma sequência em quadrinhos digna de antologia. Em doze impassíveis páginas que remetem à primeira aparição de Steve Canyon na famosa tira de Milton Caniff (ler resenha acima), Darwin Cook vai fazendo seu personagem atravessar a cidade de NY com seu jeito hard-boiled, sem mostrar seu rosto (em planos subjetivos no estilo noir de Prisioneiro do Passado), pulando catracas brutalmente, xingando pessoas na rua, cuspindo no chão, soltando baforadas de cigarro (sem filtro!) na cara da garçonete, e por fim falsificando uma carteira de motorista. 

Apenas na página 20 é que visualizamos seu rosto embrutecido no espelho e já percebemos de cara: estamos diante da face da psicopatia. Parker é adaptado do autor de best-sellers sobre crimes Richard Stark (pseudônimo para Donald Westlake), e, por mais que sejam livros escritos nos anos 60, eles resguardam a estilística soturna de um Raymond Chandler, porém assombrada por uma violência quase típica da Nova Hollywood. Seria como um encontro de Sam Peckinpah com Dashiel Hammet. 

A adaptação de Cook (lamentavelmente recém-falecido) é um exemplo sobre como se transpor ideário, ambientação e motivações de uma obra em uma mídia para outra. Esta sequência muda inicial é exemplo perfeito de declaração de intencionalidade, de força estética e perspicácia artística. The Hunter, primeiro volume das quatro adaptações que o quadrinista fez de Stark, é uma história de vingança implacável e psicopática no último - motivo o suficiente para agradar a leitores de coração frio. Porém, é no aproveitamento maduro (em quadrinhos) do texto de Stark - com diversas soluções visuais espetaculares e cinematográficas - que Cook efetivamente conquista os leitores ávidos por uma obra em quadrinhos incontestável. E esta verdade é tão pura quanto ver Parker assassinando seus oponentes com suas próprias mãos nuas.


03 - MENSUR– Rafael Coutinho (Cia. Das Letras, 2017): Depois de sete anos trabalhando neste indefectível romance gráfico, Coutinho nos entregou algo que desestrutura valores sobre modernidade, trabalho, obsessão e masculinidade. Leia a crítica completa aqui.

04 - ANGOLA JANGA– Marcelo D’Salete (Veneta, 2017): Este é o mais ambicioso trabalho em quadrinhos brasileiro de 2017. Épico, submetido a um minucioso escrutínio histórico e poderoso tanto em linguagem quanto em mensagem, não pode passar batido no cenário cultural brasileiro contemporâneo. Leia a crítica completa aqui.

05 - THE BLACK PANTHER – EPIC COLLECTION – PANTHER’S RAGE (O Pantera Negra – A Fúria da Pantera) – Don McGregor, Rick Buckler e Billy Graham (Marvel, 2016 [1966-1976]): Versão completa do arco mais ambicioso do Pantera Negra. Destaque para o apelo shakespeariano do texto de McGregor, e para a intensidade das tramas, puro “Marvel 70’s”. Leia a crítica completa aqui.


06 - JUDGE DREDD – THE COMPLETE CASE FILES 01– Vários artistas (2000 AD, 2012/2014 [1977/1978]): 1977: ano completamente auspicioso para a criação de um clássico cyberpunk de contracultura, capaz de horrorizar cabeças mais frágeis mesmo no apocalipse que vivemos hoje, com Black Mirror e o escambau. Este primeiro volume das obras completas de Judge Dredd é exemplo perfeito de como um criador como John Wagner, associado a um time brutal de outros escritores e artistas, elevou uma ideia de iconoclastia tão típica do início da era Thatcher na Inglaterra ao status de epítome do pensamento pulp em quadrinhos sobre o apocalipse. 

Como sabemos, em Judge Dredd o personagem envelhece com o passar dos anos, o que torna este encadernado um “Ano 1” dos mais voluntariosos das HQs porque, bem, este é realmente o primeiro ano de aventuras do anti-herói. Aqui há uma panaceia de degenerações e deformações distópicas: hordas de gangues de punks truculentos, assaltos a ambulâncias para roubar procedimentos de cirurgia plástica, plantas carnívoras falantes, reality shows com a morte como consequência, rebelião de robôs nazistas. Este último arco, aliás, dos androides “Call-Me-Kenneth” e “Heavy Metal Kid” (uma das possíveis origens para o termo que elucida todo o rock pesado), é clássico e impagável: a “singularidade” vista da maneira mais crua e ogra possível (basicamente robôs gigantes e carniceiros, que odeiam humanos, destruindo tudo pela frente num complô irracional e beligerante). Porém, nada se compara à estultice autoritária do próprio Juiz Dredd, capaz de matar por uma multa de trânsito, capaz de prender um espectador por ver um canal de TV ilegal. 


O que escritores tarimbados como Wagner, Pat Mills e Malcolm Shaw querem dizer com a criação de algo desproporcional e sem controle como Mega-City One é que, no limiar de todo caos, inevitavelmente se apregoa o fascismo como solução fácil para restabelecer (apenas) uma ilusão de ordem. Na arte, nada menos que monstros como Carlos Ezquerra, Brian Bolland e Ian Gibson dão imaginário a este compêndio de horror cyberpunk e imoral que fez de 2000 AD uma revista realmente tão à frente do seu tempo. Anarchy in Mega-City One!  

07 - CANNON– Wallace Wood (Pipoca & Nanquim, 2017 [1969]: Wally Wood no auge! Só isso seria o suficiente para venerar esta edição, mas além disso há ótimas histórias de espionagem, canastrice e erotismo saindo aos borbotões. Leia a crítica completa aqui.


08 - AQUI– Richard McGuire (Cia. Das Letras, 2017 [2014]): O experimento expandido de McGuire, levando a linguagem dos quadrinhos ao limite, é instantânea obra-prima e continuará sendo estudado por muitos e muitos anos. Leia a crítica completa aqui.  

09 - TUNGSTÊNIO– Marcello Quintanilha (Veneta, 2014): Como fugir, na análise da obra de Quintanilha, a clichês como “radiografia da cultura brasileira”, ou “desperta o universal por meio do local”? Sim, estou atrasado na leitura deste romance gráfico vitorioso praticamente em tudo que aborda, em cada elemento trabalhado, em cada nuance pensada, seja ela visual ou temática. Um breve, porém significativo, contato com o autor no II Encontro Entre TELAAs, em Brasília, elucidou um pouco para mim a capacidade deste autor em agregar imaginários dos mais díspares e disparatados, de Barcelona e da independência da Catalunha, a correntes e pulseiras, sapatos alinhados, de uma Salvador disforme e trôpega, de um francês bem falado, até chegar a um quadrinho com a voracidade de um animal apedrejado na estrada. 

Creio que, para lá de uma leitura microscópica de certas idiossincrasias de um brasileiro do dia-a-dia, há neste autor o imprevisível em seu próprio trato pessoal, algo que anseia insaciavelmente pela originalidade, que não se contenta com menos que isso. Tungstênio é realmente mordaz, na absoluta neutralidade de olhar em relação à moral de seus personagens: toscos, freaks e largados à deriva numa sociedade inseminada pela malandragem, por uma ética turva e porosa, por uma difícil separação entre uma noção pública e outra privada da vida. 

Outro clichê seria dizer que esta voracidade da narrativa - que entrecruza 3 ou 4 personagens num momentum que envolve crimes, passionalidade, ação civil e até certo romance – seria cinematográfica. Ora, que filme consegue alcançar tamanha vertigem? Tarantino, Hitchcock, Altman? É um trabalho para poucas pessoas, este mergulho sem remorso no abismo da narrativa. Mais que isso, para um brasileiro, Tungstênio parece aquele olhar desgostoso num espelho escroto em que vemos nossas piores deformidades físicas (cicatrizes, marcas de nascença). Mesmo assim, independente da classe social do leitor, há um certo conforto em parecer em casa, ainda que numa casa rota e cheirando a merda. Em relação ao fato de que essa obra tenha acumulado prêmios internacionais, surpreende apenas que os gringos tenham compreendido a natureza deste fedor. Ou que uma obra de gênio sobreviva independente a isso. E é aí que entra arte de Quintanilha. 


10 - WALT & SKEEZIX – 1927 & 1928– Frank O. King (Drawn & Quartely, 2010 [1927/1928]): A “family strip” Gasoline Alleyé famosa por algumas poucas “sunday strips” bastante originais em que seu autor Frank King trabalha aspectos de metalinguagem e possibilidades narrativas em páginas vibrantes que se tornaram exemplos paradigmáticos da versatilidade dos quadrinhos. Esta edição, que cobre os anos de 1927 e 1928 da tira, compila apenas o trabalho diário do autor. Por mais que Gasoline Alley já existisse havia seis anos quando este material foi produzido, ainda estamos um tanto distantes daquelas sundays que ainda encantam todos como paroxismo da linguagem das HQs.

Gasoline Alley (aqui chamado apenas Walt & Skeezix– nome dos protagonistas – por questões contratuais) é o segundo quadrinho mais longevo da história dos EUA (perde só para Os Sobrinhos do Capitão), e é publicada até hoje com seus personagens envelhecendo em “tempo real”. Emociona entrar em contato com os primórdios da tira, quando o bebê (Skeezix) adotado por um “tio” de bons valores e correção moral (Walt) ainda é uma criança inocente.

As belezas de se ler esta obra-prima dos anos 20 (numa magnífica edição da Drawn & Quaterly prefaciada por ninguém menos que Chris Ware) está em aspectos diversos: primeiro, pela delicadeza e sutileza com que seu autor trabalha ao mesmo tempo temas e linguagem. Estas tiras usam recursos visuais diversos. Soluções como paralelismos, aliterações, descrições literárias e repetições interessantes nos quadros nos mostram que King desde sempre compreendeu o potencial desta forma de arte mesmo num espaço limitado como a tira diária. 




Além disso, temos um panorama riquíssimo da vida numa família americana burguesa dos anos 20: sabemos o que comem, como se comunicam, o que vestem, quais suas preferências estéticas e morais. Além disso, a tira está circundada por uma densidade psicológica difícil de achar mesmo nos filmes americanos da época – alternando momentos poéticos com melodrama de primeira e uma intensidade agridoce que não é diferente da vida real.

Dois anos de Gasoline Alley podem parecer um recorte pequeno em tão longeva trajetória, mas é uma metonímia para se compreender a mentalidade sobre os quadrinhos da época (muito mais avançada do que se pode imaginar) e também a mentalidade sociopolítica dos próprios EUA: King, ao contrário da Harold Gray (de Little Orphan Annie) e Chester Gould (de Dick Tracy) – notórios  simpatizantes do Partido Republicano que ansiavam por uma América mais secular – era reservado politicamente e acreditava em micro-valores que se expressam no trato pessoal e na bondade de cada um, algo que resplandece em seu herói do dia-a-dia Walt, talvez o melhor “bom americano” das HQs. 

11 - AL CAPP’S LI’L ABNER – THE COMPLETE DAILIES & COLOR SUNDAYS – VOLUME TWO 1937-1938– Al Capp (IDW Publishing, 2010 [1937/1938]: Diferentemente de Gasoline Alley (ler resenha acima), a tira Li’l Abner (Ferdinando, no Brasil) prescinde de poesia e de um olhar sutil sobre as vicissitudes da burguesia americana e do american dream. Aqui o papo é mais reto e o humor, escarninho, come solto. “Desde Mark Twain não surgia uma sátira tão arrasadora dos costumes do homem, nos Estados Unidos”, afirmou o saudoso Alvarão de Moya. 

De fato, Li’l Abneré um emolidor de sonhos, uma metralhadora giratória que não poupa qualquer aspecto da vida americana, especialmente pós-depressão, como é o caso deste compilado, que cobre os anos de 37 e 38. Seu polêmico criador, Al Capp, pendeu para a direita e para a esquerda em sua vida, geralmente indo contra o que o establishment acreditava. A tira só parou em 77, dois anos antes de sua morte.

Em 1937 Capp tinha apenas 19 anos, mas os elementos que tornaram Li’l Abner um clássico imortal já estão todos lá: o vilarejo rude, caipiríssimo, de Dogpatch (“Brejo Seco” no Brasil), com a família Yokum (“Buscapé”) e sua cristalina inocência e valores de “bom selvagem”, submetidos a um contraste não apenas com hillbillies perversos e degenerados (os Scraggs, versão 30’s para o white trash atual) como também com os habitantes de “Noo Ywak”: geralmente pessoas despudoradas e sacanas – magnatas, gângsters, donos de cassino, golpistas e trapaceiros. O próprio Abner é um tipo atlético abobalhado, bruto como um bloco de concreto, aquilo que Clark Kent seria se tivesse caído no mundo real. 

E Li’l Abner ainda abusa de recursos de quadrinhos, seja para disparar uma continuidade empolgante nas tiras diárias, seja para tornar mais lúdicas e saturadas as tiras dominicais. Quanto ao famoso uso do inglês caipira como elemento de subversão (tendo sido comparado até a James Joyce), eu li e vos afirmo: é tudo verdade! Capp tinha uma visão incisiva sobre oralidade e sobre como o modo de falar deflagra todo um ambiente cultural. De certa forma, é como ler Shakespeare no original: no começo parece impossível, mas, depois que você domina uns termos-chave, a coisa deslancha. Afinal, “ef yo’ has faith in me Mammy – ah kin do it!”   


12 - ESTUDANTE DE MEDICINA– Cynthia B. (Veneta, 2017): A visão que a talentosíssima Cynthia propõe para a fuleiragem brasileira (e suas crises existenciais) em seu primeiro romance gráfico não é coisa de principiante. Vai pro trono! Leia a crítica completa aqui.


13 - TABLOIDE– Leandro Melite (Veneta, 2017): Eis aqui a sinergia perfeita entre um roteiro sólido e empolgante, personagens vivos e idiossincráticos e uma arte arrasadora, esplendorosa. Alguém duvida que Melite está no panteão atual do quadrinho nacional? Leia a crítica completa aqui.

14 - LE COMBAT ORDINAIRE (O Combate Ordinário) – Manu Larcenet (Dargaud, 2003): O traço delicado e, pode-se dizer, até infantil de Manu Larcenet pode enganar à primeira vista. A sinuosidade das linhas e o apego à sua morfologia (algo que lembra até Schulz) nos remetem a uma melancolia boa, saudável, até amena. O prospecto desta premiada BD (ganhou Angoulême), porém, nos direciona a uma mais profunda configuração existencial. O “combate ordinário” de um jovem fotógrafo em crise, incapaz de tomar decisões que deem rumo definitivo à sua vida (pontuada por graves crises de ansiedade), tem a intenção de ser a luta interna de cada um de nós. Lembra a despretensão com que o ordinário é colocado como matéria-prima literária na série de romances Minha Luta, do autor norueguês Karl Ove Knausgard. Em meio à vastidão desta busca pela alma, temas contemporâneos emergem: a ascensão dos Le Pen na França, a guerra da Argélia, a utilidade da fotografia, a fragilidade dos relacionamentos (com irmãos, com bichos ou amorosos). Le Combat Ordinaire pode usar como subterfúgio uma forma em quadrinhos totalmente clássica (a modernização do álbum), mas dá sentido e perenidade a ela, mostrando que a velha BD ainda tem seus cartuchos para queimar.     


15 - SSHHHH!– Jason (Mino, 2017): Para o louco que ainda não leu a obra do norueguês Jason (um dos grandes da HQ contemporânea), este Sshhhh!, poético, intenso e rebuscado, é ótima porta de entrada. Leia a crítica completa aqui.


16 - QUARTIER LOINTAIN (Bairro Distante) – Jiro Taniguchi (Casterman, 2006 [1998, 1999]): Taniguchi, um dos grandes do quadrinho mundial, se foi em 2017. Era tempo de ler sua obra-prima, um mergulho íntimo (viagem no tempo inclusa) nas relações familiares japonesas de hoje e do passado. Leia a crítica completa aqui.


MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 2

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Li muitos quadrinhos em 2017. Infelizmente, o clichê quantidade não reflete qualidade pode ser aplicado no meu caso. Apesar de ter lido muito material novo e algumas velharias, confesso que tive dificuldades em encontrar gibis que realmente merecessem fazer parte desta lista de melhores leituras. Sei lá. Talvez esteja ficando velho e chato, mas o fato é que não foram muitas as HQs que mexeram com meu coraçãozinho. Bem, isso já foi dito antes, mas a lista de leituras da equipe Raio Laser não tem necessariamente lançamentos do ano, mas gibis de qualquer época. Sim, sei que vocês estão acostumados com listas de gibis recentes, mas lamento informar que não tive tempo nem dinheiro para comprar tudo que saiu em 2017. E, mesmo que tivesse, duvido muito que faria algo diferente do que fiz. Acho um saco essa ditadura do novo e não consigo/quero ficar atualizado. Sorry, folks. Lembra que eu disse que estou ficando velho e chato? Então... (MMA)

Segue a lista, sem ordem de preferência:


por Marcos Maciel de Almeida


1- Três Sombras - Cyril Pedrosa (Companhia das Letras, 2011): Eis um gibi que me ganhou pela capa. Assim que vi aquela floresta tenebrosa e o título misterioso, percebi que tinha sido fisgado pelo trabalho do francês Cyril Pedrosa. O enredo, entretanto, é bastante indigesto para pais, avós, tios e assemelhados: a tentativa desesperada de evitar a morte de um ente querido. Negação, fuga, dor e aceitação. Três Sombrasé sobre tudo isso. Em planos de sequência primorosos – que se passam em locações tão diversas quanto originais - Cyril narra a corrida frenética de um pai numa disputa que ele não pode vencer. Seus adversários são as intrigantes - e incansáveis - três sombras do título. 

O traço aparentemente simples de Pedrosa é enganador. Por meio de pinceladas leves, o autor transmite emoções profundas, inerentes a qualquer pessoa. Seus quadrinhos evocam uma melancolia endêmica do gênero humano, como se o peso da existência estivesse apoiado sobre nossas cabeças, à espera de qualquer descuido para poder desabar e acabar de vez com o martírio de viver. Poético, elegante, triste, mas nunca  enfadonho, Três Sombras mostra - num ritmo às vezes ofegante, às vezes preguiçoso - a vã obsessão humana em tentar fugir do inescapável. 


2- Novo Lobo Solitário - Kazuo Koike e Hideki Mori (Panini, 2017): Quem foi o cara que disse que um raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar? Este cidadão certamente não leu o Novo Lobo Solitário, de Kazuo Koike. Mais de 40 anos após o encerramento da história de Itto Ogami - finalizada em 1976 - o lendário roteirista japonês retoma a saga do último integrante da família Ogami, Daigoro, a partir do ponto exato em que a série original havia terminado. Para a empreitada, Koike escalou Hideki Mori, que teve de encarar a barra de substituir o gigante Goseki Kojima. E o novato deu conta do recado, conseguindo fazer o impensável: chegar perto de replicar o talento e a técnica de Kojima, também responsável direto pela trajetória de sucesso do Lobo e seu filhote. Se Kojima é hoje reverenciado pelas sequências de ação vertiginosa, enquadramento cinematográfico e fotografia bela e diversa, Mori não ficou para trás e fez o dever de casa, deixando o espírito do velho mestre orgulhoso. 

É lançamento caça-níquel? Tenho minhas dúvidas. Kazuo Koike já é lenda no Japão. Escreveu trocentos títulos e ministrou uma pancada de cursos de roteiro. Não é como se o escritor veterano estivesse com a conta de luz atrasada. Koike tem histórico de integridade e comprometimento com os fãs. Tanto é assim que, quando percebeu que seu gibi Samurai Executor - também feito em parceria com Kojima - não estava à altura do trabalho que vinha fazendo com o Lobo Solitário, decidiu matá-lo. E o fez no próprio gibi de Itto Ogami, como vimos em Lobo Solitário - 1ª série, da Panini, publicado em 2005. Por isso, acredito que, se Koike se sentiu impelido a dar continuidade à saga, foi porque ainda tinha algo a dizer. 


É claro que sempre haverá as velhas viúvas do mangá original que lamentarão o fato de que o novo trabalho estaria  corrompendo a obra anterior, que deveria ter sido mantida intocada e etc. Não dê ouvidos para tais lamúrias. Ignore as reclamações desse povo que não faz sexo. Pule de cabeça nos novos capítulos da saga de Daigoro, o garoto que tem os olhos de gelo e a capacidade de derreter os corações mais embrutecidos. 

3- O Mensageiro Verde-Cinza - O Spirou de Schwartz e Yann - Yann Le Pennetier e Olivier Schwartz (Sesi Editora, 2016): Nunca tinha lido nada do Spirou, importante integrante da Santíssima Trindade da BD franco-belga, ao lado de Tintim e Asterix. Bem, continuo sem ter lido nada. Ou quase. Explico. A série Spirou de... convida grandes expoentes e revelações da BD para reinventar o personagem clássico criado por Rob-Vel em 1938, mas consagrado por André Franquin cerca de uma década depois. Já teriam ouvido falar em algo parecido? 

Sim, Sidney Gusman nunca escondeu que a série Spirou de... inspirou a criação das incontornáveis Graphic MSPs, que promovem o lançamento - no formato graphic novel -de versões repaginadas dos personagens do Universo de Mauricio de Sousa. No caso em questão, Yann jogou Spirou no meio de uma trama internacional em que o mensageiro de hotel e herói involuntário quase evita a II Guerra Mundial. Tudo isso com um toque de humor e aventura bastante espontâneos que honram a história e o legado do personagem. Prestes a completar 80(!) anos de existência em 2018, Spirou ainda é um ilustre desconhecido no Brasil, e a série Spirou de...é uma ótima porta de entrada para quem está interessado em conhecer mais sobre esse icônico personagem do quadrinho europeu.


4- 5/5 Working Class Heroes - Magenta King e Dalton Cara (Bimbo Groovy, 2013): Pense em seriados japoneses no estilo Changeman e Flashman. Agora imagina se esse troço prestasse. 5/5é isso. Reinventando a fórmula tradicional dos supergrupos orientais, Magenta e Dalton criaram um universo realista e brutal, no qual a busca por uma vaga na equipe atrai pessoas mais interessadas em fama que em contribuir para o bem coletivo. Com diálogos afiados e arte fenomenal, a dupla mostra que não tem apenas química, mas verdadeiro talento de alquimista ao transmutar lixo asiático em ouro quadrinístico. A boa notícia é que esta dupla endiabrada passou a colocar uns teasers no Facebook que levam a crer que ainda veremos mais de 5/5. Tomara. Eis um conceito que parece promissor. Leia mais sobre aqui.

5- Cavaleiro da Lua vol. 4 e 5– Jeff Lemire e Greg Smallwood (Panini, 2017): Existem personagens de HQ que vivem por aí, na mendicância, só esperando a oportunidade de serem escritos por um argumentista minimamente decente. E o Cavaleiro da Lua é um deles. Primeiro com Warren Ellis, em Cavaleiro da Lua vol 1 (2015), e agora com Jeff Lemire, o herói lunático consegue sair das sombras para matar a saudade de velhos e novos fãs. Com o auxílio do mais que competente Greg Smallwood, Lemire explora novas facetas da loucura do personagem, que desta vez vai parar num sanatório. Sim, sei que a tecla da loucura já foi batida quinhentas vezes, mas os bons escritores também são os caras capazes de contar a mesma história de um jeito diferente, não é mesmo? A fase de Lemire inclui os volumes 4 e 5 do Cavaleiro, sendo necessária, ainda, a publicação do sexto volume, para concluir a saga. Que bom que tiraram o personagem da geladeira. Finalmente algum editor da Marvel deve ter se tocado que estava na hora de burilar o maior tesouro da editora: a riqueza de personagens e de locações acumulados ao longo das quase seis décadas de existência da Casa das Ideias. É aquela coisa: por que ficar insistindo no enésimo clone do Wolverine se você tem personagens do quilate de Mortalha, Valete de Copas e tantos outros morando no Limbo? Makes no sense, bro. 

Um dos bons conceitos trabalhados por Lemire é o de que as identidades do Cavaleiro precisam de tempo para se “sedimentar”. No vol. 5, por exemplo, há o surgimento de nova personalidade, reflexo da necessidade do herói de se adaptar às novas situações que encontra. O problema é que, se a nova personalidade não estiver suficientemente enraizada na realidade, pode se desintegrar sem deixar vestígios. Retirado de sua tumba, o Cavaleiro recebeu tratamento vip na Marvel norte-americana, com direito a tosa, spa rejuvenescedor e escova progressiva. O resultado é esse aí. HQ de respeito, com roteirista de peso e personagem repaginado para os novos tempos.


6- Ultraforce # 0-5– Gerard Jones e George Perez (Malibu, 1994): Quem precisa de mais uma equipe de super-heróis? Eu. Especialmente se ela tiver boa dinâmica de grupo, vilões minimamente interessantes e o melhor desenhista para gibis do tipo, como George “Me gustan camisetas havaianas” Perez. Lançado em 1994, o título Ultraforce congregava os principais personagens do Ultraverso da Malibu Comics, uma das várias editoras de menor porte existentes no mercado norte-americano dos anos de 1990 dedicada ao ramo dos super-heróis. 

A duração da Malibu foi efêmera. No mesmo ano de lançamento da Ultraforce, ela foi comprada/fagocitada pela Marvel, após breves 8 anos. Este tipo de prática predatória não foi criada pela Casa das Ideias, mas isto não exime a gigante dos comics de críticas, dado que tal política somente empobrece o mercado de quadrinhos. Mesmo tendo a Marvel prometido não descontinuar os títulos que havia comprado, o fato é que, após alguns meses, todas as revistas do Ultraverso foram canceladas. Uma pena. Pior para o mercado como um todo e principalmente para os fãs, que perderam alternativas - boas e ruins - de compra.

Mas bem, pelo menos Ultraforce foi bom enquanto durou. Tudo bem que Gerard Jones tenha bebido na manjada fonte dos X-Men de Claremont e montado uma equipe formada por seres superpoderosos que juraram defender uma população que os teme e odeia. Apesar disso - ou talvez por essa razão -, conseguiu conferir interação consistente ao reunir medalhões que, como em todo bom gibi de supergrupo, se detestam. A equipe tinha bastante potencial, mas a compra da Malibu pela Marvel, aliada à crise que assolou o mercado de HQs nos EUA em 1994, melou o desenvolvimento das histórias, que passaram a incluir personagens mala-sem-alça do Universo Marvel tradicional, como Cavaleiro Negro e Sersi. E como resultado dessa política de remanejamento intraeditorial de dejetos radioativos, não teve como a Ultraforce sobreviver. 


7- Avengers: The Serpent Crown HC– Steve Englehart e George Perez (Marvel, 2012) e Squadron Supreme TPB– Mark Gruenwald e Bob Hall (Marvel, 1997): O Esquadrão Supremo é um dos grupos mais fodarásticos da Marvel. Especialmente porque é formado pelos personagens principais da Liga da Justiça, com a exceção do Batman, cujo homólogo marveliano – Nighthawk – nunca teve muito espaço nas histórias originais do grupo. Embora já tivessem aparecido em outras edições de Avengers, é apenas na Saga da Coroa da Serpente que o grupo realmente debuta em grande estilo. Foi nessa edição que os fãs babões – como eu – puderam ter uma ideia de como seria o embate entre Liga e Vingadores. E sim, a SCS é o suprassumo do gibi de herói e não sente nenhuma vergonha disso. Assim, há profusão de momentos impagáveis e ridículos, como não poderia deixar de ser. Uma das melhores cenas neste sentido é o surgimento da então novíssima vingadora, Felina, que achou que podia se tornar super-heroína simplesmente porque sabia surfar e tinha praticado esportes na juventude.

Paralelamente à história principal, há uma aventura surreal do Thor e da Serpente da Lua, que voltam no tempo diretamente até a época do Velho Oeste (!) do Universo Marvel para resgatar o Gavião Arqueiro. E o retorno de Thor para o presente é um momento de virada para o personagem. Convencido pela Serpente da Lua a não mais “pegar leve” com os inimigos – coisa que costumava fazer para que os duelos em Midgard ainda tivessem alguma graça – o Deus do Trovão roda a baiana e deixa todo mundo com o cu na mão. Como se isso não bastasse, o gibi também é altamente recomendado pelo fato de apresentar a SCS em sua integralidade, sem os cortes safados da Editora Abril.


Quanto ao Esquadrão Supremo de Gruenwald, trata-se de um gibi mais sério, quase cabeça, que pensa a realidade super-heroística em tempos pré-Watchmen e Authority. No gibi, Hyperion e seus colegas tentam construir a utopia perfeita para os cidadãos dos EUA, ainda que, para tanto, tenham de empregar métodos condenáveis, como lavagem cerebral contra criminosos. Temas como autoritarismo e ditadura da minoria são tratados de maneira hábil por Gruenwald, que reconhecia o trabalho na série como o melhor de sua carreira. Não é para menos. O falecido escritor urdiu uma trama envolvente, com diversos pontos de tensão que se acumulam e desembocam num desfecho que não tem nada de anti-climático. Embora não seja nenhum gênio das HQs, Gruenwald conhecia as regras básicas para a elaboração de boas histórias e não deixou pontas soltas, resolvendo os principais conflitos e subtramas do roteiro. Duro ter de admitir, mas o escritor “roda presa” do Capitão América conseguiu fazer uma história competente e intrigante, venerada por gente do calibre de Alex Ross e Kurt Busiek. Se você é fã do Esquadrão Supremo, não deixe de ler as duas edições acima. Se ainda não é, ainda há tempo para se redimir de seus pecados. 

8- Forming– Jesse Moyniham (A Bolha, 2013): Soap-opera especial que veio desembocar na Terra, com direito a viagem no tempo, incesto, contatos imediatos do 5º grau e conflitos milenares. Cortesia de Jesse Moyniham, um dos responsáveis pela animação A Hora da Aventura. Imperdível. Saiba mais aqui.

9- Meu Amigo Dahmer– Derf Backderf (Darkside Books, 2017): Sem dúvidas, um dos gibis mais perturbadores deste e dos anos recentes. Conta, sob o ponto de vista privilegiado do autor, o convívio nos tempos de High School com aquele que teria a infâmia de se tornar um dos serial killers mais odiados de todos os tempos – Jeffrey Dahmer. Em tom documental/pessoal, Backderf narra a experiência de viver ao lado daquele sujeito que você sabe que é esquisito, mas passa longe de imaginar os anseios perversos que o motivam.

O gibi não é tão bem desenhado. As imagens remetem a um Don Martin (Revista MAD) piorado, mas isso não é problema algum. Ao contrário. Por meio de estilo próprio, o autor conseguiu manter a pegada que uma obra de tamanho impacto pessoal necessitava. Outro ponto de destaque é a qualidade gráfica presente na publicação da Darkside Books. Gibizinho capa dura, papel especial, edição de luxo e o escambau. Coisa fina, mano. 

Embora tenha um desenvolvimento por vezes arrastado, Backderf pinta um panorama bastante fidedigno da vida escolar numa pequena cidade dos EUA no final dos anos de 1970. Interessante pontuar aqui que se tratam apenas dos anos prévios ao início da “carreira” de Dahmer como assassino serial. Se quiser saber maiores detalhes sobre os crimes dele, será preciso apelar para a internet. Neste caso, vá por sua conta e risco, camarada. Só não esqueça de levar o saco de vômito. Pensando bem, talvez o ritmo da narrativa não seja arrastado coisa nenhuma. Na verdade, o autor deve ser elogiado por sua habilidade em retratar o clima de marasmo e tédio presentes na comunidade escolar que frequentou, sensação que certamente é partilhada pelos milhões de estudantes espalhados pelos cinco continentes. 

Meu Amigo Dahmeré aquele gibi que você pensa duas vezes antes de pegar, porque sabe que não sairá o mesmo após a leitura. Rola aquele silêncio provocador pouco antes da abertura das páginas, no melhor estilo: “Será que eu realmente deveria estar fazendo isso?”. Se bem que, no fundo, você sabe que não há escapatória. Você vai encarar o desafio. E então... Perdeu, playboy!

10- Justice League Europe # 15-19– Keith Giffen/Gerard Jones e Bart Sears (DC Comics, 1989): Admito que sempre fui um dos caras da turma “do contra”. Adoro apreciar as coisas que ficam meio que escondidas quando todos estão olhando para uma única direção. Com Liga da Justiça, não foi diferente. Enquanto todos louvavam (com razão) a Liga da Justiça América de Giffen e DeMatteis, eu me divertia mais com as aventuras dos “primos pobres”, ou seja, a Liga da Justiça Europa. O mix de personagens era delicioso. O Flash Wally West safadão, a liderança insegura do Capitão Átomo, o tom debochado/melancólico do Metamorfo e o fato – bastante realista, por sinal – de que todos queriam comer a Mulher-Maravilha. Junte-se a estes ingredientes um desenhista no auge da forma – Bart Sears – e o resultado não poderia ser menos que fenomenal. O estilo de Sears, especialista em desenhar seres metálicos e robotizados, caiu como uma luva no gibi, a tal ponto que considero, humildemente, suas representações do Capitão Átomo e do Soviete Supremo como as versões definitivas dos personagens até hoje. 

Depois de uma sequência memorável (JLE # 1-14), em que acompanhamos as tentativas hilárias e infrutíferas do Capitão Átomo em liderar uma equipe totalmente disfuncional, chegamos ao momento mais louco e apoteótico do gibi, numa história chamada “O Vetor Extremista”. Nela, somos apresentados a um grupo de malfeitores – Os Extremistas – que homenageia/plagia os grandes vilões do Universo Marvel, como Doutor Destino e Magneto, entre outros. A ideia dos caras é simples: ou a Terra se rende ou eles vão acionar todo o arsenal nuclear do planeta. O problema é que a maioria dos membros da LJE tem poderes de dar pena, sendo necessária a criação de uma estratégia de ataque decente para que o grupo não passe mais uma vergonha. A história também conta com a participação de alguns dos “Vingadores” da DC, na verdade os Campeões de Angor, na forma de Gaio (Jaqueta Amarela) e Feiticeira Prateada (Feiticeira Escarlate), agora membros efetivos da LJE. 


Além dos diálogos afiados e dos desenhos primorosos, há easter eggs interessantes, como a aparição do desiludido Tio Mitch, criador de um parque de diversões cujo staff – totalmente formado por robôs – é incapaz de aceitar o fato de que possam existir pessoas que não têm o menor interesse em estar 100% anestesiadas por uma felicidade artificial. Trata-se, na verdade, de uma bela homenagem/sacaneada no legado do velho Walt Disney. 

Muito já foi dito sobre a fase da Liga da Justiça de Keith Giffen. Não tenho muito a acrescentar. Ler esta fase é como observar aquele grupo de amigos que já está junto há muito tempo e adora se sacanear. A única diferença é que eles são super-heróis. Lutam contra o crime e depois vão tomar uma. Quer dizer, tomariam uma se os gibis da época não fossem tão politicamente corretos. E esse clima de descontração é proveniente da mente insana do fanfarrão Keith Giffen, louco para causar. E se a Liga da Justiça América já recebia a maior parte da atenção, Giffen podia esculhambar mais no título irmão, para nossa alegria.
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